“Indignados”, “Anonymous”, “Somos 99%”, “Geração à Rasca”. O que propõe os novos movimentos e quais são suas diferenças com os socialistas?Há, sem sombra de dúvida, uma nova situação mundial. As revoluções árabes, a crise econômica mundial e os planos de “austeridade” impostos pelos governos fizeram despertar em inúmeros países uma infinidade de novos movimentos sociais: “Indignados” e “Democracia Real Já!” na Espanha; “Occupy Wall Street” e “Somos 99%” nos EUA; “Anonymous” em todo o mundo; “Geração à rasca” (em perigo) em Portugal e um longo etc. O caráter espontâneo desses movimentos é evidente: atos marcados pelo Facebook, cartazes de papelão e uma incrível criatividade nas formas de luta e expressão. São movimentos que inspiram e cativam!

Mas, para além das questões de forma, há também as questões de conteúdo. Qual é o significado mais geral de todos esses movimentos? Quais suas perspectivas? Seus méritos? Seus limites? Uma resposta precisa a essas perguntas é fundamental para uma estratégia revolucionária, que deve evitar tanto o sectarismo estéril frente aos movimentos populares espontâneos, quanto o oportunismo diante de forças tão vivas e combativas.

Por qual mundo se luta?
Recentemente, Boaventura de Sousa Santos, um intelectual português amplamente reconhecido nos novos movimentos sociais, escreveu um artigo denominado “Carta às esquerdas”, onde expõe as bases teóricas para uma “renovação” do que ele chama de “esquerdas”. Nesta carta, Sousa Santos defende que “a propriedade privada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas”. Esta frase encerra em si todo um programa, mas, infelizmente, está errada da primeira à última palavra.

A propriedade privada não é, nunca foi, e nunca será um “bem social”. A propriedade privada é fruto da apropriação, por um indivíduo, do trabalho excedente produzido por toda a sociedade. Como pode então o roubo do trabalho social ser ao mesmo tempo um bem social? Resposta: não pode. Por isso a propriedade privada não deve ser “uma entre várias formas de propriedade”. Ela deve ser eliminada e substituída pela propriedade estatal, primeiro passo rumo à sua socialização completa.
No campo político, Sousa Santos afirma: “A defesa da

democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas.” O texto não explica o que significa “de alta intensidade”, mas supomos que seja uma democracia mais “participativa” do que a atual. Mas o problema fundamental da democracia não é a sua maior ou menor “intensidade”, nem a existência de mais ou menos mecanismos de participação popular. O problema fundamental é o seu caráter de classe: uma democracia que serve à dominação de uma classe sobre a outra; que tem assegurada a vitória do capital em todos os terrenos importantes; que tem por trás de si forças repressivas selvagens e assassinas; que se baseia em leis que condenam e esmagam a pobreza, enquanto criminalizam a luta e a organização da classe trabalhadora – enfim, uma democracia burguesa.

Um exemplo prático dessa concepção de “democracia de alta intensidade” é o movimento “Democracia Real Já!” na Espanha, cujo programa não fala uma única palavra sobre o fim da monarquia, nem sobre a autodeterminação das nações oprimidas pelo Estado espanhol, nem sobre a expropriação dos grandes bancos e monopólios espanhois. O que esta nova democracia tem de “real” ou de “alta intensidade” então? Em quais instituições

este novo modelo “democrático” se baseará? No atuais parlamentos nacionais? No Parlamento Europeu? Mas os trabalhadores gregos já estão recebendo uma dura lição sobre estas instituições: milhões lutam contra os planos de “austeridade”, enquanto o governo e o parlamento grego permanecem de joelhos diante dos bancos alemães. A verdade é que a democracia burguesa não pode ser reformada, intensificada ou radicalizada. Ela deve ser destruída e susbstituída por um regime político absolutamente distinto, não em sua forma, mas no seu conteúdo de classe: uma democracia operária, baseada nas organizações da classe trabalhadora.

