O que os leitores do Opinião Socialista encontraram nos textos já publicados, e ainda poderão descobrir nos próximos artigos desta série a propósito do aniversário de 70 anos da Quarta Internacional, é uma história da luta política que transformou o trotskismo na única corrente internacional independente, tanto da social-democracia, quanto do estalinismo. Mas, é preciso dizer que, quando se trata da história da esquerda operária e popular, a defesa do marxismo revolucionário foi somente uma dimensão da batalha contra a exploração capitalista e as tiranias burocráticas. Seria uma injustiça lembrar os debates que explicam a vigência do programa da Quarta Internacional, e esquecer aqueles que lutaram por ela.

Não devemos esquecer que, na contra-corrente das ilusões majoritárias na esquerda, sustentando a defesa do programa que era a memória coletiva acumulada por várias gerações de lutadores, estavam militantes que entregaram suas vidas à causa do socialismo. Trotsky foi acossado e difamado, implacavelmente, em vida, e caluniado, mesmo depois de assassinado. Assim como fizeram com Marx, que foi muitas vezes evocado, décadas depois de sua morte para diminuir os marxistas, Trotsky chegou a ser invocado para desqualificar os trotskistas.

É verdade que eles nunca foram mais numerosos que umas poucas dezenas de milhares. Pareciam, no entanto, muito mais ameaçadores e influentes do que seu número poderia sugerir. Eles estiveram na linha de frente dos comunistas contra a repressão de Chiang-Kai Chek na China em 1927, quando em muitos países já começavam a ser expulsos dos PC’s fiéis a Moscou. Combateram o nazismo na Alemanha com a mesma coragem com que afrontavam o estalinismo na União Soviética. Lutaram contra o fascismo na guerra civil espanhola de armas nas mãos, sem por isso ceder apoio político ao Governo de Frente Popular. Foram presos aos milhares durante os processos de Moscou, mas não hesitaram em se oferecer como voluntários para lutar no Exército Vermelho quando Hitler invadiu a União Soviética em 1941. Estiveram nas trincheiras de Saigon no Vietnã ao final da Segunda Guerra Mundial, lutando contra o imperialismo francês e sendo perseguidos pelos estalinistas, e à frente da greve da Renault na França, lutando contra o governo de união nacional encabeçado por De Gaulle que contava com a participação de ministros do PC. Ajudaram a fazer marxista o vocabulário do movimento dos operários mineiros da Bolívia na revolução de 1952. Foram perseguidos pelo macartismo nos EUA nos anos cinqüenta, ao mesmo tempo em que resistiam nos campos de trabalho forçado de Vorkuta na Sibéria. Lutaram contra o imperialismo na América Latina, sem por isso cederem às pressões nacionalistas-desenvolvimentistas que se expressaram através do peronismo na Argentina, do getulismo no Brasil e do aprismo no Peru. Estiveram na primeira linha da solidariedade com a Argélia, mas não calaram diante da repressão nas ruas de Budapeste em 1956.

Fizeram de Cuba a sua bandeira, mas não traíram a esperança dos que cantavam a Internacional nas ruas de Praga quando os tanques enviados por Moscou invadiram a Tchecoslováquia em 1968. A história encontrou os trotskistas nas barricadas do Quartier Latin de Paris, em Lisboa na revolução portuguesa, na luta contra as ditaduras latino-americanas enfrentando a mais feroz repressão no estádio nacional de Santiago do Chile e nas prisões argentinas e brasileiras. Eles estiveram na guerra contra Somoza na Nicarágua, na resistência ao apartheid na África do Sul, e nas greves de Gdansk na Polônia. Resistiram à restauração capitalista na ex-URSS no início dos anos noventa, e ajudaram a construir um novo internacionalismo impulsionando a campanha contra a invasão do Iraque. Sua integridade foi posta à prova, impiedosamente, em todas as latitudes e longitudes.

Os trotskistas divulgaram o marxismo em dezenas de idiomas. Estudaram e escreveram muito, mas não se deixaram reduzir a um círculo literário. Interviram nos sindicatos, mas não se embriagaram com as rotinas sindicalistas. Uniram seu destino ao movimento do proletariado, mas não diminuíram sua militância ao obreirismo. Espalharam sua mensagem à escala internacional. Eles viajaram por toda parte, sacrificaram suas famílias, cruzaram continentes, mudaram de países, perderam empregos, falsificaram passaportes, trocaram de identidades, proletarizaram-se nas grandes indústrias, organizaram sindicatos, escreveram jornais, agitaram greves, impulsionaram a unificação das lutas, distribuíram boletins, fizeram campanhas, recolheram fundos, lideraram rebeliões, pegaram em armas, foram presos, e muitos pagaram com a vida a força de seu compromisso.

