Mesmo quem não tenha se dado ao trabalho de assistir a geralmente entediante cerimônia de entrega do Oscar, realizada nesse domingo nos EUA, a esta altura já deve estar sabendo que o evento foi, no mínimo, “curioso”. Cercada por denúncias e protestos sobre o tratamento que a Academia de Hollywood e a indústria cinematográfica têm dado aos setores oprimidos, a 88ª edição do Oscar transformou-se num palco inusitado para o debate.

Pra sermos mais exatos, o tema racial tomou a cerimônia de ponta a ponta. Obrigado a lidar com o fato de ser um ator negro apresentando uma premiação para a qual nenhum negro ou negra havia sido indicado, o comediante Chris Rock abriu a cerimônia de forma desconcertante: “Bom, estou no Oscar da Academia, também conhecido como os prêmios dos brancos (…) Vocês se dão conta de que, se eles indicassem os apresentadores, eu nem teria este trabalho?”.

O que se viu depois foi uma seqüência inédita de referências à ausência de negros (as) nas premiações. Muitas extremamente questionáveis (quando não abertamente lamentáveis) e todas feitas sob medida para tentar demonstrar que, daqui pra frente, “as coisas vão mudar”. Nenhuma delas, contudo, foi capaz de sufocar completamente o real motivo do mal-estar que se instalou no palco do Oscar; algo que acabou vindo à tona nas últimas palavras de Chris Rock, depois da entrega dos prêmios: “Black Lives Matter” (“Vidas negras importam”), o nome do movimento que tem tomado as ruas em protesto contra os assassinatos de jovens negros na terra de Obama.

Como também vale lembrar que não foram apenas os ecos de Baltimore e Ferguson que rondaram o palco do Oscar. Outra voz poderosa também se fez presente exatamente por ter sido excluída da cerimônia: a da musicista trans Anohni Hegarty que, assim como artistas negros como Spike Lee e Will Smith, decidiu boicotar o evento. No seu caso, motivada por algo asquerosamente “típico” da transfobia: a invisibilização. Indicada ao prêmio de melhor canção, Anohni não foi sequer convidada para se apresentar na cerimônia.

100 % branco
Antes de fazer alguns comentários sobre estas histórias, não é preciso que nos detenhamos no óbvio. Sabemos que o Oscar tem pouquíssimo a ver com a arte, sequer serve como parâmetro para o que há de mais criativo e interessante no mundo do cinema e é, antes e acima de tudo, a celebração da indústria cinematográfica norte-americana e de suas polpudas bilheterias. O que, por si só, sempre fez do palco da premiação solo fértil para a reprodução do machismo, do racismo, da LGBTfobia e todas as demais ideologias a serviço da classe dominante. 

Os números são mais do que evidentes. Desde que foi criado, em 1929, apenas 14 homens e mulheres negros foram premiados nas principais categorias para atuação e o número total de prêmios entregues para afrodescendentes em qualquer categoria chega a exatos 35. No caso de LGBTs, falar de números é extremamente complicado, já que em função da própria LGBTfobia muitos foram os indicados(as) e premiados(as) cuja orientação sexual nunca foi revelada. E em relação às mulheres, dois números divulgados pelo “Centro de Estudos sobre as Mulheres na TV e no Cinema” exemplificam o quão desproporcional é a participação delas na indústria: são 24% de todos os profissionais e 6% do total de diretores.

Com um histórico como este, o fato de que nos últimos dois anos nenhum negro ou negra tenha sido indicado para os prêmios de melhor ator ou atriz (em papéis principais ou de coadjuvantes) deveria passar em brancas nuvens. Contudo, ao invés de viverem num país “pós-racial”, como os EUA tentaram “se vender” depois da eleição de Obama, os norte-americanos estão mergulhados em uma situação pós Baltimore, Ferguson, “Black Lives Matter” e uma onda de protestos raciais que só se assemelha a que explodiu nos anos 1950 e 1960. E é isso que tem feito toda a diferença.

É isto que está por trás da onda de protestos e chamados a boicote que varreram os EUA assim que a branquíssima lista de 28 indicados aos prêmios foi liberadas, atestando que a Academia, tanto em 2014 quanto em 2015, não conseguiu encontrar um(a) único(a) negro(a) que merecesse ser reconhecido(a) por seu talento. E não que faltassem opções, particularmente em 2015 e, inclusive, levando-se em consideração os critérios comerciais do Oscar.

