Mobilização pelo "Não" à ditadura de Pinochet

No Chile, transição para a democracia foi realizada sob o receituário do neoliberalismoNão cabe aqui uma análise mais aprofundada do contexto em que o plebiscito que marcou o fim do regime ditatorial de Augusto Pinochet, em 1988, aconteceu, mas até mesmo para se compreender a perspectiva do filme “No”*, vale uma panorâmica sobre a situação do Chile na década 1980.

Um dos motivos que forçou a ditadura a convocar o plebiscito foi exatamente a voracidade com a qual Pinochet havia abraçado, já na década de 1970, o neoliberalismo.

Desde início do regime, o ditador havia investido na privatização para por fim o que havia sido estatizado durante o período Allende, ou mesmo antes disso. No entanto, a partir de 1985, o receituário neoliberal foi acentuado. Para exemplificar, no final dos anos 1980, das 229 empresas estatais que existiam em 1973, apenas seis não haviam sido privatizadas, o que foi acompanhado de um crescente endividamento externo (entre 1974 e 1988, a dívida externa cresceu nada mais do que 300%).

A aplicação de políticas como estas teve o mesmo resultado que no resto do mundo. Em 1983, o país entrou em recessão; nos anos seguintes, o desemprego chegou a 30,4%; os salários reais tiveram uma queda de 10% e o mínimo sofreu uma redução de 25%.

Junte-se a isso uma inflação na casa dos 20%. Pode-se explicar, portanto, porque o povo chileno decidiu ir à luta, apesar da persistência de uma forte repressão pelos violentíssimos “carabineiros” (responsáveis pela morte, em mobilizações, de mais de 200 pessoas entre 1983 e 86, além da prisão de dezenas de milhares).

Independentemente do fato de que o ascenso teve um retrocesso a partir de 1986, é inegável que a história do plebiscito está intimamente ligada a este processo. Algo constatado por uma pesquisa, em 1988, nas vêsperas da eleição que detectou que 72% diriam “não” em função da má situação econômica (mais do que os 57% que negariam o regime em função dos crimes contra os direitos humanos).

Ainda mais importante, foi o fato de que, no decorrer deste período, os movimentos sociais passaram por um profundo processo de reorganização, tanto no nível sindical, com a formação da “Central Unitária dos Trabalhadores” (CUT, não por coincidência), quanto político, com a formação, legalização ou reconstrução dos partidos.

Anos 80: um estrondoso “não” às ditaduras
Enquanto tudo isso acontecia, outro fator empurrava o Chile em direção à democratização: a conjuntura internacional, em particular da América Latina, onde uma rebelião de massas estava colocando abaixo ditaduras continente afora.
Todos que viveram nos anos 1980 no Brasil, por exemplo, têm a memória marcada pelos muitos “nãos”. O não às mentiras da ditadura e ao rastro de mortes e tragédias deixado pelos militares; o não à desastrosa situação da economia; o não à censura e à tentativa de perpetuação da moral e das repressivas regras de comportamento vigentes e etc.

No resto do subcontinente, a situação era bastante semelhante, com ritmos, dinâmicas e intensidades distintas. O concreto era que em vários países nos quais sonoros “nãos” haviam varrido ditadores. Estes eram os casos, por exemplo, da Argentina (1976-83), da Bolívia (1964-82) e do Uruguai (1976-85).

Enquanto isso, em dois outros países do continente, mesmo ainda sem saber, outra dupla de canalhas estava prestes a ter seus dias de ditador encerrados. No Paraguai, o nefasto Stroessner, no poder desde 1954, cairia em 1989 e, no Chile, Augusto Pinochet dava sua última (e mal planejada cartada): a convocação de um plebiscito com o objetivo de legitimar seu desde sempre ilegítimo governo.

Por isso mesmo, pode-se dizer que a principal “pressão internacional” que é enfatizada pelo filme de Larraín não foi aquela que veio das chamadas “democracias do Primeiro Mundo” que, já distantes da Guerra Fria, mudaram sua postura de suporte velado ou escancarado a suas “marionetes fardadas” na América Latina (que, inclusive, já não eram vistos como os melhores gerentes para seus negócios). Essa pressão foi importante, mas mesmo isto foi um reflexo direto dos movimentos que agitavam o continente e o próprio Chile.

