É praticamente impossível ignorar a existência do “fenômeno” O Código da Vinci. Mundo afora, o livro de Dan Brown já vendeu mais de 40 milhões exemplares e atingiu a impressionante marca de 1,137 milhão de cópias vendidas no Brasil. Some-se a isso a infinidade de “estudos” (Revelando, Decifrando, Explicando…. O Código da Vinci) lançados em livros e DVD’s e temos um dos maiores sucessos editoriais dos últimos tempos.

Como era de se esperar, a versão cinematográfica do romance só aumentou as cifras astronômicas que cercam O Código. Tendo custado a “bagatela” de US$ 125 milhões, somente em seu primeiro fim de semana o filme arrecadou, em todo mundo, US$ 224 milhões. No Brasil, os produtores do blockbuster (arrasa-quarteirão, literalmente) embolsaram R$ 9,9 milhões, tendo levado exatas 1.120.218 pessoas às salas de cinema.
Produtos evidentemente sintonizados com o processo de mercantilização dos bens culturais, o livro e o filme, contudo, merecem ao menos uma análise. Seja para desmistificar a infinidade de bobagens que têm se construído em torno deles, seja para apontar o que, de fato, eles têm de interessante.

Vendendo ficção como História
Grande parte do sucesso do livro de Dan Brown advém de um artifício: em suas primeiras páginas, o autor lista uma série de “fatos” através dos quais ele procura dar legitimidade histórica para os eventos que serão narrados.

Esses “fatos” mesclam um pouco de tudo: uma seita secreta (O Priorado do Sião), que seria guardiã dos pergaminhos que revelam a existência de uma linhagem descendente do casamento de Jesus Cristo e Maria Madalena; um intricado sistema de códigos e enigmas existentes nas obras de Leonardo da Vinci (um dos membros da mencionada seita) e as peripécias da Opus Dei (vide box), disposta a tudo para manter o tal segredo.
Antes de mais nada, cabe lembrar que o artifício utilizado por Brown não é novidade na literatura e nem sempre resulta em obras descartáveis. Muito pelo contrário. O gênero literário conhecido como “romance histórico” já produziu obras de excelente qualidade, assinadas por autores como Cervantes (Dom Quixote), Umberto Eco (O nome da Rosa), Marguerite Yourcenar (Memórias de Adriano), José Saramago (Memorial do Convento) e Gore Vidal (Hollywood).

A diferença do livro de Brown em relação a todos eles, contudo, é gigantesca. Apoiado em uma multimilionária estratégia de marketing, o autor e sua editora alimentaram amplamente a polêmica sobre a “realidade” de suas fantasiosas teses, transformando o livro no centro de uma polêmica mundial.

Uma polêmica que, diga-se de passagem, foi em muito inflada pela própria Igreja Católica – que “proibiu” seus fiéis de lerem o livro ou verem o filme – e por um batalhão de supostos “estudiosos” que dedicaram páginas para discutir o livro, concedendo a ele um caráter “científico” que ele nunca teve.

A “receita” de Brown não poderia resultar em outra coisa. Em um mundo em que a qualidade e a quantidade de leitura estão despencando de forma assustadora, a mescla de misticismo, teorias conspiratórias e suspense policial seduziu milhões. E pior: diante da quase completa ignorância de muitos sobre a história (e história da arte, em particular), o livro se vendeu como verdade reveladora.
Uma característica que se transferiu a um filme, sobre o qual o máximo que se pode afirmar é o seguinte: se o livro já não passava de um mero suspense razoavelmente bem escrito, o filme resultou numa alucinada história de ação com um roteiro bastante confuso.

O que não tem impedido milhões de fazerem fila para vê-lo. Muitos dos quais, infelizmente, saem do cinema sem se dar conta que o único mistério a ser desvendado nesta história toda é como fazer milhões de dólares oferecendo um pouco de suspense e polêmicas infrutíferas para as massas.

Opus Dei, mulheres e temores da Igreja
O Papa Bento XVI apressou-se a conclamar os católicos a boicotarem o livro e o filme, caracterizando-os como um apanhado de “calúnias e difamações” contra o cristianismo, baseadas em “erros históricos e teológicos”.

Uma postura que chega a ser irônica. Em primeiro lugar, porque a própria história do cristianismo é marcada por suposições sem bases históricas e por um longo processo de criação e “escolha” de fatos que serviram para justificar o poder da igreja sobre seus fiéis. Para citar um exemplo, basta dizer que, no início da Era Cristã, dezenas de evangelhos (chamados de apócrifos) que traziam outras versões sobre a origem do cristianismo foram simplesmente descartados ou destruídos.

Contudo, o maior temor da Igreja não está naquilo que Dan Brown apresentou de ficcional em sua obra, e sim naquilo que é inquestionavelmente real. Em primeiro lugar, o papel que o cristianismo reserva às mulheres em sua história, em segundo, o poder da Opus Dei na sua atual hierarquia.

Independentemente do tipo de relacionamento que possa ter existido entre as figuras de Jesus Cristo e Madalena (personagens sobre os quais não há reais evidências históricas), o fato é que o Cristianismo, desde o seu nascedouro, fez o possível para destituir as mulheres de qualquer forma de poder em sua estrutura.

Com exceção da figura de Maria, transformada em virgem (numa proclamação papal, em 649 d.C) e de uma série de figuras femininas elevadas a santas, as mulheres, dentro da tradição cristã, sempre foram associadas ao “pecado original” e à raiz de muitos dos males que afetam a humanidade.

Neste sentido, é instigante a releitura que o Código propõe para o papel das mulheres nesta história.

Contudo, o que realmente causou calafrios à hierarquia da igreja foi o destaque que Brown deu à Opus Dei, a organização fundada pelo espanhol Josemaría Escrivã, em 1928. Ultra-conservadora e associada a regimes ditatoriais e fascistas (como o de Franco, na Espanha), a entidade goza de um status único na estrutura católica: é uma prelazia pessoal do papa, ou seja, só responde a ele, não precisando prestar contas a mais ninguém.

Com cerca de 60 mil adeptos ao redor do mundo (muitos deles membros de famílias poderosas como os Alckmin, no Brasil) e dona de uma fortuna incalculável, a Opus Dei, certamente, não gostou nada de ter a atenção mundial voltada para suas finanças escusas e seus métodos de auto-flagelação, como o cilício (uma liga cortante amarrada nas coxas para afastar os desejos da carne).

Enquanto isso….no cinema brasileiro

Uma matéria de O Estado de S. Paulo revelou que nada menos do que 80 filmes nacionais estão totalmente prontos, mas não têm nenhuma previsão para entrar em cartaz devido a um simples motivo: falta de telas em que possam ser apresentados.

A razão deste absurdo é prima-irmã do estrondoso “sucesso” de blockbusters como O Código Da Vinci: a completa submissão da produção artística às leis e aos interesses do mercado.

Se não bastasse o fato de termos a ridícula quantidade de cerca de 1.700 salas de cinema em todo o país (concentradas em apenas 8% das cidades brasileiras), os grandes estúdios mantêm um quase monopólio do sistema de distribuição no país. Em meados de maio, O Código ocupou 534 salas, os X-Men invadiram outras 580 e Missão Impossível tomou de assaltou mais 451. É só fazer as contas: restaram pouco menos de 200 salas para todo o restante dos filmes.

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