Em janeiro de 1914, um punhado de potências europeias conservadoras dominava o planeta. 125 anos após a Revolução Francesa, apenas uma das seis grandes potências europeias não era uma monarquia. Destas, o Império Russo era uma monarquia absolutista ; os impérios alemão e otomano tinham regimes mistos com um parlamento restrito. No Reino Unido e na França, parlamentos burgueses reprimiam à bala as greves operárias e a eventual resistência dos povos oprimidos[1].

Sete Estados europeus dominavam a quase totalidade do continente africano. Cerca de 25% da população mundial estavam dentro das fronteiras destas nações. Mais de 60% da produção industrial no mundo estava em suas mãos. Em seus escritórios e palácios, a classe dominante europeia – fruto da fusão do que sobrara da aristocracia fundiária e da nova alta burguesia financeira e industrial – efetivamente mandava no mundo, impondo seus hábitos, visões de mundo e modo de vida à imensa maioria da população mundial. Nos países colonizados e nos porões das fábricas, os explorados e oprimidos dessa ordem mundial eram uma fonte permanente de inquietação para os “donos do mundo”. Mas apesar dessa pressão constante, as potências se preocupavam mais em antecipar os movimentos de seus adversários burgueses e garantir a contínua ampliação de suas fortunas. Nada parecia ameaçar o progresso contínuo da “civilização europeia”. A única dúvida era qual dessas potências assumiria a liderança nessa conquista do globo.

Quatro anos depois, o mapa da Europa se tornara irreconhecível. Dos grandes impérios europeus, o austro-húngaro, o russo e o otomano deixaram de existir por completo, e o Império Alemão se tornou uma frágil república, cortada por insurreições. Cerca de dezoito milhões de pessoas, entre civis e militares, estavam mortos. Nesse curto intervalo de quatro anos, quase um por cento da população do planeta falecera. A burguesia não se via mais ameaçada apenas por um tênue fanstasma do movimento socialista, mas pelo conjunto da classe operária russa, organizada no primeiro Estado operário revolucionário a triunfar sobre a contrarrevolução. Pela primeira vez desde a Revolução Industrial, uma potência não-europeia – os Estados Unidos – tinha o maior PIB e a maior produção industrial do mundo. Se a 2ª Guerra Mundial foi mais destrutiva, no que diz respeito à quantidade de pessoas e forças produtivas destruídas, a 1ª Guerra foi incomparável em sua destrutividade social [2].

Uma descrição breve e minimamente precisa do conflito ocuparia facilmente um pequeno livro. Para permitir uma compreensão básica do que esteve em jogo e de quais forças agiram, tentaremos aqui expor um breve panorama econômico e sociopolítico das principais potências envolvidas no conflito, e um pouco das alianças e movimentações diplomáticas que levaram ao seu início. A ideia é dar alguns elementos para entender a importância da Primeira Guerra na formação do mundo que conhecemos no século XX, e localizar as polêmicas que ele gerou dentro do movimento operário.

Um lugar sob o sol : o Império Alemão
Unificada há pouco mais de quatro décadas, a Alemanha em 1914 é uma grande potência em ascensão. Com mais de 60 milhões de habitantes, era o segundo país mais populoso da Europa, atrás apenas do Império Russo [3] – e em franca ascensão demográfica. Sua indústria já não era aquela da qual Marx desdenhara como especializada em produtos de baixa qualidade. Com uma política protecionista de tarifas, e a formação de grandes cartéis industriais através de compras, fusões e acordos, a industria alemã adquiriu proeminência rapidamente em diversos ramos.