O caráter de classe dos novos movimentos
A caracterização social dos novos movimentos é que são movimentos juvenis-populares sem um claro caráter de classe. Os trabalhadores ainda representam uma pequena minoria nessas manifestações. A exceção é a Grécia, onde as lutas têm os métodos tradicionais da classe trabalhadora: a mobilização de massas e a greve geral.
Até agora, infelizmente, o conteúdo social desses movimentos tem determinado também a relação que estes estabelecem com as organizações operárias: os sindicatos e os partidos de esquerda. Sobretudo na Espanha e também no Brasil, os novos movimentos tem sido avessos à participação das organizações da classe trabalhadora nos atos, acampamentos e manifestações. O discurso predominante é de que só se pode participar desses movimentos como “pessoa física”. Vejamos esse argumento mais de perto.
O corte do 13º e 14º salários em Portugal não é um ataque às “pessoas físicas” em geral, mas sim aos trabalhadores. Medidas similares estão sendo tomadas pelos governos na Espanha, EUA, Brasil, Grécia e em muitos países. O que tudo isso tem a ver com as “pessoas físicas”? Nada!

É evidente que se trata de ataques de uma classe contra a outra: da burguesia contra o proletariado. Assim, nada mais justo do que os trabalhadores participarem não como “pessoas físicas”, mas sim como classe, ou seja, através de suas organizações políticas e sindicais.

Os sindicatos organizam os trabalhadores por empresa ou profissão; já os partidos organizam os trabalhadores por afinidade ideológica. Combinadas, essas formas de organização são extremamente poderosas e poderiam significar um salto na capacidade de mobilização, organização e continuidade de todos esses movimentos.

O sentimento anti-partido
O movimento ou rede “Anonymous” se tornou conhecido em todo o mundo por ter atacado virtualmente os sites da PayPal, Visa, MasterCard e outras operadoras de crédito que se recusavam a repassar os donativos feitos ao site WikiLeaks, quando da prisão de Julian Assange, em 2010. Aqui no Brasil, tiveram um importante papel na organização das marchas contra a corrupção, no dia 7 de setembro, e também no 15 de Outubro. Sua marca registrada é a máscara do personagem “V”, do filme “V de Vingança”. Infelizmente, durante essas manifestações, houve muitos conflitos em torno ao problema da presença dos partidos.

O sentimento anti-partido neste tipo de movimento tem uma raiz contraditória: por um lado é fruto de uma ideia progressiva – a de que o regime político burguês, com suas eleições fraudulentas, seu parlamento podre e carcomido, seus partidos burgueses vendidos e seu sistema eleitoral antidemocrático, não representa a sociedade. Esta é uma grande verdade. Mas é preciso distinguir entre o regime político como um todo e uma parte específica deste regime: as liberdades democráticas, que são uma enorme conquista do movimento de massas. Aqueles que exigem que se baixe a bandeira de um partido de esquerda ou que expulsam os militantes de um sindicato de uma manifestação simplesmente pisoteiam uma das principais liberdades democráticas: a liberdade de organização.

Pode-se argumentar que ninguém quer acabar com a liberdade de organização. Apenas se quer impedir que os partidos “aparelhem” os movimentos. Preocupação justa; método errado. O direito de organização é inseparável do direito de expressão. Levantar uma bandeira é expressar-se. Por isso a proibição das bandeiras tem consequencias gravíssimas para a unidade e a força do movimento.

A outra ideologia, amplamente difundida entre esses movimentos, é diretamente reacionária: é a ideia de que o poder não importa, de que a luta política é, por si só, corruptora e fonte de degeneração. Ou seja, o anarquismo. Essa tese de que devemos construir um “contra-poder” ou um “não-poder” pode ser muito charmosa, mas não tem nenhum conteúdo.

