Redação

John Reed foi um jornalista norte-americano e militante socialista que ficou famoso com o livro Os dez dias que abalaram o mundo, um relato sobre como foram os meses de luta do proletariado russo até a tomada do poder. Em 1919, ele escreveu sobre os sovietes, sua origem e funcionamento, e explicou como esses organismos de poder operário começaram a controlar a produção e a vida social na jovem República Soviética. Reproduzimos, aqui, alguns trechos do artigo.


No meio de todo o coro de abusos e deturpações dirigidas contra os soviets russos pela imprensa capitalista, existem vozes gritando em pânico: Não há governo na Rússia! Não há organização entre os trabalhadores russos! Não vai funcionar! Não vai funcionar!

Há um método por trás desta calúnia.

Como todo socialista verdadeiro sabe, e os que presenciaram a Revolução Russa podem testemunhar, há hoje, em Moscou e em todas as cidades e vilas das terras russas, uma estrutura política altamente complexa, apoiada pela vasta maioria das pessoas e que funciona tão bem quanto qualquer governo popular recém-instituído pode funcionar. Os trabalhadores da Rússia também construíram uma organização econômica a partir de suas necessidades e reivindicações vitais, que está se desenvolvendo e se transformando numa verdadeira democracia industrial.

O jornalista John Reed

História dos Soviets
O Estado soviético está baseado nos soviets – ou conselhos – de trabalhadores e camponeses. Esses conselhos – instituições tão características da Revolução Russa – foram criados em 1905 quando, durante a primeira greve geral de trabalhadores, as fábricas de Petrogrado e as organizações sindicais enviaram delegados a um Comitê de Greve Central. Esse Comitê de Greve foi chamado de Conselho dos Deputados dos Trabalhadores. Depois do fracasso da Revolução de 1905, os membros do Conselho fugiram ou foram enviados à Sibéria.

Em março de 1917, quando o Czar abdicou frente ao levante que tomou toda a Rússia, (…) a relutante Duma foi forçada a assumir as rédeas do governo, o Conselho de Deputados Trabalhadores retomou vida de forma fulminante. Em poucos dias, ele foi ampliado para incluir delegados do Exército e passou a se chamar Conselho de Deputados dos Trabalhadores e Soldados.

Foi o soviet que realizou o trabalho da revolução, coordenando as atividades do povo, preservando a ordem. Além disso, eles assumiram a tarefa de garantir os avanços da revolução contra a traição da burguesia.

A partir do momento em que a Duma foi forçada a apelar para o soviet, dois governos existiam na Rússia, e esses dois governos lutaram pelo controle do poder até novembro de 1917, quando os soviets, sob controle dos bolcheviques, derrubaram o Governo de Coalizão (a Duma).

Como os Soviets são formados
O soviet é baseado diretamente nos trabalhadores dentro das fábricas e nos camponeses do campo. No começo, os delegados dos soviets de trabalhadores, soldados e camponeses eram eleitos a partir de regras que variavam de acordo com as necessidades e a população das várias localidades. Em algumas cidades, os camponeses escolhiam um delegado a cada 50 eleitores. Os soldados nas guarnições tinham direito a certo número de delegados para cada regimento, independentemente do número. O exército no campo de batalha, no entanto, tinha um método diferente de eleger seus soviets. Os trabalhadores nas grandes cidades logo descobriram que os soviets ficariam ingovernáveis a não ser que o número de deputados ficasse restrito a um para cada quinhentos trabalhadores. Da mesma forma, os dois primeiros Congressos de Soviets de toda a Rússia foram organizados com a eleição de mais ou menos um delegado a cada 25 mil eleitores mas, na verdade, os delegados representavam distritos de tamanhos variados.