No setor químico, a industria alemã estava na vanguarda mundial, dominando 90% do mercado mundial. Sua produção de carvão (base necessária para todas as indústrias, especialmente a do aço, e também para os sistemas de transporte) era forte, e aumentou consideravelmente com a anexação da Alsácia-Lorena, território francês altamente industrializado, em 1871. A produção de aço alemã se tornou a maior do mundo em fins do século 19, superando com vantagem a produção inglesa e americana, e deixando o Reino Unido no terceiro lugar no ranking mundial de exportações de aço. Ao mesmo tempo, o sistema de alianças e acordos, estabelecido por Bismarck, garantia um equilíbrio de forças e alianças que protegia a Alemanha de uma vingança francesa pela perda de seus territórios a leste. Bismarck, um diplomata sutil, confiava na manutenção do equilíbrio de desconfianças (entre ingleses e franceses, ingleses e russos, austro-húngaros e italianos e russos) para garantir que nenhum adversário teria tranquilidade em suas outras fronteiras, caso decidisse atacar o recém-nascido Império Alemão.

Porém, a ascensão de Wilhelm II ao trono em 1888, que levaria à queda de Bismarck dois anos depois, abriu espaço para uma política exterior muito mais agressiva por parte do Império Alemão. Muitos estudiosos de diplomacia e relações internacionais têm atribuído a esta passagem da diplomacia alemã das mãos do genial e ardiloso Bismarck às do agressivo Wilhelm II, o aprofundamento das tensões que levaram ao sistema de alianças que provocou a Grande Guerra. Avaliar isto é desconsiderar a enorme pressão da nova e vigorosa grande burguesia alemã por novos espaços comerciais.

É preciso ter em mente que o partido Nacional-Liberal alemão, com base forte em setores dinâmicos da burguesia industrial e da classe média, exercia grande pressão social por uma expansão alemã, assim como o partido conservador, com o qual estava coligado[4]. A burguesia alemã, mais moderna que a inglesa ou francesa, se consolida enquanto classe desde sua origem graças às políticas estatais[5]. Se tornou uma potência econômica europeia graças às tarifas protecionistas imperiais, e portanto, a ideia de obter mercados coloniais de acesso exclusivo aos capitais e produtos alemães era tentadora.

Mas a expansão colonial, em uma era onde as partes mais populosas e ricas da África e Ásia já haviam sido partilhadas por Reino Unido e França, queria, forçosamente dizer, chocar-se com estas. Mais do que riquezas territoriais, novas colônias significavam espaços novos para a venda de mercadorias, e nesse sentido, o Reino Unido já havia abocanhado os principais – Índia, China, Pérsia, Egito, e as partes mais ricas e populosas da África (além de sua grande presença econômica e política na América Latina). Para agravar a situação, os dois impérios, o inglês e o alemão, disputavam em diversos ramos industriais parecidos – a indústria do aço, do carvão, da tecnologia elétrica. Do mesmo modo, a ascensão alemã como potência do comércio internacional era ameaçada por sua fraca projeção naval. Em resposta a isso o Kaiser adotou uma política de construção naval-militar, o que assegurou a hostilidade inglesa.

Reino Unido: supremacia sob ameaça
Em 1910, o Reino Unido podia contar com 345 milhões de súditos, e seus territórios e possessões coloniais faziam dele a maior potência do mundo. Reconhecido como a grande potência militar, econômica e diplomática do planeta, e como a terra da revolução industrial, sua frota dominava os mares e seus diplomatas e homens de negócios irradiavam a potência e os interesses da Coroa nas partes mais longínquas do planeta.

Mas nesse início do século XX, o velho leão, ainda poderoso, começava a confrontar sua perda de dinamismo e a ver ameaças à sua supremacia surgindo de todas as partes. De um lado, os Estados Unidos, antiga colônia, se fortalecia a passos largos, sobretudo econômica e militarmente. Dono de colônias desde a invasão do Havaí e das guerras contra a Espanha, os Estados Unidos contavam com uma poderosa frota, e uma produção industrial crescente. A cada década, a Doutrina Monroe (que desde o início do século XIX estipulava a supremacia norteamericana nas américas) se fortalecia, e concomitantemente, o comércio internacional americano foi substituindo o britânico na América Latina. Do mesmo modo, a gradual mas firme penetração americana no mercado chinês, antes exclusividade do Reino Unido, começava a ameaçar o principal bastião da dominação imperial, o oriente.

