Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

 

“Eu tenho um sonho….”. Há exatos 50 anos, ao fazer esta frase ecoar no centro do poder norte-americano, Martin Luther King Jr. a gravou não apenas nos corações e mentes dos quase 300 mil negros e negras que haviam tomado as ruas de Washington, mas também criou um dos mais poderosos símbolos na luta contra racismo. Não só para os Estados Unidos, mas mundo afora.

Foi num 28 de agosto, em 1963, que King fez seu inspirado discurso (embora recheado de contradições, como pretendemos discutir abaixo), durante um protesto que já tinha tudo para entrar para a História. Um protesto cujo nome tem uma enorme importância para fazermos uma reflexão sobre seus 50 anos: “Marcha sobre Washington por Empregos e Liberdade”.

Realizado aos pés da gigantesca estátua do presidente Lincoln que, em 1862, assinou a “Proclamação da Emancipação”, que aboliu a escravidão, o ato foi um dos ápices do movimento pelos direitos civis (e da trajetória do próprio King) e teve importantes e imediatas repercussões na derrubada do racismo institucional (ou seja, promovido descaradamente pelo Estado e suas instituições) que corria solto nos Estados Unidos.

O cinquentenário do discurso vem sendo comemorado há uma semana em uma série de atividades que culminaram em um grande evento, no próprio dia 28, que teve como destaque a presença de Obama e dos ex-presidentes Bill Clinton e Jimmy Carter (leia abaixo).

Contudo, apesar de sua inegável importância, o discurso de King precisa ser avaliado com olhar crítico. Não só em relação ao seu próprio conteúdo, mas principalmente quando olhamos em retrospectiva.

Apesar do meio século que separa os norte-americanos de seu sonho e do fato de que, hoje, os Estados Unidos sejam governados pelo seu primeiro presidente negro, a maioria dos descendentes daquelas 300 mil pessoas (que, saindo dos mais diversos cantos do país, fizeram enormes esforços para chegar à capital) e milhões de outras que vibraram em suas casas, ao invés de viver um sonho, continua mergulhada em um pesadelo.

Um levante contra o racismo institucional
O discurso de King foi pronunciado 13 anos depois que sua voz tornou-se uma das principais expressões da luta contra o racismo. Foi no dia 1°de dezembro de 1955 que a costureira Rosa Parks desafiou a lei da cidade de Montgomery (no sulista e ultra racista estado do Alabama) que impunha que negros, além de poderem sentar apenas em algumas poucas fileiras no fundo dos ônibus, tinham que ceder seu luga caso algum branco não tivesse assento.

Apesar de não ter sido nem a primeira a desafiar a ordem nem a ser presa por isto (e a luta contra o racismo também existir desde sempre), a atitude de Parks – uma militante, desde os anos 1930, de uma das principais organizações do movimento negro norte-americano, a Associação Nacional por Avanços do Povo de Cor (NAACP, na sigla em inglês – acabou detonando o chamado movimento pelos direitos civis. E um dos principais responsáveis por isso foi o pastor Martin Luther King Jr.

Com 26 anos e recém-empossado como pastor de uma igreja batista de Montgomery, King transformou seu púlpito em um palanque na defesa que outros negros repetissem o gesto de Parks e, principalmente, boicotassem o sistema de transporte e, ao lado do NAACP, começou a organizar o movimento.

Os ânimos já estavam acirrados em função do bárbaro assassinato, pouco antes, do jovem, de 14 anos, Emmett Till, por dois brancos que foram absolvidos num julgamento fraudulento.

No decorrer dos dias, o movimento tomou a cidade e, em pouco tempo, ganhou dimensões nacionais. Por todos os lados e durante pouco mais que um ano, negros e negras optaram por andar, organizaram transportes alternativos e sistemas de carona. Qualquer coisa, menos por os pés num ônibus. Um movimento impressionante que perdurou por pouco mais de um ano, acabando apenas em novembro de 1956, depois de a Suprema Corte ter sido obrigada a acabar com a segregação no transporte.

Este foi o primeiro e decisivo passo no caminho da destruição, pelo menos formalmente, do racismo institucional que vigorava nos EUA desde 1890, baseado nas famigeradas “Leis Jim Crow”, formuladas pelo Partido Democrata (o mesmo de Obama, cabe lembrar) e baseadas no hipócrita lema “separados, mas iguais”.

