A crise do capitalismo faz com que um importante debate retorne com mais força: as limitações do próprio Fórum Social, ou seja, seu próprio caráter e existência. Quando nasceu, teve o potencial de influenciar e coordenar lutas e questionamentos políticos em escala planetária. Agora, há um questionamento que paira no ar: para que discutem e se reúnem as organizações sociais, políticas, sindicais e não-governamentais? Qual deve ser o papel dos movimentos sociais ao trocarem experiências com outros movimentos e militantes de outras regiões e países?

O FSM surgiu em 2001, mas sua origem está ligada aos embates dos movimentos altermundialistas (ou antiglobalização, como são conhecidos pelos representantes do capital) de fins da década de 1990 e início dos anos 2000, a partir das mobilizações de Gênova e Seattle, entre outras, contra as instituições multilaterais que mantém e desenvolvem a dominação neoliberal no mundo: OMC, G-7, FMI, Banco Mundial, etc.

O FSM é, por excelência, o espaço dos chamados “novos” movimentos sociais. É avesso à idéia de sujeito histórico e da centralidade do proletariado na luta contra a superação do mundo burguês. O FSM representaria uma nova maneira de fazer política, em contraposição às práticas da chamada “velha esquerda”, que, em geral, é identificada com todas as correntes marxistas, tidas por eles como burocráticas, autoritárias e verticais.

Em contraposição a essa “velha esquerda”, o FSM representaria a pluralidade, o respeito às diferenças e a horizontalidade. Por isso, muitos dos que fazem parte de sua principal estrutura deliberativa, o Conselho Internacional (CI), consideram-no como a maior inovação política dos últimos tempos. Nenhum dos diversos movimentos sociais – nem mesmo os de cunho racial, de gênero, classe, orientação sexual, ambiental, étnico, etc. – têm prevalência sobre os demais.

De fato, a capacidade de unir uma gama imensa e plural de lutadores de diversos movimentos sociais carrega uma grande potencialidade, mas isso se torna particularmente estéril quando os grandes desafios do mundo capitalista (guerras no Iraque e no Afeganistão, crise dos alimentos, genocídio em Gaza, crise econômica mundial) não encontram soluções em seu seio ou, dito de outra forma, quando o FSM se mostra incapaz de fornecer respostas à altura dos desafios. Essa incapacidade já vem sendo denunciada por alguns dos seus integrantes, mas é impossível de ser resolvida dentro das atuais bases teóricas, organizativas e estruturais do próprio Fórum.

Na realidade, a importância do exercício do internacionalismo militante e o debate sobre as estratégias encontram algumas respostas nos próprios acontecimentos históricos recentes. Há pouco mais de 40 anos, em 1968, estudantes e trabalhadores de Paris lutavam contra o regime do general De Gaulle, o capitalismo e o padrão de vida da sociedade burguesa em geral, rompendo o cerco e a barreira da social-democracia, por um lado e, do stalinismo, por outro. O mesmo acontecia com a luta das mulheres, dos oprimidos e dos trabalhadores tchecos na Primavera de Praga em oposição à presença do governo e do exército da URSS em seu território. No Brasil, também estudantes e trabalhadores, mulheres e negros, lutavam contra a ditadura militar patrocinada pelos EUA. Mesmo no centro do imperialismo, Malcolm X, os Panteras Negras e Luther King se manifestavam pelos direitos civis dos negros norte-americanos.

Nicolas Sarkozy, presidente da França, diante da grave crise econômica, disse querer refundar o capitalismo. Foi o próprio Sarkozy quem chegou a afirmar que o legado que “Maio de 68” nos deixou, foi o mundo neoliberal que possuímos atualmente. Obviamente, não podemos creditar ao Maio de 68 o neoliberalismo de hoje, apesar de vários de seus líderes da época se encontrarem, atualmente, tranqüila e inescrupulosamente, nas benesses das estruturas de poder das classes dominantes contra as quais lutaram, mesmo que hoje reneguem àquelas jornadas de luta. A vaga revolucionária dos anos 1960 (1967-1975) conseguiu vitórias importantes, tanto no terreno dos direitos civis, quanto em âmbito da política internacional (a derrota ianque no Vietnã foi talvez a maior delas), mas foi incapaz de evitar que o capital remodelasse sua hegemonia e instaurasse a forma destrutiva neoliberal a partir de fins dos anos 1970.