Por outro lado, a Alemanha também começava a ocupar um espaço importante em ramos da indústria e do comércio internacionais que tiveram sido exclusividade inglesa. O poderio inglês ainda era o maior do mundo – com a maior e mais poderosa frota do planeta, territórios e bases em todo o globo, e uma pujante indústria e setor financeiro. Mas a dinâmica era de enfraquecimento, e não mais de ascensão, o que gerava ansiedades numa burguesia acostumada durante séculos a ser a mestre inconteste do mundo.

Ao mesmo tempo, diversos conflitos internos desgastavam o poderio do Império Britânico. Apenas 45 dos seus quase 350 milhões de súditos habitavam as ilhas britânicas. Destes, uma parte considerável (principalmente de seu proletariado industrial) era de origem irlandesa. Na Índia, Irlanda, nas possessões africanas e asiáticas do Império, milhões de trabalhadores oprimidos das mais diversas cores e crenças sustentavam a riqueza de um dos Estados mais aristocráticos e elitistas da Europa. Revoltas coloniais eram comuns, e sempre violentamente reprimidas. O movimento operário inglês, o mais antigo do mundo, contava com grandes sindicatos e estava sempre à beira de uma revolta, com diversos confrontos armados entre a polícia, exército e operários[6].

Toda a ansiedade social e política, interna e externa do Império Britânico se refletia em sua política externa. Mesmo sem estar sob a ameaça direta da recém-nascida frota naval alemã, o Almirantado britânico embarcou em uma corrida armamentista naval, que por sua vez reforçou os temores alemães. As fortes tensões nas colônias, e a pressão interna de sua burguesia por uma política externa mais agressiva e alinhada com seus interesses econômicos, faziam qualquer concessão às aspirações nacionais ou sociais perigosa[7]. Apesar das pressões diversas, o Reino Unido ainda era o grande império global, e qualquer mudança no equilíbrio de poderes europeu poderia ser danoso aos seus interesses. Assim, com a expansão asiática da Rússia paralisada pela derrota para o Japão, e com a França debilitada após a guerra franco-prussiana de 1871, o Reino Unido não tardou a se aliar a estas duas potências de segunda linha, formando uma rede de contenção ao seu novo adversário germânico.

França : uma república dividida
Enquanto o crescimento econômico e militar alemão se via restrito pela sua limitada projeção política e diplomática, a França sofria o drama contrário. Derrotada decisivamente pela Alemanha em 1871, a França tinha ainda o segundo maior império colonial do mundo, com uma indústria tecnologicamente atrasada mas um importante setor financeiro, e um exército cada vez mais antiquado que contrastava com sua posição diplomática de grande destaque no mundo.

Essa série de contradições a colocavam numa situação de desequilíbrio permanente. Seu peso diplomático e os interesses multinacionais dos investidores financeiros franceses atavam este país à política e conflitos das mais longínquas áreas do globo, desgastando os recursos financeiros e militares do Estado. Ao mesmo tempo, a presença de um grande proletariado industrial miserável (e sempre ameaçado pelo desemprego) e a posição desfavorável da indústria e comércio internacionais franceses levavam a uma situação de enorme instabilidade social na jovem república, que em 1914 completava 43 anos.

Parte da burguesia industrial, aliada a uma pequena burguesia apavorada com o declínio de suas condições de vida, defendia uma política ultranacionalista, militarista e expansionista para recuperar o lugar da França de potência de primeira ordem. Os chauvinistas defendiam investimentos de grandes somas no exército, para manter a expansão colonial e desafiar a posição inglesa nesse terreno e, ao mesmo tempo, para preparar o terreno para a révanche, a retomada da Alsácia-Lorena da Alemanha, e a humilhação do novo vizinho.