O Soviet de Deputados de Trabalhadores e Soldados de Petrogrado, que estava em operação quando eu estive na Rússia, é um exemplo de como as unidades urbanas do governo funcionam sob um Estado socialista. Ele era formado por 1.200 deputados, aproximadamente, e, em circunstâncias normais, se reunia a cada duas semanas. No período entre as sessões, elegia um Comitê Executivo Central de 110 membros baseado na proporcionalidade dos partidos, e esse Comitê Executivo Central podia convidar delegados dos comitês centrais de todos os partidos políticos, dos sindicatos, dos comitês de fábrica e outras organizações democráticas.

Além do grande soviet da cidade, havia também os soviets de bairros. Esses eram formados pelos deputados eleitos em cada bairro do soviet da cidade e administrava sua respectiva parte da cidade. Naturalmente, alguns bairros não tinham fábricas e, assim, não elegiam representantes da região nem para o soviet da cidade nem para o dos bairros. Mas o sistema dos soviets é extremamente flexível, e se os cozinheiros, garçons, lixeiros, jardineiros ou motoristas de táxi daquele bairro se organizassem e exigissem representação, poderiam eleger delegados.

29 Soldados no Soviete de Petrogrado

O Estado Soviético
Pelo menos duas vezes por ano, os delegados são eleitos em todo o país para o Congresso dos Soviets de toda a Rússia. Teoricamente, esses delegados são escolhidos por eleição popular direta: das províncias, um a cada 125 mil votantes; das cidades, um a cada 25 mil. Na prática, entretanto, eles são escolhidos pelos soviets provinciais e urbanos. Uma sessão extraordinária do congresso pode ser convocada a qualquer momento por iniciativa do Comitê Executivo Central de toda a Rússia ou por exigência dos soviets representando 1/3 [um terço] dos trabalhadores da Rússia.

Esse organismo, consistindo em aproximadamente 2 mil delegados, se reúne na capital como um grande soviet e decide o essencial da política nacional. Ele elege um Comitê Executivo Central como o Comitê Central do Soviet de Petrogrado, que pode convidar delegados dos comitês centrais de todas as organizações democráticas. Esse Comitê Executivo Central dos Soviets russos é o parlamento da República Russa e consiste em 350 pessoas aproximadamente. Entre os congressos, funciona como autoridade suprema, não podendo agir fora das linhas desenhadas pelo congresso e é responsável por seus atos até o próximo congresso (…).

A função central dos soviets é a defesa e a consolidação da revolução. Eles expressam a vontade política das massas, não só a dos congressos, para todo o país, mas também nas suas localidades, onde a autoridade deles é praticamente suprema. Essa descentralização existe porque os soviets locais criam o governo central e não o contrário. Apesar da autonomia local, no entanto, os decretos do Comitê Executivo Central e as ordens dos Comissários são válidos em todo o país porque, sob a República Soviética, não existem interesses setoriais ou privados a servir, e a causa da revolução é a mesma em todos os lugares.

Comitês de Fábrica
Quando a revolução de março estourou, os proprietários e administradores de várias fábricas fugiram ou foram expulsos pelos trabalhadores (…). Sem superintendentes, supervisores e, em muitos casos, engenheiros e contadores, os trabalhadores encontraram-se frente à alternativa de manter o trabalho funcionando ou morrer de fome. Um comitê foi eleito, com um delegado de cada seção ou departamento, para dirigir a fábrica. É claro que no começo esse plano parecia absurdo. As funções dos diferentes departamentos até poderiam ser coordenadas dessa forma, mas a falta de treinamento técnico dos trabalhadores produziram resultados grotescos.

Finalmente, houve uma reunião do comitê numa das fábricas, onde um trabalhador se levantou e disse:

“Camaradas, por que precisamos nos preocupar? A questão do conhecimento técnico não é difícil. Lembremo-nos que o patrão não era um expert, ele não conhecia nada de engenharia ou química ou contabilidade. Tudo que ele sabia era ser dono. Quando ele queria ajuda técnica, contratava gente para fazer isso para ele. Bem, nós agora somos os patrões. Vamos contratar engenheiros, contadores, e eles vão trabalhar para nós!” (…)

Os Comitês de Fábrica se espalharam e ganharam força. No começo, é claro, os trabalhadores russos cometiam erros absurdos, como já foi contado muitas vezes. Eles exigiam salários impossíveis – tentavam realizar processos fabris complicados sem a experiência necessária; em alguns casos, chegaram a pedir a volta de seus patrões. Mas tais casos eram minoritários. Na grande maioria das fábricas, os trabalhadores tinham recursos suficientes para conseguir conduzir a empresa sem patrões.