Essa versão do Tio Sam do apartheid sul-africano permitia que os governos estaduais e municipais não só poderiam mas, sim, deveriam se segredados em todas as instâncias da vida social. Asquerosas placas de “Somente Brancos” se espalharam por bares, ruas, banheiros, bebedouros e todo tipo de locais públicos. Relações interraciais eram tratadas como crime. Escolas, moradias, serviços de saúde e até bancários seguiam a lógica dos “separados” do tal lema. Igualdade, evidentemente, não havia nenhuma.

Uma marcha contra a exploração e a opressão
Durante todo o decorrer do século 20, negros e negras lutaram incessantemente contra este sistema absurdo. Motivos não faltavam. Como, sempre, particularmente sob o capitalismo, a opressão estava a seu serviço.

Quando Rosa Parks embarcou na viagem que mudaria o rumo da História, 60% dos negros viviam abaixo da linha de pobreza, apenas 4% tinham curso universitário e o desemprego era uma verdadeira epidemia, condenando negros e negras a condições de vida deploráveis, agravadas pela segregação que, obviamente, era utilizada para reservar aos negros escassos e péssimos serviços públicos.

Não por acaso, a Marcha sobre Washington foi convocada em defesa do emprego e da liberdade, nesta ordem. Na década anterior, a situação insustentável havia levado negros a protestas país afora, principalmente nos ultra racistas estados do Sul. Os protestos foram confrontados com pesada repressão, em estados como Arkansas, Carolina do Norte e Mississipi. Os protestos e os rios de sangue negro que corriam pelo país, já haviam forçado, literalmente, o então presidente John Kennedy a fazer um discurso, em junho de 1962, em defesa dos direitos civis.

O primeiro impulso para a Marcha havia sido dado, em 1962, por ativistas da primeira organização operária organizada e dirigida por negros – a Irmandade dos Motorista Noturnos, filiada à principal Central Sindical norte-americana, a Federação Americana do Trabalho (AFL, na sigla em inglês).

Apesar de posições políticas entre conservadoras e “moderadas”, foram sindicalistas como o presidente da Irmandade A. Phillip Randolph (que carrega em seu currículo o lamentável apoio à perseguição aos comunistas promovida pelo abominável senador McCarthy), E.D. Nixon e Bayard Rustin que idealizaram uma jornada de luta de dois dias focada no emprego e na exigência de um plano de obras públicas. O primeiro dia seria dedicado a “sit-ins” (ocupações em que os manifestantes sentavam-se, literalmente, em locais como lanchonetes, escolas e outros lugares segregados) e protestos.

Durante o processo de organização, os membros da Irmandade – que apesar de terem enorme importância na organização da luta anti-racista, estavam entre os setores mais “moderados” do movimento – depararam-se com vergonhosas e traiçoeiras recusas de organizações como a AFL-CIO (nome adotado após a fusão com o Congresso das Organizações Industriais).

Mesmo assim, eles conseguiram impulsionar a formação do Conselho Unificado da Direção dos Direitos Civis, formado por um amplo espectro de entidades dos movimentos sindical, negro, estudantil e popular, que passou a organizar a Marcha, sob a presidência de Randolph ao lado de King, na época presidente da Conferência das Igrejas Cristãs do Sul; James Farmer (Congresso pela Igualdade Racial), John Lewis (Comitê de Coordenação dos Estudantes pela Não-Violência que, apesar do nome, era o setor mais à esquerda), Roy Wilson (NAACP) e Whitney Young (Liga Nacional por Condições Urbanas para Negros).

Sob esta direção, majoritariamente pacifista e “moderada”, a proposta inicial foi sendo transformada e, depois do discurso de Kennedy, começou a assumir um caráter de celebração da promessa presidencial de apresentar um legislação pró-direitos civis. Uma situação que fez com que dirigentes mais “radicais”, como Malcolm X – numa atitude inegavelmente sectária – boicotassem a Marcha, chamando-a, nas palavras de Malcolm “a farsa sobre Washington”.

