O IX Fórum Social Mundial começa em Belém (PA) num momento histórico particular. O capitalismo está diante de sua maior crise econômica desde 1929 e a maioria da população mundial assiste, de maneira esperançosa, o início de um governo de um presidente negro, com nome de árabe, no país mais poderoso do planeta. Sem dúvida, esses são os dois temas que, junto ao da catástrofe ambiental, devem chamar a atenção de quem está em Belém e daqueles que acompanham com atenção os dias do FSM.

Mas a crise do capitalismo faz com que um importante debate retorne com mais força: as limitações do próprio Fórum Social, ou seja, seu próprio caráter e existência. Quando nasceu, teve o potencial de influenciar e coordenar lutas e questionamentos políticos em escala planetária. Agora, há um questionamento que paira no ar: para que discutem e se reúnem as organizações sociais, políticas, sindicais e não-governamentais? Qual deve ser o papel dos movimentos sociais ao trocarem experiências com outros movimentos e militantes de outras regiões e países?

O FSM surgiu em 2001, mas sua origem está ligada aos embates dos movimentos altermundialistas (ou antiglobalização, como são conhecidos pelos representantes do capital) de fins da década de 1990 e início dos anos 2000, a partir das mobilizações de Gênova e Seattle, entre outras, contra as instituições multilaterais que mantém e desenvolvem a dominação neoliberal no mundo: OMC, G-7, FMI, Banco Mundial, etc.

O FSM é, por excelência, o espaço dos chamados “novos” movimentos sociais. É avesso à idéia de sujeito histórico e da centralidade do proletariado na luta contra a superação do mundo burguês. O FSM representaria uma nova maneira de fazer política, em contraposição às práticas da chamada “velha esquerda”, que, em geral, é identificada com todas as correntes marxistas, tidas por eles como burocráticas, autoritárias e verticais.

Em contraposição a essa “velha esquerda”, o FSM representaria a pluralidade, o respeito às diferenças e a horizontalidade. Por isso, muitos dos que fazem parte de sua principal estrutura deliberativa, o Conselho Internacional (CI), consideram-no como a maior inovação política dos últimos tempos. Nenhum dos diversos movimentos sociais – nem mesmo os de cunho racial, de gênero, classe, orientação sexual, ambiental, étnico, etc. – têm prevalência sobre os demais.

De fato, a capacidade de unir uma gama imensa e plural de lutadores de diversos movimentos sociais carrega uma grande potencialidade, mas isso se torna particularmente estéril quando os grandes desafios do mundo capitalista (guerras no Iraque e no Afeganistão, crise dos alimentos, genocídio em Gaza, crise econômica mundial) não encontram soluções em seu seio ou, dito de outra forma, quando o FSM se mostra incapaz de fornecer respostas à altura dos desafios. Essa incapacidade já vem sendo denunciada por alguns dos seus integrantes, mas é impossível de ser resolvida dentro das atuais bases teóricas, organizativas e estruturais do próprio Fórum.

Na realidade, a importância do exercício do internacionalismo militante e o debate sobre as estratégias encontram algumas respostas nos próprios acontecimentos históricos recentes. Há pouco mais de 40 anos, em 1968, estudantes e trabalhadores de Paris lutavam contra o regime do general De Gaulle, o capitalismo e o padrão de vida da sociedade burguesa em geral, rompendo o cerco e a barreira da social-democracia, por um lado e, do stalinismo, por outro. O mesmo acontecia com a luta das mulheres, dos oprimidos e dos trabalhadores tchecos na Primavera de Praga em oposição à presença do governo e do exército da URSS em seu território. No Brasil, também estudantes e trabalhadores, mulheres e negros, lutavam contra a ditadura militar patrocinada pelos EUA. Mesmo no centro do imperialismo, Malcolm X, os Panteras Negras e Luther King se manifestavam pelos direitos civis dos negros norte-americanos.