Ao mesmo tempo, as péssimas condições de vida do proletariado francês, bem como sua tradição de lutas políticas (com uma trajetória revolucionária quase permanente indo desde a Revolução de 1789, passando pelas jornadas de julho de 1840 e chegando à Comuna de Paris de 1871) faziam do Partido Socialista da França uma importante força política. Com dezenas de parlamentares, quase cem mil afiliados, uma grande influência sindical e uma enorme organização de juventude (a Jeune Garde Socialiste, cujos milhares de membros eram organizados em um formato paramilitar, fazendo a segurança da organização em greves e atos públicos), os socialistas se fortaleciam a cada novo recrudescimento da luta de classes, e eram uma preocupação permanente para a burguesia francesa.

Havia ainda na França um importante movimento anarquista, nesse período já em franco declínio. O resultado era uma república profundamente instável, com confrontos de rua entre socialistas e ultranacionalistas, e enormes brigas no parlamento. A normalidade era mantida a duras penas, e pressões à direita e à esquerda ameaçavam constantemente a estabilidade, que parecia para todos os envolvidos não poder durar. O acirramento da luta de classes e o fortalecimento do Partido Socialista vão aos poucos tornar a alta burguesia francesa mais receptiva às propostas da ultra direita; a guerra vai começar a se apresentar como uma saída desejável para reunificar a nação francesa não apenas aos territórios perdidos na guerra, mas também internamente.

Os interesses das finanças francesas vão ainda amarrar diplomaticamente a França a dois países com regimes monárquicos autoritários, e também profundamente instáveis interna e externamente – o Império Russo, czarista, e o Reino da Sérvia[8]. Essas conexões vão envolver a França no conflito entre o Império Austro-Húngaro e Sérvia, lançando-a contra a Alemanha.

O Império Russo : de gendarme da Europa a elo mais fraco da dominação capitalista
O Império Russo fora a mais importante força política e militar da Europa continental logo após o Congresso de Viena. O Czar garantia o prestígio e poder de sua coroa jogando o papel de gendarme da Europa, como era conhecido: a Rússia era a polícia da contrarrevolução anti-republicana na Europa. Principal responsável pela derrota de Napoleão e pelo reestabelecimento das monarquias de direito divino na França e no resto da Europa, o Império Russo jogaria ainda um papel importante apoiando a Áustria contra a primeira revolta húngara, e contra diversas revoltas na Polônia.

Apesar de estar fora da disputa colonial pela África, a Rússia mantinha a permanente expansão de seu Império através da conquista e colonização de territórios no continente asiático. A conquista dos antigos khanatos e reinos da Ásia Central[9] adicionou milhões de novos súditos ao Czar, muitos deles muçulmanos, e localizou o Império Russo numa área estratégica (e perigosa para o Reino Unido) de acesso à Índia e seu comércio, abrindo o rico reino da Pérsia (atual Irã) ao comércio e diplomacia russas. A colonização da Sibéria abriu à indústria russa o acesso a algumas das mais ricas jazidas de carvão do mundo, bem como a regiões ricas em diversos minérios raros.

A conquista de parte da Manchúria chinesa e da região ao redor da península da Coréia permitiu o enriquecimento de diversas famílias da nobreza, aproveitando-se dos recursos naturais da região[10]. O Império Russo tinha uma economia atrasada para os padrões europeus: ele foi um dos últimos Estados da Europa a abolirem a servidão e sua renda era majoritariamente de origem agrária e extrativista. O fluxo de investimentos estrangeiros (sobretudo franceses e ingleses) criou uma pequena mas moderna indústria, concentrada em grandes pólos, como São Petesburgo, mas os capitais eram escassos, de modo que o desenvolvimento intensivo da economia, através da modernização dos meios de produção, era impossível. Assim, o desenvolvimento econômico e o equilibro orçamentário dependia profundamente da conquista de novos territórios e da incorporação de novos súditos-contribuíntes ao Império.

Se nas cidades a classe operária russa vivia importantes processos de luta desde o começo do século, o campesinato continuava a ser o principal apoio social do Czar, o elemento determinante na economia, e a base de recrutamento para o exército. Mas a política de expansionismo permanente do Império Russo não tardou a chacoalhar as bases do regime czarista, que não estava adaptado às novas condições da guerra e da política internacional trazidas pela tecnologia industrial.