Will Smith, por exemplo, protagonizou “Concussion” (“Um Homem entre Gigantes”) um daqueles “dramas baseados na vida real” dos quais Hollywood tanto gosta, fazendo o papel do médico nigeriano Bennet Omalu que se enfrentou com a liga de futebol norte-americana ao fazer uma pesquisa sobre danos cerebrais sofridos pelos jogadores. 

Outro esnobado foi Idris Elba, que fez uma interpretação visceral como um “senhor da guerra” em “Beasts of no nation” (algo como “feras sem pátria”), que mostra, pelo olhar de uma criança-soldado, os horrores enfrentados em conflitos que infestam a África. Já no caso de outro sucesso  de bilheteria,“Creed” (“Nascido para lutar”), a situação beira o patético: o filme foi escrito e dirigido por negros, contando a história de um boxeador negro (vivido pelo também menosprezado Michael B. Jordan), mas o único indicado foi Sylvester Stalonne (cuja simples presença numa lista de “atores” já parece piada) e seu ressuscitado Rocky Balboa.

Situação semelhante a de “Straight Outta Compton – A história do N.W.A.”, que conta a história dos jovens que, nos anos 1980, usaram de suas experiências pessoais no enfrentamento com a segregação racial e violência policial na cidade da Califórnia (berço de Kendrick Lamar) para criar o “Niggaz Wit Attitudes”, provocando a explosão do gangsta rap. Apesar de que quase todo mundo envolvido na produção ser negro, os únicos indicados foram os dois roteiristas brancos.

Independentemente da qualidade dos filmes e das interpretações, a não indicação com certeza tem suas raízes na própria composição da Academia. Segundo o jornal “Los Angeles Times”, dentre os 6 mil membros que escolhem os candidatos, 94% são brancos e 77% são homens; enquanto os negros e os latinos representam cerca de 2%.

Silenciando uma voz contra a transfobia e o Capital
Para que não cometamos o mesmo erro da Academia, não podemos deixar de mencionar a história que envolve Anohni Hegarty. Não foram poucos os que comemoraram a sua indicação para o Oscar, para o prêmio de melhor canção original, pela música “Manta Ray”, composta com J. Ralpph para o documentário “A corrida contra a extinção”, que denuncia o veloz e criminoso desaparecimento de milhares de espécies animais em nossa época. Ela é a primeira trans a ser indicada para um prêmio desde que Angela Morley foi nomeada duas vezes por trilhas sonoras compostas para filmes nos anos 1970.

Anohni é uma compositora, vocalista e pianista britânica que ganhou projeção mundial com o grupo Antony and The Johnsons. Seu timbre de voz único e suas complexas melodias utilizadas para embalar letras que trazem, muitas vezes, um debate acerca da solidão, do abandono e da angústia de ser uma mulher transgênero.

Em “Hope there’s someone”, canção mais conhecida do grupo, a artista fala da dificuldade de seu processo de transição: “eu não quero estar num lugar intermediário, entre a luz e o nada/ mas não quero ser a única/ abandonada/ […] espero que haja alguém para cuidar de mim”; ou, então, em “For today I’m a boy”, em que fala sobre ser uma criança trans: “um dia eu crescerei e serei uma bela mulher/ por enquanto sou um garoto/ […] um dia eu crescerei, eu sei quem está dentro de mim”.

Diante disto, evidentemente, Anohni fez e faz com que uma infinidade de pessoas trans ao redor do mundo se vejam reconhecidas e fortalecidas através dela. O que por si só já é digno de nota. Contudo, Anohni é muito mais do que uma “artista trans”, é um trans militante que tem feito inúmeras críticas à transfobia, inclusive à recusa da mídia em tratá-la no gênero feminino, afirmando, por exemplo, que “chamar alguém pelo gênero que se identifica é honrar seu espírito, sua vida e contribuição. ‘Ele’ é um pronome invisível para mim, ele me nega”.