No dia da Marcha, vale destacar que foi Randolph, certamente pressionado pelo revoltoso mar negro que agitava a capital norte-americana, que pronunciou um dos discursos mais classistas: “Que a nação saiba o significado de nossos números. Nós não somos um grupo de pressão. Nós não somos uma organização. Nós não somos uma multidão. Nós somos a vanguarda de uma revolução moral massiva que não está confinada aos negros nem confinada aos direitos civis; porque nossos aliados sabem que não serão livres enquanto não estivermos”.

Uma “curiosa” versão de uma das frases mais famosas de Karl Marx em relação ao racismo: “O trabalhador de pele branca não pode ser emancipado onde o de pele negra é estigmatizado”.

O marcante e contraditório discurso de Luther King
A passagem mais conhecida do discurso de King é aquela que diz “eu tenho um sonho de que um dia meus quatro filhos pequenos poderão viver em uma nação onde eles não sejam julgados pela cor de sua pele, mas pela essência de seu caráter”. Um sonho que, em grande medida, guarda a equivocada perspectiva política do dirigente negro.

Apesar de sua inquestionável importância e dedicação incansável à luta anti-racista e por direitos civis, King é uma destas figuras cujo papel na História é proporcional às suas contradições. Todas elas impressas em seu famoso discurso.

Na maioria de sua trajetória, por exemplo, ele não escondeu seu profundo anti-comunismo em frases como quando, tentando “alertar” os governantes sobre o perigo de não ceder às reivindicações do movimento, afirmou que o racismo é “uma questão moral…que pode determinar o destino de nossa nação na luta ideológica contra o comunismo”.

Já seu conhecido pacifismo muitas vezes beirou o masoquismo: “Nós iremos equiparar a sua capacidade de infligir sofrimento com nossa capacidade de agüentar sofrimento… Nós iremos, em breve, cansá-los, com nossa capacidade de sofrimento. Rios de sangue irão fluir antes que conquistemos nossa liberdade, mas deve ser o nosso sangue”.

É preciso que se diga que estas posturas giraram mais à esquerda no final de sua vida. Em 1967, um ano antes de ser morto (e muitos creditam seu assassinato exatamente a isto), ele colocou-se radicalmente contra a Guerra do Vietnã e declarou que “apesar de que nós conquistamos vitórias legislativas e judiciárias (…), estas vitórias fizeram muito pouco para melhorar a vida de milhões de negros denumerosos guetos do Norte”.

Conseqüente, na época, King passou a defender uma “reestruturação de toda a sociedade americana”, algo que só poderia ser feito através de uma mudança no sistema econômico e numa ampla distribuição de renda, afirmando que “o problema do racismo, o problema da exploração econômica e o problema da guerra estão todos unidos (…). E uma nação que nos explora economicamente também tem que ter investimentos estrangeiros (…) e também terá que utilizar suas forças militares para protegê-los”.

Contudo, em 1963, suas posturas eram bem mais moderadas, quando não abertamente reacionárias (do ponto de vista da concepção política geral). Algo que transparecia em todo o seu discurso. Apesar de denunciar com veemência a violência policial, a discriminação e suas conseqüências sociais, sua fala foi recheada de citações bíblicas e metáforas pacifistas como “não tentemos saciar nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura do ódio (…) não devemos deixar nosso protesto criativo degenerar em violência física”.

Sua perspectiva policlassista o fez sonhar com algo literalmente impossível: “Tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-donos de escravos poderão sentar-se juntos em irmandade”

O desmantelamento do racismo institucional
Como a História não é feita só por palavras – por mais marcante e inspirado que seja o discurso – o fato é que as centenas de milhares de negros e negras (e os poucos, mas importantes, brancos e latinos que se juntaram a eles) viram, poucos depois, brotar os frutos de sua garra e disposição de luta.

Meses depois da Marcha, no início de 1964 (mesmo ano em que King ganhou o Prêmio Nobel da Paz), o presidente Lyndon Johnson foi obrigado a assinar a lei que, formalmente, pôs fim à segregação racial em locais públicos e privados, proibiu a discriminação racial na contratação de trabalhadores e autorizou o governo federal a suspender o repasse de verbas para escolas que mantivessem a segregação racial dos estudantes.