Os avanços imperiais na Ásia colocaram a Rússia em rota de colisão com uma nascente potência asiática, o Japão. Contrariando todas as expectativas da época, a ultrapassada frota russa e seus incompetentes almirantes são esmagados pelas forças navais japonesas. A derrota massacrante na guerra vai se combinar com as péssimas condições de vida da população e gerar um processo revolucionário profundo em 1905. Apesar de sobreviver a esse processo mantendo sua coroa e também boa parte de seu poder, o Czar verá o apoio e as forças de seu Império definharem. Para recuperar sua legitimidade e fortalecer o Estado, o Império Russo se viu levado a reforçar ainda mais suas pretensões políticas na única área de suas fronteiras onde ainda não fora ainda derrotado – os Bálcãs e a região do mar negro[11]. Ao tomar o partido da Sérvia, a Rússia se aproximou naturalmente da França, antagonizando a Austro-Hungria e a Alemanha.

Austria-Hungria, Sérvia, e o início do fim : o estopim da Grande Guerra
Durante os quase quatrocentos anos de sua existência, a dinastia habsburga, à frente do reino da Áustria (e desde 1867, do reino da Áustria-Hungria), exerceu um enorme poder e influência nos destinos da Europa. Os habsburgos chegaram a ser os senhores da Espanha, Sicília, norte da Itália, de boa parte da atual Alemanha (através do controle nominal do Sacro Império Germânico), dos Países Baixos, e de importantes territórios nos Bálcãs e na Europa central. A lenta decadência deste império, que tinha muito mais de antigo regime do que de potência moderna, começa já com sua massacrante derrota frente aos exércitos napoleônicos em 1805. O sucesso final sobre Napoleão – devido mais aos méritos militares de seus aliados que propriamente às forças austríacas – ganhou uma sobrevida para esta potência. No mundo criado pelo congresso de Viena, com monarquias por toda a parte, o Império Austríaco teve tempo de se modernizar e industrializar.

Mas as contradições acumuladas na transição, nunca efetivamente completada, de potência do antigo regime a Estado-nação do século XIX, cobraram seu preço. O acúmulo de dezenas de nacionalidades dentro do Império levariam, por exemplo, à criação de um parlamento húngaro (levando à mudança de nome) dominado por uma burguesia e aristocracia locais pouco cooperativas. Com dois parlamentos aos quais tinha de responder – um austríaco e um húngaro, ambos bastante poderosos – o executivo austríaco efetivamente era o árbitro e diplomata dos conflitos entre as duas partes do país. Divergências quanto à política externa, orçamento, política econômica e mesmo organização do exército tornavam a administração deste império lenta e custosa. Problema que era complicado pela diversidade de nações e línguas que conviviam nesse império : para além do alemão e húngaro, haviam ainda outras seis línguas oficiais. O total de línguas oficiais e não oficiais faladas no império chegava a quatorze.

A aristocracia austríaca se utilizava desse caos para manter as rédeas do poder. No parlamento em Viena (cuja criação foi uma concessão feita a contragosto após as revoltas liberais de 1848) a presença de diversas minorias, e a divisão dos partidos por ideologia e por nacionalidade, garantiam uma tênue maioria aos conservadores austríacos[12]. Ao jogar com as tensões entre eslavos e húngaros, era possível à casa reinante superar a grande autonomia do parlamento em Budapeste.

É neste sentido que a expansão em territórios eslavos se tornava crucial para a sobrevivência imperial. Vítima de profundas pressões nacionais, apenas a contínua incorporação de novos povos mantinha o tênue equilíbrio que permitia à elite austríaca controlar o Império. Foi sob esta lógica que a Áustria-Hungria formalizou a anexação da região da Bósnia-Hezergovina, em 1908. Esta anexação gerou diversas tensões na pequena Sérvia, vizinho de maioria eslava e que, por este motivo, tinha ambições sobre este território. Um plano da casa real, de estabelecer uma tríplice monarquia, unindo as coroas da Sérvia, Hungria e Áustria era defendida por setores nos círculos militares e diplomáticos como solução para o impasse entre o parlamento austríaco e o parlamento húngaro. Um novo reino sérvio, fortemente alinhado à Áustria, fortaleceria o poder da elite vienense, e a tiraria do impasse bicameral.