A cantora também faz parte do movimento transfeminista no Reino Unido e é extremamente crítica aos limites do “empoderamento” (individual) feminino dentro do sistema em que vivemos, já tendo declarado que a famigerada Margareth Thatcher era uma mulher “tão bélica” quanto Ronald Reagan e se posicionado inúmeras vezes contra o capitalismo e a combinação entre opressão e exploração.

Incapazes de não reconhecer seu talento, a Academia decidiu invisibilizá-la – como é lamentavelmente comum em relação aos LGBT’s e às trans, em particular – e, ao contrário do geralmente acontece, ela não foi convidada para se apresentar durante a cerimônia. Fato “curioso” é que o motivo alegado para deixá-la de fora foi “a falta de tempo”, mas Dave Grohl, do Foo Fighters, que nem sequer foi nomeado, irá fazer uma apresentação especial durante a entrega dos prêmios.

Dizendo-se “reduzida e humilhada” por não ter sido convidada, Anohni divulgou uma nota, no dia 26, explicando o porquê decidiu boicotar a premiação. Primeiro, ela fala da dor diante transfobia – “Ontem à noite, eu tentei me forçar a entrar no avião para ir para Los Angeles (…), mas os sentimentos de vergonha e raiva me detiveram e não consegui entrar no avião” –, mas, na sequência, a artista demonstra enorme consciência sobre o porquê das coisas.

Primeiro, ela lembra que o fato de ser trans, apesar de determinante, não foi o único motivo para que a Academia a impedisse de se apresentar em rede mundial de TV, lembrando que ser pouco conhecida e ter participado de um projeto que denuncia a destruição do planeta pela ganância capitalista também não contribuiriam em nada para um dos principais objetivos do Oscar: “vender espaços publicitários”.

Mas, acima de tudo, ela lembra que existe um “uma verdade mais profunda” que envolve toda a história é não pode ser ignorada: “Não é um evento isolado, mas uma série de eventos que ocorrem ao longo dos anos para criar um sistema que tem procurado me enfraquecer, num primeiro momento como uma criança ‘feminina’ e, mais tarde, como uma mulher trans andrógina. É um sistema de opressão social e diminuição de oportunidades para as pessoas trans que tem sido empregado pelo capitalismo nos EUA para esmagar nossos sonhos e nosso espírito coletivo.

O mesmo sistema que, ainda segundo ela, esta por trás da prisão de Guantanamo, da pena de morte e prisões ilegais, do poder ilimitado de grandes corporações, do desvio de dinheiro público para os banqueiros e umas tantas outras mazelas cometidas por um sistema que, ainda, tenta usar as pautas dos oprimidos como “cortina de fumaça para nos distrair desta cultural viral de extração de riqueza (…) das classes média e trabalhadora”.

Vale lembrar também que, mesmo antes da polêmica, Anohni já havia chamado a atenção para o fato de que Hollywood, incapaz de ficar completamente surda, cega e muda diante da pressão dos movimentos trans e o espaço que têm conquistado na sociedade, tem se utilizado de um artifício semelhante ao famigerado “black face” (artistas brancos pintados de negro) para representá-los(as) nas telas. Ou seja, histórias de LGBTs, principalmente de pessoas trans, sendo contadas sem que estas estejam presentes no elenco.

No Oscar 2016, o exemplo mais categórico disto é a “A Garota Dinamarquesa”, onde o ator Eddie Redmayne (inegavelmente excelente) foi convidado para interpretar a trans Lili Elbe, a primeira trans a fazer uma operação de “redesignação de sexual” (ou seja, adaptação de sua estrutura biológica a sua identidade de gênero, no caso, feminina).

Redemayne foi indicado para o Oscar de Melhor Ator e vale dizer que o belíssimo filme não foi. Situação semelhante ao elenco de outro filme com temática lésbica, “Carol”, cujas atrizes Cate Blanchett e Rooney Mara também concorrerão enquanto o próprio filme e o diretor (gay) Todd Haynes foram esnobados.

Fatos que não podem ser apagados ou menosprezados, mesmo apesar de um cantor gay, Sam Smith, ter ganhado sua estatueta e a oferecido à comunidade LGBT e de que Lady Gaga, um mulher bi e sobrevivente de estupro, tenha feito uma das apresentações mais emocionantes da noite (cercada de estudantes que sofreram estupro nas universidade, tema do documentário “The hunting ground” – o “campo de caça”).  