Um ano depois, foi aprovada a lei do voto que, também no papel, derrubou as manobras jurídicas que impediam os registros dos eleitores negros (com absurdas provas para comprovar a alfabetização e impostos para votação). E, em 1967, a Suprema Corte invalidou as leis estaduais que proibiam os casamentos interraciais.

A preservação do racismo e a esquerdização do movimento
Inquestionáveis vitórias, assim como King destacou em 1967, o ruir da legislação racista, nem de longe significou o fim do racismo. Muito pelo contrário. Os setores conservadores se armaram e partiram para a reação. Violenta na proporção inversa do pacifismo de Luther King.

Uma das provas mais contundente de que a direita racista (dirigida pelo Partido Democrata) não estava sequer disposta a seguir as leis foi dada no Mississipi, governada por Democratas, num episódio imortalizado na voz de Nina Simone (que, pouco depois passaria a apoiar os Panteras Negras) na música “Mississipi Goddamn” (Maldito Mississipi) e retratado no filme “Mississipi em Chamas”.

Em junho de 1964 três ativistas (dois brancos e um negro) que estavam tentando garantir o registro de negros no estado – James Chaney, Andrew Goodman e Michael Schwerner –, sistematicamente pelo legislativo e judiciário locais, foram barbaramente assassinados e dados como “desaparecidos. Durante as seis semanas de campanha, outros seis negros foram mortos, mil pessoas foram presas, 30 prédios que abrigavam os voluntários foram bombardeados e cerca de 40 igrejas incendiadas.

Violência semelhante ocorreu nas brigadas – que também incluíram milhares de jovens estudantes brancos – que foram formadas para garantir a inscrição e permanência dos alunos negros e negras. Para se ter uma ideia da situação, basta lembrar que ficaram famosas os sessões de treinamento às quais negros e negras se submetiam e consistiam em ficar sentado, impassível, como se estivessem em salas de aula, enquanto os ativistas os xingavam, hostilizavam, agrediam fisicamente e davam cusparadas. Ou seja, preparavam os candidatos a tudo que iriam enfrentar nas escolas “integradas”.

A quebra das promessas, o desrespeito às leis aprovadas e a violenta repressão ao movimento acirraram os anos. A radicalização aumentou ainda mais alimentada pelo clima revolucionário e rebelde que varria o cenário internacional, manifesto em processos como a Revolução Cubana, as independências dos países africanos e o  os ventos libertários que estava na raiz da ebulição dos movimentos feminista, LGBT e estudantil (Maio de 1968) ou da chamada contracultura (Woodstock e variantes).

Um dos efeitos mais diretos da combinação de todos este elemento foi a intensificação da identificação entre o sistema sócio-econômico (a exploração) e o racismo, como fica evidente na fala de Luther King, acima. Outra consequência foi a justa adoção de políticas de autodefesa (origem dos Panteras) e a opção pela luta armada.

Ainda em 1965, Malcolm X, que sempre foi muito mais radical que King (apesar das enormes contradições e conservadorismo da Nação do Islã), foi covardemente assassinado, pouco depois de cunhar sua versão da associação entre exploração e opressão: “Não capitalismo sem racismo” que serve como “slogan” para o Quilombo Raça e Classe, filiado a CSP-Conlutas.

Um dos exemplos mais importantes desse período foi a formação do Partido dos Panteras Negras pela Autodefesa (1966) sob a liderança de Huey P. Newton e Bobby Seale) cuja influência marxista (distorcida pelo maoismo) estava presente em seu programa de 10 pontos.

Outro importante exemplo é Movimento Revolucionário Sindical de Dodge (DRUM, na sigla em inglês). Criado na esteira de uma greve nas fábricas automobilísticas de Detroit, o DRUM (dirigido, dentre outros, por Mike Hamlin) tinha uma perspectiva classista e revolucionária, tomando como centro de sua intervenção a classe operária negra nas fábricas.

Tudo isto sofreu um enorme retrocesso nos anos 1970, com um perseguição assassina e criminosa particularmente aos Panteras (cujo um dos símbolos, além das sedes bombardeadas, foi a condenação, fraudulenta, de Múmia Abul Jamal, em 1980 (que só há pouco anos recebeu um “benifícia”:  a transformação da pena em prisão perpétua).

