Reconhecimento da negritude é um passo fundamental no combate ao racismo e suas conseqüênciasAssim que os primeiros dados do Censo 2010 foram divulgados, a mídia foi tomada por manchetes destacando que, pela primeira vez desde que se iniciaram os censos demográficos no Brasil, em 1872, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que a população autodeclarada branca corresponde a menos de 50% da população brasileira.

Segundo o levantamento, enquanto 47,7% da população se declararam “branca”; 43,1% se definiram como “parda” e 7,3% como “preta”. Ou seja, apenas a soma de “pretos” e “pardos” (50,4%) já compõe uma maioria “não-branca”, índice que fica um pouco mais elevado ao lembrarmos que os que se declararam “amarelos” e “indígena” foram, respectivamente, 1,1% e 0,4% da população.

Em números absolutos, entre os pouco mais de 190 milhões de brasileiros, temos hoje cerca de 82,2 milhões que se definem como “pardos”; 14,5 milhões como negros; 2 milhões como amarelos e pouco mais de 800 mil como indígenas. Os que se declaram brancos são 91 milhões, ou seja, cerca de 5,7 milhões a menos que a soma da população afrodescendente.

O aspecto mais alardeado pela grande imprensa foi o fato de que, comparado ao resultado do Censo anterior (veja tabela), os dados indicam que, nos últimos dez anos, a queda no número daqueles que se declaram brancos foi acompanhada por um aumento dos que se definem como “pardos”.

Essa tendência já vinha sendo apontada desde o início dos anos 2000, tanto pelo movimento negro quanto pelas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, PNAD. Além disso, há décadas o movimento negro critica a utilização do termo “pardo” nas pesquisas e considera como “negro” a soma dos que aparecem sob as equivocadas categorias utilizadas pelo IBGE, “preto” e “pardo”.

É evidente que estes números indicam que há em curso um processo de mudança na identidade e consciência raciais dos brasileiros. O que uma simples leitura das tabelas não permite, contudo, é analisar a profundidade destas mudanças, seus significados e, principalmente suas conseqüências sociais e políticas.

Muitos foram os analistas e setores do movimento negro que se apressaram em concluir que os números são resultados das ações do governo Lula e, principalmente, da existência de programas que incentivam a “afirmação racial”, como o ProUni e os sistemas cotas de várias universidades públicas.

Mas o que estes números indicam é que ainda é preciso muita luta pela construção de uma consciência de racial neste país. E isto, como ensinaram líderes negros como Steve Biko e Malcolm X, é um passo fundamental no combate ao racismo e suas nefastas conseqüências.

A negação da negritude
A principal contradição dos números é a que se encontra num dado que, geralmente, é minimizado nas análises burguesas e governamentais: a porcentagem dos que se declaram negros é de ridículos 7,3%.

Como pode ser visto no quadro, isto significou um aumento pífio em relação ao Censo de 2000, quando apenas 6,21% da população não se esquivaram de se identificar plenamente como afrodescendente, o que, dentro das equivocadas categorias usadas pelo IBGE, significaria dizer “preto”.

Exatamente por isto podemos afirmar que tanto a constatação de que apenas 14,5 milhões de brasileiros se identificam como negros, quanto o aumento de apenas 1,1% deste setor nos últimos dez anos revelam, acima de tudo, uma enorme distorção da realidade e, principalmente, da consciência. Algo que fica escancarado, por exemplo, no caso da Bahia, um estado que se orgulha, com razão, de ser guardião da tradição afro-brasileira: em 2009, pouco mais de 13% dos baianos se identificaram como “preto”; no ano passado, este índice subiu para 17,1% da população (algo em torno de 2,3 milhões).

É correto que, para todos nós do movimento negro, este número tem que ser somado aos 82,2 milhões que se declararam “pardos”. Contudo, é evidente que o fato do movimento considerar os “pardos” como negros não significa que os e homens e mulheres que definiram desta forma têm a mesma consciência.

E, por isso mesmo, antes de encararmos esta contradição, o mais correto seria se perguntar o porquê de, num país com o nosso histórico, há tão poucas pessoas que se identificam como “negras”, enquanto um número crescente se refugia numa categoria tão “problemática” quanto “pardo”.

Até mesmo os aspectos mais lamentáveis da nossa história servem como prova inconteste de que aqui sempre houve uma predominância de negros e negras e seus descendentes. Algo que sequer precisaria ser “legitimado” por um censo. Afinal, não poderia ser outro o malfadado resultado do fato do Brasil ter servido como destino para o maior número de pessoas seqüestradas da África e, ainda, ter sido o último do mundo a estancar o tráfico negreiro e abolir a escravidão.

O único saldo “positivo” que poderíamos tirar desta tragédia histórica seria exatamente o fato de termos orgulhos de sermos herdeiros de um povo que sobreviveu, apesar de tanto sofrimento. De termos orgulho de sermos “negros”. Algo que seria fundamental para que pudéssemos fazer justiça aos nossos antepassados, destruindo o racismo que tem marcado seus descendentes.

Pardo: a cor da contradição
A maioria dos analistas preferiu se deter na hipótese mais “positiva”, celebrando o fato de que, em dez anos, houve um aumento de 16,9 milhões de brasileiros que já assumem a mestiçagem como parte de sua herança racial, já que, em 2000, os “pardos” correspondiam a 38,45% da população (cerca de 65 milhões) e, em 2010, este grupo subiu para 43,1% (pouco mais de 82 milhões).