Mantiveram o fio de continuidade do programa marxista revolucionário e a independência da Quarta Internacional. Defender o marxismo sempre significou defender o programa da luta contra a propriedade privada, mas não é possível defender um programa sem construir um partido, um coletivo disciplinado em torno a um projeto estratégico. E a construção de um movimento político exige, em primeiro lugar, a disposição de preservar a qualquer preço a sua independência das pressões sociais hostis aos interesses do proletariado. Essa independência deve ser política e ideológica, mas, também, material. Destacaram-se pelo seu engajamento desinteressado e sua entrega despojada, uma prova de sua força moral. Viveram a mais grandiosa das aventuras contemporâneas: a luta pela revolução mundial.

Mas, a história lhes foi ingrata. O internacionalismo tinha sido derrotado, e os seus defensores tiveram o destino dos que não temem marchar contra a corrente: o isolamento. Depois que a social democracia e o estalinismo se transformaram nas correntes mais influentes do movimento operário durante a reconstrução capitalista do chamado boom do pós-guerra, a divisão que se instalou no movimento socialista foi fatal para a causa internacionalista e revolucionária. As lutas no Leste, no Ocidente e no Sul do planeta se desarticularam, e deram as costas umas para as outras. O internacionalismo se subordinou aos interesses diplomáticos de coexistência pacífica de Moscou, Belgrado, Tirana, Pequim, e Havana, e se transfigurou em nacionalismo dos Estados auto- proclamados “socialistas”, ou seja, em defesa dos interesses das burocracias que parasitavam as conquistas econômico-sociais das revoluções anti-capitalistas.

No Ocidente, a maioria dos que lutavam contra o capitalismo deram as costas para os que lutavam contra as ditaduras burocráticas na URSS e no Leste Europeu. Poucos foram os que, na esquerda, se levantaram em Paris, Roma ou Londres para denunciar a repressão na Hungria em 1956, ou mesmo em Praga em 1968. No Leste e na URSS, depois da destruição da Primavera de Praga, e pior ainda depois da derrota da revolução polonesa de 1981, diminuía a influência do marxismo entre os que resistiam às ditaduras burocráticas.

Os trotskistas ficaram politicamente isolados. Enquanto Internacional, a Quarta deixou de existir nos anos cinqüenta. A reunificação parcial de 1963 permitiu um reagrupamento que se demonstrou pouco sólido e que foi destruído no final dos setenta. Preservaram-se algumas articulações internacionais, entre as quais a mais dinâmica embora, predominantemente, latino-americana, foi a LIT. Durante os anos noventa a LIT sofreu uma crise importante, se recuperou, e hoje é a ponta de lança para a reconstrução da IV Internacional.

Prisioneiros na marginalidade dos grandes fluxos de opinião do movimento socialista, e submetidos às terríveis pressões dos grandes aparelhos social-democratas, nacionalistas e, sobretudo, do estalinismo, sofreram as seqüelas de uma corrente que soube preservar sua independência, porém, não superou sua condição minoritária. Dividiram-se, dramaticamente, em várias tendências, cedendo às pressões políticas nacionais mais significativas em cada país. O nacional-trotskismo, ou seja, a ideologização da possibilidade de construção de uma organização revolucionária dentro de fronteiras nacionais – mesmo quando um “partido-mãe” estava associado a pequenos círculos que mimetizavam sua experiência – num mundo em que a contra-revolução foi se globalizando, foi, em maior ou menor medida, o destino trágico das organizações trotskistas mais fortes.

Descobriram-se na mais severa solidão revolucionária. Surgiram reflexos inflexíveis “instintivos” próprios de uma fraternidade de abnegados. Ao longo dos últimos quinze anos, depois da restauração capitalista na URSS, não permaneceram isentos às vicissitudes da imensa confusão ideológica e adaptação política que atingiu o conjunto da esquerda.

Não obstante, deixaram duas heranças de valor incalculável. Os trotskistas foram politicamente derrotados, mas intelectualmente vitoriosos. A obra de Leon Trotsky e dos que desenvolveram o marxismo a partir de suas premissas foi a que melhor respondeu aos três maiores desafios teóricos colocados pelo século XX: uma interpretação sobre a natureza da sociedade soviética depois dos anos trinta, uma interpretação para as revoluções sociais dos países coloniais e semi-coloniais, e uma interpretação para o processo de restauração do capitalismo.

A segunda herança foi a inspiração militante: marcharam contra a corrente, enquanto o nome do marxismo era conspurcado pelos crimes da social-democracia e do estalinismo, defendendo uma bandeira sem manchas. Deixaram um exemplo pela sua coragem, perseverança e integridade moral. Defenderam, sozinhos, a tradição internacionalista do marxismo quando ela foi entregue nas suas mãos. Honraram a causa mais elevada do nosso tempo. Merecem ser lembrados. O que se encontrará nas páginas deste jornal é um tributo às idéias pelas quais lutaram.

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