Nicolas Sarkozy, presidente da França, diante da grave crise econômica, disse querer refundar o capitalismo. Foi o próprio Sarkozy quem chegou a afirmar que o legado que “Maio de 68” nos deixou, foi o mundo neoliberal que possuímos atualmente. Obviamente, não podemos creditar ao Maio de 68 o neoliberalismo de hoje, apesar de vários de seus líderes da época se encontrarem, atualmente, tranqüila e inescrupulosamente, nas benesses das estruturas de poder das classes dominantes contra as quais lutaram, mesmo que hoje reneguem àquelas jornadas de luta. A vaga revolucionária dos anos 1960 (1967-1975) conseguiu vitórias importantes, tanto no terreno dos direitos civis, quanto em âmbito da política internacional (a derrota ianque no Vietnã foi talvez a maior delas), mas foi incapaz de evitar que o capital remodelasse sua hegemonia e instaurasse a forma destrutiva neoliberal a partir de fins dos anos 1970.

O mundo neoliberal que emergiu no período seguinte só foi possível porque os movimentos das jornadas anteriores que “exigiam o impossível” não foram vitoriosos em seus objetivos estratégicos. Logo, a emancipação política contestatória da conjuntura não se transformou em emancipação humana, ou seja, houve uma desconexão entre o programa mínimo e o programa máximo necessário. É sobre esse passado histórico que a direção do FSM deita suas raízes. Acaba cometendo os mesmos equívocos.

Ao criticar o que chama de velha esquerda, o FSM acaba por jogar no mesmo saco todas as correntes oriundas do marxismo e suas lutas correlatas, na prática, igualando o stalinismo ao legado de Marx. Assim, a categoria classe social é banida de suas elaborações, a luta pela conquista do poder político é minimizada e desprezada pelos seus integrantes e as diversas particularidades dos diversos movimentos sociais não se articulam com a luta universal contra o capitalismo em geral. Em suma, sem a união da particularidade (movimentos sociais específicos) com a universalidade (ordem do capital), ou das bandeiras mínimas com as bandeiras máximas, os movimentos sociais ficam limitados ao horizonte do próprio sistema e passam a discutir qual a melhor forma de opressão e exploração a que irão se submeter.

Se é verdade que o stalinismo e os partidos comunistas reduziram de forma mecânica, artificial e autoritária as diversas especificidades e particularidades à exploração de classe, abrindo dessa forma o espaço para a onda “ONGueira” nos anos 1990, o FSM comete o erro oposto: igualou, de maneira abstrata, todas as formas de opressão e exploração e baniu a luta de classes de seu vocabulário e de sua prática. Portanto, a questão da luta pelo poder e a coordenação das lutas em escala internacional é completamente desprezada.

Assim, as propostas do FSM adquirem um caráter utópico, pois procuram conciliar o inconciliável: a idéia de superação da opressão e exploração sofrida pelos diversos segmentos representados pelos movimentos sociais específicos à inexistência de um questionamento global de superação do capitalismo.

Uma vez que o stalinismo foi derrotado mundialmente, que a social-democracia (incluindo aí o petismo brasileiro) passou a gerenciar o capitalismo sem diferenças qualitativas para com os liberais e que o capitalismo reiteradamente vem demonstrando que nada tem a oferecer senão guerras, fome, pobreza, desemprego e destruição da natureza e do planeta, o legado de 1968 e a união dos diversos movimentos sociais articulados a partir da perspectiva emancipatória da classe do proletariado é, mais do que possível, necessária.

Nesse sentido, cabe ressaltar a importância do projeto de Leon Trotsky, a IV Internacional, balizada pelo método do Programa de Transição que articula as dimensões da luta social imediata com a estratégia da superação sistêmica do capital:

“A IV Internacional não rejeita as reivindicações do velho programa mínimo, na medida em que elas conservam alguma força vital. Defende incansavelmente os direitos democráticos dos operários e suas conquistas sociais. Mas conduz este trabalho diário ao quadro de uma perspectiva correta, real, ou seja, revolucionária. À medida em que as velhas reivindicações parciais mínimas das massas se chocam com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isto ocorre a cada passo – a IV Internacional faz avançar um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido é dirigir-se, cada vez mais aberta e resolutamente, contra as próprias bases do regime burguês. O velho programa mínimo é constantemente ultrapassado pelo programa de transição, cuja tarefa consiste numa mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária”.