O mundo neoliberal que emergiu no período seguinte só foi possível porque os movimentos das jornadas anteriores que “exigiam o impossível” não foram vitoriosos em seus objetivos estratégicos. Logo, a emancipação política contestatória da conjuntura não se transformou em emancipação humana, ou seja, houve uma desconexão entre o programa mínimo e o programa máximo necessário. É sobre esse passado histórico que a direção do FSM deita suas raízes. Acaba cometendo os mesmos equívocos.

Ao criticar o que chama de velha esquerda, o FSM acaba por jogar no mesmo saco todas as correntes oriundas do marxismo e suas lutas correlatas, na prática, igualando o stalinismo ao legado de Marx. Assim, a categoria classe social é banida de suas elaborações, a luta pela conquista do poder político é minimizada e desprezada pelos seus integrantes e as diversas particularidades dos diversos movimentos sociais não se articulam com a luta universal contra o capitalismo em geral. Em suma, sem a união da particularidade (movimentos sociais específicos) com a universalidade (ordem do capital), ou das bandeiras mínimas com as bandeiras máximas, os movimentos sociais ficam limitados ao horizonte do próprio sistema e passam a discutir qual a melhor forma de opressão e exploração a que irão se submeter.

Se é verdade que o stalinismo e os partidos comunistas reduziram de forma mecânica, artificial e autoritária as diversas especificidades e particularidades à exploração de classe, abrindo dessa forma o espaço para a onda “ONGueira” nos anos 1990, o FSM comete o erro oposto: igualou, de maneira abstrata, todas as formas de opressão e exploração e baniu a luta de classes de seu vocabulário e de sua prática. Portanto, a questão da luta pelo poder e a coordenação das lutas em escala internacional é completamente desprezada.

Assim, as propostas do FSM adquirem um caráter utópico, pois procuram conciliar o inconciliável: a idéia de superação da opressão e exploração sofrida pelos diversos segmentos representados pelos movimentos sociais específicos à inexistência de um questionamento global de superação do capitalismo.

Uma vez que o stalinismo foi derrotado mundialmente, que a social-democracia (incluindo aí o petismo brasileiro) passou a gerenciar o capitalismo sem diferenças qualitativas para com os liberais e que o capitalismo reiteradamente vem demonstrando que nada tem a oferecer senão guerras, fome, pobreza, desemprego e destruição da natureza e do planeta, o legado de 1968 e a união dos diversos movimentos sociais articulados a partir da perspectiva emancipatória da classe do proletariado é, mais do que possível, necessária.

Nesse sentido, cabe ressaltar a importância do projeto de Leon Trotsky, a IV Internacional, balizada pelo método do Programa de Transição que articula as dimensões da luta social imediata com a estratégia da superação sistêmica do capital:

“A IV Internacional não rejeita as reivindicações do velho programa mínimo, na medida em que elas conservam alguma força vital. Defende incansavelmente os direitos democráticos dos operários e suas conquistas sociais. Mas conduz este trabalho diário ao quadro de uma perspectiva correta, real, ou seja, revolucionária. À medida em que as velhas reivindicações parciais mínimas das massas se chocam com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isto ocorre a cada passo – a IV Internacional faz avançar um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido é dirigir-se, cada vez mais aberta e resolutamente, contra as próprias bases do regime burguês. O velho programa mínimo é constantemente ultrapassado pelo programa de transição, cuja tarefa consiste numa mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária”.

(Artigo publicado originalmente no IX Fórum Social Mundial, em 2009)