Filme excepcional inspirou o grito de guerra de milhares de ativistas

Hoje, 14 de janeiro, a Folha de S. Paulo estampou em mais de um quarto de sua capa uma foto mostrando uma tropa, no mínimo, inusitada, formada por algumas dezenas de pessoas, “armadas” com pedaços de pau, vestindo capacetes de motocicleta e empunhando escudos claramente feitos de material reciclado.

Abaixo da foto, o editor de um dos principais jornais do país, acrescentou outras imagens, detalhando alguns dos objetos: caneleiras construídas com cano de PVC, escudos de barril de plástico, um escudo feito de antena-parabólica, uma lança com uma coroa de bicicleta e uma faca na ponta. Na legenda abaixo da foto, explicava-se a cena: o grupo era formado por “moradores de uma área invadida desde 2004, em São José dos Campos”, em “trajes de guerra” para enfrentar uma possível reintegração de posse, pela polícia.

Todos nós, envolvidos na luta contra toda forma de exploração e opressão, ao contrário de enxergarmos invasores – ou ficarmos apavorados, ou vermos a história como uma “bizarrice” (como, certamente, pretendiam os editores da Folha) –, com certeza reconhecemos os valorosos lutadores do Pinheirinho e nos empolgamos e nos comovemos com sua disposição de luta em defesa do mais do que justo direito à moradia.

Contudo, os mais antigos na militância revolucionária, com certeza, também tiveram sua atenção chamada para uma comparação que a Folha e outros órgãos da grande mídia fizeram entre a imagem e o personagem central de um filme italiano, de 1966: O incrível exército de Brancaleone, de Mario Monicelli.

“Branca, branca, branca… aqui estão os soldados de Leon”
Na matéria da Folha, os repórteres Giba Bergamini e Jorge Araújo afirmam que, como no filme italiano, que mostra um “grupo de soldados maltrapilhos que se arma para defender suas terras, tudo é improviso”.

O que eles não disseram, mas que, certamente, ecoou na cabeça de muita gente que militou entre o final dos anos 1970 e o início dos 80, é que o filme excepcional também inspirou o grito de guerra de milhares de ativistas, principalmente jovens, que, na época, militavam influenciados pelas ideias e posições políticas do líder da Revolução Russa, de 1917, Leon Trotsky.

Naqueles anos em que, pouco a pouco, punhados de gente e movimentos foram se levantando contra a monstruosa da ditadura e o sistema que havia se beneficiado com ela; onde houvesse uma luta, em qualquer assembléia ou nas passeatas dos movimentos estudantis e sindical, não era incomum que, do nada, irrompesse, a plenos pulmões, em uníssono, o aviso de que os “troscos” estavam na área: “É Branca, Branca, Branca…Leon, Leon, Leon…aqui estão os soldados de Leon”.

A adoção pelos trotskistas do grito de guerra se dava porque a relação entre o anti-herói de Monicelli e o líder revolucionário era inevitável. Trotsky foi um dos principais líderes da primeira onda revolucionária na Rússia, ainda em 1905; depois, organizou o liderou o Exército Vermelho, que garantiu a vitória da Revolução. E, como isso não bastasse, dedicou o resto de sua vida à luta contra a burocratização e degeneração do Estado Operário, sob a batuta sanguinária de Josef Stalin.

Assassinado a mando de Stalin, em 1940, no México, Trotsky deixou como sua principal herança a Quarta Internacional, um partido internacional da Revolução, que desde então (pelo menos entre aqueles que, realmente, se mantiveram fiéis às idéias do revolucionário russo), de forma sempre minoritária, mas incansavelmente aguerrida e coerente, tem dado continuidade à luta contra o capitalismo e os contra-revolucionários.

No processo de democratização, ao se identificarem com o filme, aqueles militantes não estavam fazendo nada mais do que incorporar (de forma genial) a essência da comédia satírica de Monicelli. Uma essência que, em grande medida, foi traduzida pelo jornalista Paulo Moreira Leite, em uma crônica que escreveu para a Revista Época, em 30 de novembro de 2011, quando Monicelli faleceu, aos 95 anos.