Um tiro que saiu pela culatra
A onda de mobilizações e greves (várias delas com o caráter geral) que varreu o Chile nos anos 1980 teve como destaques os mineiros, estudantes e movimentos populares, mas também foi ampla em vários setores da classe operária e dos serviços públicos.

Neste período, a adesão do conjunto da população, inclusive da classe média, ficou mundialmente conhecida através dos estrondosos “panelaços” que eram ouvidos cotidianamente e inúmeras vezes atravessaram a noite. Uma prática que foi mantida durante todo o período do plebiscito.

Apesar do ascenso ter refluído em 1986 (sob forte repressão de Pinochet, responsável pela morte de mais de 200 ativistas e a prisão de dezenas de milhares, entre 1983 e 1986), era ainda uma força objetiva em 1988. Algo que, no filme, vemos através dos enfrentamentos em que Verônica, a companheira de René, participa.

Exemplo do peso do ascenso foi a convocação, por parte da Concertacíon, de mobilizações e comícios (com gigantesca adesão da população), em paralelo à campanha publicitária e, particularmente no final da campanha, quando foi realizada a “Marcha da Alegria”, que apesar de seu nome sintonizado com a perspectiva da campanha, acabou se transformando numa vigorosa jornada de mobilizações de dez dias, iniciada no dia 22 de setembro, em duas cidades (Árica e Puerto Montt, nos extremos Norte e Sul, respectivamente) e convergiram para Santiago.

Transição conciliada e continuidade da luta
Apesar disto, como foi destacado tanto por Larraín quanto Gael nas entrevistas mencionadas no artigo anterior, o formato adotado na campanha do plebiscito prenunciava a forma como se daria a transição: realizada sob o receituário do neoliberalismo e originária de uma democracia pra lá de decepcionante.

Exemplo disto é o fato de que Patrício Aylwin, principal “personagem” da campanha, tornou-se o primeiro presidente eleito, em março de 1990. Se na peça publicitária, Aylwin aparece fazendo apenas críticas genéricas à “intolerância” e à “intransigência” durante a ditadura e dando garantias de que o Chile não voltaria ao “passado de conflitos” (leia-se o período Allende), no seu governo, não ficou muito distante disto.

Reconheça-se que Aylwin não estava sozinho. A Concertacíon de Partidos por La Democracia esteve por trás de todos os acordos que, além de manter a política econômica da ditadura, produziram o exemplo mais “decepcionante” (vergonhoso, na verdade) da transição: a manutenção de Pinochet e dos canalhas que o apoiaram no governo.

Como resultado do mesmo tom conciliador e “ameno” da campanha publicitária, foram costurados acordos que garantiram não só a impunidade dos militares e seus aliados, mas também lhes garantiu o controle administrativo de postos chaves do sistema, principalmente na administração pública, no sistema judiciário e à frente das reitorias das principais universidades.

Ainda mais asquerosa foi a manutenção de Pinochet no posto de Comandante-em-Chefe do Exército até março de 1998, quando o ditador foi aposentado como senador vitalício, ou seja, protegido pela imunidade (ou melhor, impunidade) parlamentar até o fim da vida. Vale lembrar que, apesar de ter amargado alguns reveses (condenação na Europa, em 1998, e prisão domiciliar no Chile, em 2004), o canalha só chegou ao fim de sua miserável vida em decorrência da idade em dezembro de 2006, sem nunca ter pago por seus crimes e, ainda, acumulando uma fortuna de, no mínimo, 28 milhões de dólares roubados do povo chileno.

Razões que, ao lado do aprofundamento das políticas neoliberais (mesmo depois da morte do ditador e no decorrer dos anos 2000) têm servido de combustível para as contínuas lutas, protagonizadas por estudantes secundaristas (como a Revolta dos Pinguins, em 2006), universitários (no decorrer dos últimos anos, como destaque para a onda que varreu o país em 2011), mineiros e demais setores da classe operária. Uma luta que continua como uma extensão da passeata que vemos nos últimos minutos de “No”.

  • *Leia aqui a crítica sobre o filme chileno “No”