A Sérvia, por sua vez, vinha de uma vigorosa expansão territorial após as três guerras da Liga Balcãnica, que longe de apaziguar a ambição expansionista de sua população, apenas a atiçaram. Um poderoso lobby político-militar, unido em torno à política de unificação irredentista da grande Sérvia, vai se formar a partir desses conflitos, se transformando em uma organização, e se lançando contra a Áustria-Hungria após a anexação da Bósnia. Com laços em altos círculos militares e diplomáticos, esta organização – conhecida como Mão Negra – vai criar laços com grupos nacionalistas na Bósnia-Hezergovina.

Chegamos aqui à causa imediata do início da guerra. Com o desenrolar dessas tensões, agravadas por uma visita oficial do herdeiro ao trono habsburgo na principal cidade da área em disputa – a cidade de Sarajevo – a Mão Negra vai acionar um círculo terrorista dentro da Bósnia. Em 28 de junho de 1914 um desses jovens, chamado Gavrilo Princip, vai assassinar a tiros o arquiduque Franz Ferdinand e sua esposa, a Duquesa Sofia.

Para a elite austríaca, era a chance de humilhar – e possivelmente incorporar – a Sérvia, pondo em prática seus planos de implementar uma tríplice monarquia. Para a Rússia, fiadora dos sérvios, sua defesa fortaleceria a posição do Czar nos Bálcãs, e agradaria aos nacionalistas pan-eslavos na Rússia, diminuindo as tensões sociais nesse império em crise. Iniciada a mobilização de tropas entre os dois países, a Alemanha, como estipulado pelo seu tratado de aliança com os habsburgo, mobilizou suas tropas e se preparou para lançar uma invasão da Rússia e França, também aliados. Em breve, com o avanço das tropas alemãs através da Bélgica, país neutro, a Inglaterra também se juntaria ao bloco de França e Rússia, que viria a ser conhecido como a Entente, grupo ao qual se juntariam ainda a Itália, Japão, e outros Estados menores. O lado alemão e austríaco contaria com o reforço do moribundo Império Otomano (hoje Turquia), e ficaria conhecido como o grupo dos Impérios Centrais.

Uma tendência recente na historiografia da Primeira Guerra tem enfatizado o papel do acaso no início deste conflito, e não podemos negar que o próprio estopim da guerra – o assassinato do arquiduque austríaco – foi um evento planejado às pressas, e que quase fracassou. Mas seria cegueira ignorar as fortes tensões sociais e econômicas existentes nessa Europa, em transição de um pacto entre burguesia e aristocracia, típico do final do antigo regime, e a Europa moderna, do poder quase absoluto dos conglomerados financeiro-industriais e do Estado-nação hipercentralizado.

Para as potências envolvidas nas decisões que levaram ao início da guerra, ela aparecia como uma panacéia que resolveria seus mais diversos problemas – as crises sociais internas, as dificuldades de crescimento ou expansão econômicos, as questões de legitimidade e prestígio político de seus regimes. O início do conflito e sua forma particular, suas alianças, etc., foram determinadas em certa medida pelo acaso. Mas as condições que a tornaram possível e mesmo “necessária” para as classes no poder em toda a Europa tinham raízes profundas e incontornáveis.

Originalmente publicado no site da LIT-QI

Notas:

1 Nem só da África e Ásia vinham os povos colonizados pelo jugo imperialista. No norte da Europa os irlandeses amargavam um regime de excessão permanente sob as botinas inglesas ; no continente europeu, a Polônia sofria já 119 anos da tríplice ocupação russo-prusso-austríaca, apenas para citar dois casos célebres.