Como lembra Moreira Leite, o que fazia com que os “soldados de Leon” se vissem como parte do incrível exército de Brancaleone era o fato de que eles haviam reconhecido a si próprios naqueles maltrapilhos, que, nas palavras do jornalista, “atravessam cidades destruídas pela peste, enfrentam o frio e a fome, perseguem sonhos e miragens — mas seguem fiéis a si mesmos e a seu modo de vida, com aventuras e risco. Não perdem o humor nem a capacidade de auto-ironia. Sabem que em algumas situações é mais importante não desistir do que vencer”.

Tirando a conclusão, a descrição não só caia (e sempre há de cair) como uma luva para os “troscos”, como também é a tradução fiel do povo do Pinheirinho e, hoje, particularmente, do seu aguerrido “batalhão anti-choque”. A começar, inclusive, pelo alto grau de ironia que há nos “uniformes” dos companheiros e companheiras. Mas, com uma diferença: desta vez, em S. José, também como no filme, é possível vencer.

Os “sonhos impossíveis” de brancaleones, quixotes…
No filme, Monicelli escracha o sistema e todas as instituições de poder vigentes na época em que a história se passa (a Idade Média) através de uma ácida sátira, na qual o anti-herói Brancaleone e seus homens (um bando de pobres e marginalizados recolhidos pelo caminho) enfrentam a peste negra, a violência do exército sarraceno, as imposições da igreja bizantina e os bárbaros, em defesa de um pedaço de terra.

Exatamente por ser contrária à própria lógica do sistema econômico medieval (o feudalismo, baseado no monopólico das terras pela Igreja e pelos nobres), a luta do exército de Brancaleone é tida como um sonho impossível, um delírio utópico, uma fantasia alucinada, assim como eram as ações do protagonista do clássico da literatura no qual o filme foi assumidamente inspirado: Dom Quixote de La Mancha, escrito por Miguel de Cervantes, entre 1605 e 1615.

Se Quixote era um nobre falido que, inspirado pela excessiva leitura de romances, parte em busca de aventuras num mundo idealizado, Brancaleone é sua versão mais ácida, já influenciada pelos ventos libertários e rebeldes que vagavam pelo mundo em 1966 e, em breve, iriam populizar o “sonho” da juventude: “Seja realista, exija o impossível”.

Brancaleone é um pobre, ultra atrapalhado, que, marginalizado pela sociedade, vive de pequenos expedientes que, no fim das contas, só afetam as instituições e moral da época. O fato é que seu sonho e daqueles que o acompanham (ter um pedaço de terra) é tido como impossível. Tal qual o de Dom Quixote e o título de uma belíssima música de Chico Buarque, feita para um musical escrito com Ruy Guerra, em 1972, no auge da ditadura e da perseguição política, quando muitos sonhavam com a “impossível” liberdade.

Versão de um musical norte-americano, também inspirado na obra de Cervantes, Sonho impossível tem uma das mais belas e inspiradas das letras de Chico, desde seus cortantes versos de abertura: “Sonhar / Mais um sonho impossível / Lutar / Quando é fácil ceder / Vencer o inimigo invencível / Negar quando a regra é vender”. Uma letra que também tem tudo a ver com os nossos Brancaleones e Quixotes que hoje resistem no Pinheirinho.

Por trás de cada capacete, por trás de cada prego que foi colocado na ponta de um “tacape” (rústico, mas eficiente), ao lado de cada um dos integrantes do “batalhão anti-choque” do Pinheirinho, estão os sonhos de um exército cuja força é gigantesca, apesar de todos os pesares. Homens e mulheres que, até mesmo no seu dia-a-dia são capazes de provar que há como transformar o impossível em realidade.

