Em viagem ao Haiti, dirigente do PSTU relata o drama de um país destruído pelo terremotoUma senhora vende batatas em Porto Príncipe. Uma cena comum, se ela não estivesse ocupando a entrada do que foi um grande banco haitiano. Hoje, apenas mais um sobrado destruído.

Volto ao Haiti sete meses depois do terremoto. Estive aqui em dezembro, um mês antes do fatídico 12 de janeiro que devastou a capital do país.

Quase todas as lojas viraram montes de escombros. Uma multidão de camelôs substituiu os comerciantes de antes, nas portas do que foram as lojas.

Ninguém olha mais para os destroços. É como se fossem parte da paisagem.
Aqui morreram centenas de milhares de pessoas. Todos perderam alguém e a dor segue existindo.

Um mês que não será esquecido
O terremoto atingiu a cidade pelo sul, arrasando o centro e os bairros populares nas encostas dos morros. Sessenta por cento das casas caíram ou ficaram condenadas. Dois milhões de pessoas desabrigadas. O povo andava pelas ruas sem saber o que fazer, nem para onde ir. Sem recursos para retirar os feridos dos escombros, sem local seguro de refúgio, sobrava o desespero.

O Estado haitiano desapareceu. Não havia nas ruas nem equipes de resgate, nem soldados. As tropas da Minustah (a missão da ONU liderada pelo Brasil) não ajudaram o povo, apenas se dedicaram a salvar os próprios soldados e alguns hotéis. René Préval, o presidente, também sumiu, provocando um ódio que só aumenta.

A “ajuda” internacional foi na verdade uma ocupação militar disfarçada por um espetáculo de mídia. Enormes contingentes de soldados dos EUA ocuparam mais uma vez o país. A ajuda mesmo foi pequena, quase nenhuma.

Os alimentos que chegaram foram poucos, lançados de caminhões ou distribuídos às pressas com medo de saques e revoltas. Os poucos médicos e equipes de resgate que chegaram trabalhavam desesperadamente, impotentes perante um desastre gigantesco.
Cada um dos poucos resgates se transformava em notícia importante para a mídia mundial. Mas, na verdade, só 150 pessoas foram retiradas dos destroços. Basta ver a dimensão da tragédia, com 250 mil mortos, para sentir o fracasso da “ajuda internacional”.

A única reação importante ao terremoto veio do próprio povo haitiano. Muitas vezes com as próprias mãos, retiraram as vítimas que puderam dos destroços. Com uma solidariedade comovente, se auto-organizaram para conseguir comida, ajudar os que mais precisavam e montar os acampamentos. Os jornais de todo o mundo ignoraram esse fato fantástico.

O mês que se seguiu ao terremoto nunca será esquecido pelos haitianos. A tragédia só matou tantos por aqui porque se abateu sobre um país devastado pelo capitalismo selvagem, e pelo fracasso da “ajuda”. Depois do espetáculo de mídia, os jornalistas foram embora. Ficaram os soldados.

Os dias passaram e só 2% do dinheiro prometido chegou. Mesmo assim, acabou em boa parte com os “gropowsk”, os “bolsos grandes” da corrupção.

Não existe nada de reconstrução até agora. As escolas e hospitais seguem destruídos desde janeiro. As aulas são ministradas embaixo de lonas. Só alguns prédios públicos tiveram os destroços removidos. Todo o restante segue gritando ao mundo que aqui ocorreu uma das maiores catástrofes do século 21.

Acomodação forçada, resistência reprimida
Paro em frente ao palácio presidencial destruído. Quando estive aqui em dezembro, por acaso filmei o palácio e a gigantesca praça (Champs de Mars) que o rodeia. Filmo novamente o palácio destruído e o acampamento que ocupa toda a praça, com 30 mil pessoas.

Pelas ruelas do acampamento, um grupo toma banho, aproveitando uma bica logo embaixo da estátua de Toussaint l’Ouverture, que antes dominava, imponente, a praça. Algumas barracas viraram pequenos comércios.

Um milhão e meio de pessoas vivem hoje nos acampamentos da capital. Todas as praças e campos de futebol foram ocupados. Como a ajuda não veio, viraram favelas permanentes.