Contudo, por mais simpática que esta hipótese seja, ela não nos ajuda a encarar o debate necessário para um verdadeiro combate ao racismo. O termo “pardo” em si é bastante problemático e o simples fato de que ele ainda seja usado por pesquisas realizadas por governos pretensamente identificados ao combate ao racismo, como se dizem Lula e Dilma, é um escândalo.

O fato de o movimento negro há décadas não considerar “pardo” como uma categoria racial tem a ver principalmente com a compreensão, corretíssima (e facilmente comprovada pelas ações policiais) de que, parodiando um famoso ditado, no Brasil, no fim das contas (e, na porta do banco, na fila do desemprego e para efeito de pagamento dos piores salários, etc, etc), todos pardos são negros.

Mas não é só isto. O próprio termo está contaminado de significados que reforçam a ideologia racista. Basta lembrar que a origem da palavra está associada aos leopardos, os “leões manchados”, como os povos antigos identificavam os animais. E já nesta época a palavra referia-se às idéias de “mácula” e “mancha”. Característica que foi reforçada no Brasil Colonial, quando o termo passou a ser utilizado para se referir a algo “sujo”, “manchado”.

E, daí, foi um pulo até que a palavra fosse utilizada para aqueles que resultaram de relações nas quais brancos deixaram-se “macular” e “sujar” pelas peles negras.

Por estas e outras é necessário muito esforço para enxergar algo de totalmente positivo na autodefinição, principalmente porque sabemos que, devido à ação da própria burguesia, a grande maioria dos descendentes de negros que se identificaram desta forma tem visão completamente distorcida de sua identidade racial.

Todos os pardos são negros. E negra é a cor da liberdade
Por fim, também vale dizer que não é correto tentar interpretar os resultados do Censo como fruto uma questão de simples “auto-estima”. Para nós, da Secretaria de Negros e Negras do PSTU e militantes do Movimento Quilombo Raça e Classe, a verdadeira “auto-estima” só será demonstrada quando conseguirmos conquistar todos para a idéia de que “todos os pardos são negros”. Algo que consideramos como parte fundamental do combate de “raça e classe” que tem que ser travado contra o sistema que criou esta mesma categoria.

Primeiro, porque definir-se como negro, numa sociedade como a nossa, já é uma forma de rebeldia contra a ideologia dominante. Segundo, e ainda mais importante, assumir a “negritude” é um elemento fundamental para se compreender a íntima relação que a opressão racial tem com a exploração capitalista.

Há décadas as elites dominantes, e agora seus aliados do PT e do PCdoB, têm se utilizado da categoria “pardo” para mascarar que os mais miseráveis entre os miseráveis são “negros”. E são “negros” não só por sua herança étnica ou por terem um tom de pele um pouco mais escuro que a média.

São “negros”, primeiro, diante dos olhos das elites, das forças policiais, dos skinheads e fascistas de todas as tonalidades (de Bolsonaro aos fundamentalistas cristãos), pelos empregadores na hora da seleção e, também, pela mídia que nos exclui de suas páginas e telas. Ou seja, por mais que os que se definem como “pardos” procurem, consciente ou inconscientemente, negar sua própria identidade racial, é exatamente por serem vistos como “negros” que eles têm sua vida marcada pela opressão e pela exploração.

Afinal, não pode ser uma coincidência que seja exatamente nas regiões onde se concentram a enorme maioria de negros e “pardos” que se verifiquem os piores índices sociais. Apenas como exemplo, vale citar alguns dados revelados por uma pesquisa do próprio IBGE, em base ao PNAD, em 2009.

O Maranhão que, ao lado da Bahia, é um dos estados com maior concentração de afrodescedentes apresenta alguns dos índices mais lamentáveis em relação às condições de vida. A taxa de mortalidade infantil (número de crianças mortas no primeiro ano de vida, em mil nascidas vivas), por exemplo, ficou em 36,5 em 2009, a segunda mais alta do país, ficando logo atrás de outro estado “pardo”, Alagoas, onde, para cada mil crianças nascidas vivas, 46,4 morrem antes do primeiro ano. O terceiro colocado também é um estado de forte presença negra, Pernambuco, com taxa de 35,7.

Já em relação ao analfabetismo, naquela pesquisa, os quatro estados com piores índices também são conhecidos por sua concentração de “pardos”. Em primeiro lugar está Alagoas, onde 24,6% da população com mais de 15 anos não sabem ler ou escrever. Depois vêm o Piauí (23,4%), a Paraíba (21,6%) e o Maranhão (19,1%). Todos eles muitíssimo acima da média nacional (cerca de 10%).

Perceber esta relação é fundamental, mas não é tudo. Para nós, a necessidade de convencer cada um dos “pardos” sobre sua negritude tem uma importância ainda maior. É parte fundamental da luta pela consciência para engajá-los no combate contra esta exploração que também se alimenta do racismo.

O fato de que uma maioria do país, hoje, já se identifique como “não-branco” apesar de todos os esforços da elite racista não pode, em hipótese alguma, ser menosprezado. Mas, também, não é para ser supervalorizado e sim tomado como uma contradição que só pode ser superada na luta contra a ideologia e o sistema que, ainda hoje, distorcem a realidade racial deste país.

O que precisamos e queremos, pois, são “negros” que se orgulhem do verdadeiro significado deste termo em nossa história: ter o orgulho de ser herdeiro de milhões tiveram suas vidas ceifadas ou lutaram até a morte para conquistarem a liberdade e os direitos que lhes foram negados exatamente por serem negros. Ter orgulho de fazer parte da história de gente “negra”, como Zumbi, João Cândido, Malcolm X e Steve Biko; Dandara, Luiza Mahin ou Ângela Davis.