Gente que foi muito bem definida pelo companheiro que a reportagem da Folha identificou como “chefe da tropa” e, por razões óbvias, recusou-se a dar seu nome: “É um exército de pedreiros, metalúrgicos, ajudantes. Pessoas que acordam às 5h para trabalhar e voltam para casa”. Um verdadeiro, digno e heróico exército de Brancaleone.

Um exército que ao desafiar a lógica da propriedade privada e exercer seu legítimo direito de autodefesa em relação às ações sempre violentas e criminosas das forças de repressão que estão a serviço desta lógica, está, mesmo sem saber, entoando uma das partes mais bonitas e significativas da canção de Chico: “É minha lei, é minha questão / Virar esse mundo / Cravar esse chão / Não me importa saber / Se é terrível demais / Quantas guerras terei que vencer / Por um pouco de paz”.

Mas não é só isto que ecoa da imagem e das ações criadas pelos companheiros e companheiras do Pinheirinho. Há nelas, também, a lembrança dos ensinamentos, muitas vezes poéticos, de um outro sujeito sobre o qual muita gente do Pinheirinho (mas, nem todos) certamente nunca ouviu falar: Vladimir Lênin, outro “Quixote” que, a sua maneira, acreditava em sonhos.

“Sonhos: acredite neles”
Em um de seus mais memoráveis escritos, Lênin nos lembra: “É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles”.

E é exatamente isto que os moradores do Pinheirinho e seu exército estão fazendo: transformando sonho em realidade. São heróicos e corajosos maltrapilhos que decidiram se defender diante da real possibilidade de verem seus sonhos destruídos, suas casas derrubadas, seus filhos e filhas, irmãs e irmãos, pais e mães e, acima de tudo, companheiras e companheiros, serem agredidos e presos.

Se, no mundo da ficção, a tropa anti-choque do Pinheirinho é, sim, herdeira do incrível exército de Brancaleone, no mundo real, as Marias e Zezinhos, os da Silva, os Souzas e os muitos anônimos que, hoje, formam o comitê de defesa em São José dos Campos devem estar ainda mais orgulhosos por terem conquistado o direito de, para sempre, integrarem a verdadeira tropa de elite da História: o Exército dos Lutadores.

A disposição de luta, a garra, a coragem e a sede por justiça demonstradas na forma como estão defendendo sua comunidade lhes dá o direito de figurarem entre uns tantos outros brancaleones que não fugiram da raia, mesmo quando todos diziam que o “sonho era impossível”.

“Maltrapilhos” destemidos, todos os escravizados, explorados e oprimidos que já se levantaram contra seus senhores, patrões ou algozes. Negros, brancos, nordestinos e desterrados valentes como os marinheiros de João Cândido que baniram a chibata dos navios. Mulheres guerreiras como Dandara, que organizou o exército do Quilombo dos Palmares, ou Luiza Mahin, que liderou a Revolta dos Malês, em Salvador.

E, por fim, distante dos motivos insinuados pela mídia, os brancaleones do Pinheirinho também merecem esse codinome por terem conseguido reavivar e fazer vibrar em cada um de nós, comprometidos com a luta contra toda forma de exploração e opressão, uma sensação que a classe dominante (e seus muitos aliados, inclusive aqueles que hoje se encontram nas esferas governamentais) jamais conseguirá entender ou sentir.

Ao criarem seu pequeno exército, os moradores do Pinheirinho nos fizeram lembrar daquilo que alguns podem chamar de quixotesco, mas que se torna real em cada ação como a que está em curso em São José dos Campos: a certeza de que vale a pena lutar; a crença determinada de que não há risco, perigo ou ameaça que possam se colocar entre os explorados e a conquista de tudo a que temos direito, a confiança inabalável que esta luta sempre terá, ao lado de cada um de nós (ou daqueles que nos sucederem), gente com a disposição brancaleônica dos moradores do Pinheirinho.

Gente que, agora, com certeza, não hesitará a se alistar no batalhão do Pinheirinho para impedir que seus direitos sejam violados. Até a vitória!