Movimentos de protesto contra o governo e a Minustah explodiram. O governo e as tropas reprimiram. As barracas dos que participavam das mobilizações foram saqueadas. Três acampamentos foram destruídos.

Até três meses depois do terremoto se distribuíam cartões de comida. Os “políticos” do governo se apoderavam dos cartões, distribuíam uma parte para suas bases nos acampamentos e vendiam o restante.

Conseguiram assim controlar os acampamentos, combinando a repressão e o controle da comida.

Agora já não existem mais os cartões. As pessoas têm de se virar. Outubro é época de furacões no Caribe. Estão previstos três que podem passar pelo Haiti. Os acampamentos podem ser destruídos.

O plano Clinton
A comoção mundial com o terremoto levou a uma ideia de “todos juntos” ajudando o povo haitiano. Nada mais falso.

Existem grandes empresas para as quais a miséria no Haiti garante lucros. Um plano econômico está sendo aplicado no país. Multinacionais já instaladas, como Levis, Gap e Wrangler produzem têxteis para o mercado norte-americano.
A produção aqui tem uma dupla vantagem em relação à da China: salários ainda mais baixos (hoje 125 gourdes por dia, mais ou menos R$ 120 mensais) e uma distância muito menor do mercado dos EUA.

Bill Clinton, ex-presidente dos EUA, é o responsável pela comissão da ONU e o representante de Obama para o Haiti. Dirige a Comissão Interina de Reconstrução do Haiti (CIRH), junto com o primeiro-ministro haitiano. Na verdade, tem mais poder que o presidente ou a Minustah.

O plano Clinton tem dois centros: quarenta zonas francas e a reconstrução de Porto Príncipe. Clinton esteve no Haiti antes do terremoto com 150 empresários. Entre eles 12 brasileiros, inclusive o filho de José Alencar, vice- presidente e dono da Coteminas, a maior fábrica têxtil do Brasil.

Depois do terremoto, o norte-americano declarou que o plano segue de pé. Já existem terrenos destinados à construção das zonas francas, e acaba de ser votada pelo governo uma nova zona, agora em Le Cap.

A reconstrução da capital incluiria o “afastamento” de dois milhões de habitantes dos três milhões que existem hoje na cidade. Uma parte dessas pessoas voltaria para o interior do país. A outra seria localizada em novos acampamentos ao redor das zonas francas que serão construídas em localidades próximas à capital.

Trata-se da reprodução em escala ampliada do plano de George Soros, que já comprou um terreno ao lado de Citè Soleil (a maior favela de Porto Príncipe) para construir uma zona franca. A lógica é simples: ganhando a miséria que ganham, os operários só podem ir a pé para o trabalho.

Um estudioso haitiano tem feito uma comparação incrível. Ele estudou os gastos que os fazendeiros tinham com os escravos no passado e os que os burgueses têm com os operários no Haiti hoje. Chegou à conclusão de que os escravos custavam mais.
Ainda que de forma brutal, a classe dominante do passado tinha que se responsabilizar pela moradia, alimentação e saúde dos escravos.

Os burgueses de hoje não precisam pagar um salário que garanta a reprodução da mão de obra, porque têm à disposição 80% de desempregados. Não pagam nenhuma das conquistas dos séculos 19 e 20 como férias e décimo-terceiro salário. Não pagam praticamente nenhum imposto ao Estado, que não precisa assegurar água, esgotos, saúde ou educação. Não têm sequer os gastos mínimos dos donos de escravos do passado, em pleno século 21.

Impõe-se um capitalismo no Haiti em condições que se assemelham à barbárie. Podemos chamar o que está sendo feito aqui de capitalismo bárbaro.

Isso está sendo aplicado pelo imperialismo mais “moderno” dos EUA, com as bênçãos da ONU e de governos como de Lula, Evo Morales e Cristina Kirchner. Vem disfarçado pela fábula de “ajudar os pobres haitianos, criando trabalho para eles”.

A crise antes do terremoto
O Haiti viveu grandes lutas antes do terremoto. Houve um levante espontâneo em abril de 2008 causado pela fome, que chegou aos portões do palácio do governo. Foi detido por uma repressão brutal da Minustah, com oito mortos e quarenta feridos.

Em 2009, houve um forte ascenso estudantil com ocupações de faculdades e atos de rua. Todos fortemente reprimidos também pela Minustah.