2 Para Hobsbawm, foi a guerra que encerrou definitivamente o « longo século 19 ». No mesmo sentido vai Arno J. Mayer, para quem a guerra acabou com as permanências do antigo regime, permitindo a instalação definitiva da alta burguesia financeira-industrial no poder, com suas formas particulares de dominação, excluíndo do poder aristocratas, nobres e instaurando um novo tipo de diplomacia, mais política e étnica.

3 Se considerarmos apenas os habitantes que se declararam como parte da nacionalidade dominante, a Alemanha fica em primeiro lugar, já que apenas 55 milhões dos súditos do Czar se consideravam russos étnicos. A homogeneidade demográfica do Império Alemão dava a ele uma vantagem clara sobre a Rússia, assim como a concentração territorial.

4 Além de ter também grandes industriais entre seus apoiadores, o partido conservador alemão contava com uma base de apoio considerável entre a aristocracia militar proprietária de terras do antigo reino da Prússia – os junkers, maioria entre os altos cargos do exército e em declínio econômico desde a revolução industrial na Alemanha. Uma política externa expansionista preservava o sentido de existir dessa classe, enquanto um futuro pacífico significaria a médio prazo sua extinção.

5 Foi o Zollverein, pacto que criou uma área de livre comércio entre os vários pequenos reinos da Alemanha pré-unificação por iniciativa do reino da Prússia e com fins de consolidação diplomática da influência deste reino, que permitiu o surgimento e consolidação de uma burguesia pan-germânica.

6 Um exemplo foi a « batalha de Stepney », onde um grupo anarquista expropriador foi cercado pelas forças armadas na zona leste londrina e abatido a tiros.

7 Outro exemplo é a lei de autogoverno irlandês (o Home Rule Bill), que conheceu três versões, sempre suspensas antes da aplicação, até finalmente ser posta em efeito já após o fim da guerra (e após uma importante revolta popular na Irlanda).

8 A França era o maior investidor na indústria russa, e capitalistas franceses eram proprietários de estradas de ferro, fundições, enfim, do que havia de mais moderno na economia russa. Já a Sérvia devia suas vitórias militares nas guerras dos Balcãs de 1912 aos empréstimos franceses, que por sua vez financiaram a aquisição de armamentos junto à industria bélica francesa. Por sua vez, as relações econômicas e diplomáticas entre França e Sérvia incomodavam ao Império Austro-Húngaro, acostumado a ver o pequeno país eslavo como um Estado satélite.

9 Os diversos reinos da ásia central eram em sua maioria herdeiros diretos dos impérios nômades como os dos mongóis, e os mais ricos dentre eles situavam-se no eixo ao redor da antiga rota da seda.

10 Um exemplo é a família de A.M. Brezobrazov, que obteve uma fortuna através da comercialização da madeira nessa região. Brezobrazov foi um dos principais defensores da expansão russa na região, sendo o responsável pela indicação do Almirante E. I. Alekseev para Vice-Rei do Extremo-Oriente, cargo no qual defendeu uma política expansionista russa na Coréia e no norte da China. Foi a expansão nessa região que levou a Rússia ao conflito com o Japão.

11 A expansão russa ao Sul, às custas do Império Otomano, estancara com a derrota para a Inglaterra na guerra da Crimeia, mas o afrouxamento das relações anglo-otomanas abrira novamente esta possibilidade. A expansão em direção ao Afeganistão e Índia, domínios ingleses, fora cessada por uma série de acordos. Um confronto direto com o Reino Unido parecia para o Czar como suicida, e os Bálcãs eram uma região predileta do nacionalismo paneslavista russo. Mais do que uma vantagem econômica, aparecer como o protetor dos povos eslávicos garantia uma legitimidade vital ao Czar, nesses tempos de crise.

12 Era comum que, por conta das tensões entre as diversas nacionalidades partidos de mesma posição ideológica de diferentes povos votassem separados – com os socialistas checos votando contra posições dos socialistas húngaros, etc. Este sistema favorecia óbviamente o partido mais antigo, por ser étnica e ideologicamente mais homogêneo – os conservadores germânicos.