Os proprietários tentaram falsificar os livros de contabilidade para esconder pedidos, o Comitê de Fábrica era forçado a encontrar formas de controlar os livros. Os proprietários também tentavam roubar os produtos – tanto que o comitê precisou criar a regra de que nada deveria entrar ou sair da fábrica sem a devida permissão. Quando a fábrica estava começando a fechar por falta de combustível, matéria-prima ou pedidos, o Comitê de Fábrica teve de mandar homens por toda a Rússia, até as minas ou até o Cáucaso, em busca de petróleo, para a Crimeia para conseguir algodão; e vários agentes foram enviados pelos trabalhadores para tentar vender os produtos (…). O Comitê de Fábrica foi criado pela situação anárquica da Rússia, forçado pela necessidade de aprender a dirigir as indústrias. Assim, quando chegou o momento, os trabalhadores russos conseguiram tomar o controle da situação com pouco atrito.

Uma pequena história de um grande aprendizado
Em Novgorod, havia uma fábrica têxtil. No início da revolução, o dono pensou: “Não poderei lucrar enquanto durar essa revolução. Vou fechar a fábrica até que tudo tenha passado”. Ele, então, fechou a fábrica e, junto com os funcionários administrativos, químicos, engenheiros e gerentes, pegou o trem para Petrogrado. Na manhã seguinte, os trabalhadores abriram a fábrica.

Esses trabalhadores eram, talvez, um pouco mais ignorantes do que a média. Eles não sabiam nada sobre os processos técnicos de manufatura, contabilidade e gerenciamento ou vendas.

Elegeram um Comitê de Fábrica e descobriram uma certa quantidade de combustível e matéria-prima estocada, podendo, assim, iniciar a fabricação de roupas de algodão. Sem saber o que era feito com a roupa depois de fabricada, eles primeiro guardaram o suficiente para suas famílias. Depois, por terem alguns teares quebrados, enviaram um delegado a uma empresa de conserto de máquinas dizendo que dariam roupas em troca de assistência técnica. Feito isso, fizeram um acordo com a cooperativa local, trocando roupas por comida. Eles ampliaram o escambo, chegando a trocar roupas por combustível com o mineiros de Kharkov, e por transporte com o sindicato de ferroviários.

Mas, finalmente, tinham abarrotado o mercado com roupas de algodão e se depararam com uma demanda que as roupas não poderiam satisfazer – o aluguel. Eram os dias do Governo Provisório, quando ainda existiam donos de imóveis. O aluguel tinha de ser pago em dinheiro. Assim, eles carregaram um trem com roupas e mandaram, sob a responsabilidade de um membro do Comitê, para Moscou. Quando ele chegou na estação, foi até uma loja de alfaiates e perguntou se eles precisavam de roupas.

– Quanto?, perguntou o alfaiate.
– Um trem carregado, respondeu o membro do comitê.
– Quanto custa?
– Eu não sei. Quanto você paga normalmente pelas roupas?

O alfaiate conseguiu a roupa por muito pouco, e o trabalhador, que nunca tinha visto tanto dinheiro de uma só vez, voltou a Novgorod muito feliz. O comitê de fábrica tinha calculado, com base na produção média, por quanto eles precisavam vender o excesso de produção para conseguir dinheiro suficiente para pagar o aluguel de todos os trabalhadores!

Assim por toda a Rússia, os trabalhadores estavam aprendendo os fundamentos da produção industrial e até da distribuição, de modo que quando a revolução de novembro aconteceu, eles conseguiram se ajustar ao controle operário da indústria.