O movimento mais importante foi a greve dos operários têxteis no ano passado. Trata-se do setor fundamental do proletariado haitiano, que estava reivindicando um salário de 200 gourdes (R$ 200). Uma mobilização de vários meses terminou com uma greve radicalizada que sacudiu Porto Príncipe por duas semanas, com passeatas de 15 mil operários todos os dias até o parlamento.

A reação foi duríssima. A burguesia fechou as fábricas e deixou os operários sem pagamento, asfixiando a greve. A Minustah deflagrou uma repressão brutal, impedindo qualquer movimento em toda a cidade. Um operário e um estudante morreram e 22 pessoas foram presas. A greve foi derrotada e o salário de 125 gourdes foi imposto.

Para desviar a atenção
O terremoto desarticulou todo o país e também as lutas. Por meses as pessoas se dedicaram a lamentar seus mortos e tentar sobreviver.
Surgiram lutas espontâneas e ocasionais que logo se dispersaram. Mas o povo haitiano não perdoou Préval e a Minustah.

As mobilizações começam a reaparecer, ainda que parciais. Na semana passada, quatrocentos operários têxteis ocuparam a frente do Ministério do Trabalho. A burguesia não está pagando sequer os 125 gourdes, apenas 80.

Os acampamentos decidiram “se levantar” contra as condições precárias. Um deles causou grande impacto. Na praça de Pétionville, velhas abriam a marcha brandindo galhos de árvores, um símbolo vodu. Gritavam “Bouch tout moun fann” (todos têm boca para comer).

A situação está ficando explosiva. O governo quer desviar as atenções para a eleição presidencial de novembro.

Mas as eleições num país ocupado são uma farsa. Não é o governo que dirige o país. Préval é um fantoche, submetido à Minustah e aos EUA, que ocupam o Haiti. Em novembro será eleito um novo boneco.

O povo demonstra enorme desinteresse. As últimas eleições parlamentares tiveram uma participação ridícula de apenas 5% dos haitianos. Como a próxima é presidencial, pode ser que aumente um pouco. Ou pode ser que se force algum fato político para tentar aumentar a participação no pleito.

Wycleff Jean poderia ter sido um fato assim. Aos nove anos, chegou aos EUA com sua família em um bote clandestino, fugido do Haiti. Admirador de Muhammad Ali e Malcom X, transformou-se em cantor de hip hop de enorme sucesso no mercado norte-americano e caribenho. Há três anos, foi nomeado embaixador itinerante do Haiti. Desde então, girou à direita. Defensor do plano Clinton, apoiado por várias das multinacionais têxteis instaladas no Haiti, Wycleff tentou se candidatar à presidência. Houve um enorme rebuliço, com muitos bairros pobres apoiando o cantor.

Mas o conselho eleitoral negou a candidatura. Na verdade, Préval vetou Wycleff com medo de perder as eleições. Aposta neste momento em Jube Célestin, diretor de uma instituição estatal responsável por uma parte da reconstrução do país. Um corrupto, no momento acusado de desvio de 60 milhões dólares doados pela França. Paulo Maluf teria inveja.

A Batay Ouvriyé e outras organizações estão lançando uma campanha justa pelo boicote a essas eleições fraudulentas.

‘Aba Minustah’
A relação do povo haitiano com a Minustah (e as tropas brasileiras) mudou muito. Não houve nenhum avanço na implantação de esgoto, no fornecimento de água ou na ampliação dos hospitais desde 2004, quando as tropas chegaram. Os soldados não tiveram nenhum papel relevante no socorro no terremoto.

O papel “humanitário” alegado pelo governo brasileiro é tomado como uma ofensa pelo povo haitiano.

Os soldados estão aqui para garantir o plano econômico das multinacionais. Para defender um governo repudiado pelo povo. Agem como tropas de choque de uma ditadura decadente.

Um haitiano coordenador da luta dos demitidos das estatais me disse: “Preferimos morrer enfrentando os soldados. Lula deve tirar as tropas daqui, ou o Brasil será para nós um país inimigo.”

O povo brasileiro nem imagina isso. As tropas são odiadas. Os muros da cidade estão pichados com “Aba Préval” e “Aba Minustah” (Abaixo Préval e Abaixo a Minustah).

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