Chega de hipocrisia e segregação
Particularmente, em relação aos negros e negras, o, literalmente, “elefante branco” no meio do palco do Oscar obrigou a Chris Rock a usar de seu questionável senso de humor pra falar umas tantas bobagens, mas, também a usar da ironia (muitas vezes cruel), para se remeter ao debate.

Uma das mais fortes e que nos leva novamente a Baltimore, foi uma referência ao famoso momento “in memorium”, quando são recordados os membros da indústria cinematográfica mortos no ano anterior: “Este ano as coisas vão ser um pouco diferentes no Oscar. Na parte do In Memoriam vão mostrar pessoas negras que foram baleadas por policiais a caminho do cinema. Sim, eu disse!

Se Chris Rock teve que se virar no palco para cumprir seu contraditório papel, pior ainda foi a situação da presidente da Academia, Cheryl Boone Isaacs (a primeira negra a ocupar o cargo). Antes mesmo da noite de ontem, Cheryl fez uma declaração exemplar da hipocrisia que sempre ronda as histórias de racismo e das armadilhas em que aqueles que se pensam “empoderados” acabam se metendo: “Eu estou envergonhada e frustrada com a falta de diversidade (…) Este é um debate difícil, mas importante, e é hora de fazer grandes mudanças (…) a mudança não chega tão rápido quanto desejamos“.

No palco, ela repetiu praticamente o mesmo discurso, jogando para a indústria a responsabilidade de refletir a mesma diversidade que se existe nas platéias mundo afora. O que, diga-se de passagem, acabou virando uma piada quando algumas entrevistas com negros e negras diante de um cinema de Comptom, colocada sob medida no meio da apresentação, revelou que a maioria sequer conhecia o nome dos principais filmes indicados. Indício um tanto evidente do abismo que separa estes dois mundo (até mesmo pelo absurdo valor dos ingressos mundo afora).

O fato é que qualquer declaração de boas intenções não passa de uma balela. Primeiro, para que fosse mais diversa, a Academia teria que fazer exatamente o oposto do que aconteceu nos últimos dois anos. Afinal, a única para fazer isto é mudando a sua composição e, para tal, só há um caminho previsto: ter mais não-brancos(as), mulheres e LGBTs indicados, já que são os indicados e premiados que formam o seleto júri de 6 mil membros.

Contudo, evidentemente, o problema está pra muito além da composição da Academia, que é apenas um reflexo distorcido do racismo, do machismo e da LGBTfobia que correm soltas no mundo real. Por exemplo, são raros os “bons papéis” destinados àqueles e àquelas que não se enquadram nos padrões eurocêntricos, patriarcais e heterossexuais tão valorizados pelo Capitalismo e, consequentemente, pela indústria cinematográfica.

Da mesma forma, a maioria dos filmes que escapa destes padrões – como são os casos de “Beast of no nation” e “Comptom” – toca em feridas que dificilmente as elites econômicas, políticas e, também, artísticas dos EUA querem colocar em evidência.

Entrando no debate, Barack Obama também se deu ao direito de fazer uma crítica, com uma pergunta que ele próprio deixou em aberto: “Estamos mesmo fazendo de tudo para que cada um tenha uma chance justa?”. Com certeza, não. A começar por ele próprio.

E como destacou Anohni isto será assim enquanto as grandes empresas e os interesses do Capital ditarem as regras do jogo no mercado cinematográfico, nas artes e na cultura em geral, utilizando de seu poder econômico e político para “esmagar nossos sonhos”. Seja no mundo real, sejam nas telas dos cinemas.

Neste sentido, os boicotes e protestos são mais do que bem-vindos. E esperamos que não só repercutam na cerimônia de entrega mas, acima de tudo, sirvam pra fortalecer a luta daqueles e daquelas que, no mundo real, continuam lutando por igualdade e liberdade plenas.

Exatamente por isto sempre foi assim, o que nos parece mais importante, contudo, é entender como, hoje –  a exemplo do que aconteceu com os episódios envolvendo Beyoncé (no SuperBowl) e Kendrick Lamar (no Grammy) –, até mesmo em algo tão distante da realidade dos “seres humanos normais” ecoa a crescente insatisfação dos setores historicamente marginalizados com os estado das coisas.