Todas as transformações sociais importantes se deram por meio de revoluções de massas. Todas as revoluções de massas colocaram não apenas a questão da derrubada do poder, mas também da sua conquista. Aqueles que, diante do poder, se negaram a tomá-lo, afastaram-no de si como um cálice envenenado, acabaram conduzindo o movimento à derrota e preparando a contraofensiva do inimigo. O Estado, e portanto o poder e a política, não são uma arbitrariedade, mas sim a expressão inevitável da divisão da sociedade em classes sociais antagônicas. Fazer uma revolução social não significa, ainda, acabar com esse antagonismo. Portanto, a tomada do poder (e não apenas a sua derrubada) continua sendo a tarefa daqueles que querem vencer.

O consenso e a democracia operária
Como os trabalhadores resolvem suas divergências? Por maioria. A proposta que obtiver a maior quantidade de votos é a vencedora. Todos aplicam o que a maioria decidiu. Isso se chama “democracia operária”. Esse método tem sido utilizado desde o surgimento do movimento operário, há cerca de 200 anos. Com ele, foram conquistadas pequenas reformas e feitas grandes revoluções.

Como os novos movimentos resolvem suas divergências? Por consenso. À primeira vista, parece muito mais democrático. Afinal, em uma votação de, digamos, 70% contra 30%, os derrotados serão obrigados a aplicar uma decisão com a qual não concordam. O método do consenso visa impedir essa “injustiça”. Só se faz aquilo que todos concordam! É muito bonito, porém inaplicável.

Qualquer pessoa que já tenha participado de alguma mobilização sabe o quanto é difícil convencer os trabalhadores a lutar. Os trabalhadores não são seres sedentos por combate, sempre dispostos aos mais heróicos sacrifícios. Isso é uma idealização romântica. Os trabalhadores são uma classe social explorada, oprimida e alienada, que durante a maior parte do tempo reproduz as ideias de seus dominadores. É uma classe “em si”, antes de se tornar uma classe “para si”. Por isso, quase sempre, há uma enorme maioria que é contra a luta ou tem medo dela. De tempos em tempos, essa difícil correlação de forças se inverte, e uma parte considerável dos trabalhadores vira à esquerda, muda de opinião, se dispõe a sair à luta. Mas mesmo nesses momentos, não é possível convencer a totalidade da categoria, da empresa ou da classe. Na melhor das hipóteses, se conquista uma maioria mais ou menos sólida – mas nunca a totalidade.

Por isso, buscamos ganhar a consciência da maioria da classe, nunca da totalidade. Isso é o suficiente para que se faça uma greve, uma passeata e até uma revolução. O que aconteceria se, em uma greve, os trabalhadores adotassem o método do consenso? A resposta é simples: não aconteceria nada, eles não fariam nada, ficariam paralisados porque sempre haveria alguém para “vetar” as decisões da diretoria, da assembléia ou de toda a categoria. Seria a ditadura da minoria sobre a maioria. Não é preciso dizer que esse método seria o paraíso dos provocadores, da patronal e dos governos.

A atitude dos socialistas
Diante de movimentos tão heterogêneos e contraditórios, os socialistas adotam a atitude mais paciente e construtiva possível. Queremos marchar juntos e buscaremos todos os acordos para isso. Ao mesmo tempo, lutaremos em todos os atos e atividades não apenas para que se respeite nosso direito de expressão (e, portanto, de portar bandeiras, de nos declararmos membros de um partido etc.), mas, sobretudo, para que esses movimentos se aproximem da classe trabalhadora, adotem seus métodos, enriqueçam-se com a experiência dos velhos combatentes operários, e, ao mesmo tempo, rejuvenesçam o movimento de massas com sua criatividade e irreverência.

É o próprio personagem “V”, do filme “V de Vingança”, que sentencia: “Ninguém deveria temer seu governo. O governo é que deveria temer seu povo”. Devemos acrescentar que somente o povo trabalhador é capaz de impor aos governantes um medo verdadeiro. A unidade com os trabalhadores e o respeito às suas organizações é, portanto, a única garantia de futuro de todos esses movimentos.
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