O “sonho” de Obama não ter a ver com os negros
De forma bastante significativa, o jornalista Raul Juste Lores abriu um artigo, publicado na Folha de S. Paulo, no dia 25 de agosto, com um parágrafo pra lá de apropriado para discutimos porque Obama não tem nada a ver até mesmo com os setores mais conservadores da década de 1960 e que sua hipocrisia o faz indigno de se apresentar, como fez no dia 28 de agosto, no mesmo lugar do discurso histórico.

Como lembra o jornalista, hoje a situação dos negros (e um número menos de negras) ocupam postos chaves no topo do sistema capitalista: “Os presidentes da American Express, Merck e Xerox são negros. Os prefeitos de Washington, Denver e Filadéfia, de maioria branca, também são, tal como o governador de Massachusetts. Também são negros cerca de 10% dos deputados e senadores do Congresso americano, pouco abaixo da porcentagem da população negra no país, que é de cerca de 13%. E o ocupante da Casa Branca é, desde 2009, Barack Obama”.

Em seu discurso, enquanto ocupava o mesmíssimo lugar dos oradores de 1963, Obama evidentemente não destacou nada disso. Muito pelo contrário, jogou para o público em um discurso que é uma pérola do populismo, que incluiu latinos, mulheres, LGBT, católicos, judeus e mulçumanos entre os que, hoje, compartilham do sonho de Luther King.

Diante de uma multidão que a imprensa (sintomaticamente) só apresentou como “dezenas de milhares” e cercado pelos presidentes democratas Clinton e Carter e (ao invés de sindicalista, ativistas e organizações do movimento, salva raras exceções) tendo como oradores gente como Oprah Winfrey, parlamentares, artistas e celebridades e uns tantos outros que serviram de exemplo dos negros e negras que “realizaram seus sonhos”,  Obama resgatou a imagem pacifista de King, defendeu aumentos de salário, leis trabalhistas e o aumento do imposto sobre a riqueza.

Um programa que pode ser equiparado ao sonho dos lutadores de 1963, mas, apesar de ter assumido que seria ofensivo dizer que “o trabalho está de alguma forma concluído”, Obama “esqueceu-se” de um detalhe significativo: sua responsabilidade, agravada pelo fato de ser o primeiro presidente negro do país, em relação a tudo isto.

Uma gritante contradição com a frase mais citada do discurso presidencial: “Qual é a vantagem para um homem, Dr. King perguntaria, de sentar-se em um balcão integrado se ele não pode pagar uma refeição”.

Este “sonho” é impossível para a maioria dos negros dos EUA exatamente pela manutenção de políticas neoliberais que fazem com que a maioria da população negra vivam um pesadelo cotidiano – aprofundado pela crise de 2008, que, diga-se de passagem, incidiu fortemente nas esperança que negros, latinos e pobres depositaram em Obama.

Contudo, dados que circularam pela imprensa esta semana dizem muito sobre a real situação da enorme maioria que nunca teve acesso ao sonho dourado e reluzente de Oprah e do próprio Obama. Opressão racial e exploração continuam impor uma segregação, fundamentalmente baseada nas profundas diferenças socioeconômicas e políticas. Todas elas, de alguma forma, causadas ou sustentadas pelo mesmo racismo institucional e de classe contra o qual o movimento pelos direitos civis tanto lutou.

  • Contradizendo tudo que Obama disse, os brancos foram, de longe, os mais beneficiados pelas políticas adotadas por ele. O Urban Institute calcula que metade dos US$ 400 bilhões usados para estimular as famílias a constituírem ativos (bens e direitos) foi destinada àqueles que já têm a maior renda.
  • 28% dos negros vivem abaixo da linha de pobreza (ou seja, recebem menos do que US$ 23,000 anuais), contra 9,8% em situação semelhante.
  • Na capital onde a marcha foi realizada, os negros representam 50,7% da população. Contudo, 90% deles vivem em Anacosta, a periferia decadente da cidade. Na vizinhança negra, a renda média anual é de US$ 29,5 (pouco acima da linha de pobreza); enquanto a dos brancos, que vivem ao redor do centro da cidade,
  • Há um abismo maior que Grande Canyon entre a renda média, anual, das famílias brancas e negras. A dos negros é US$ 6,314. A dos brancos é de US$ 110,5. Ou seja, quase 20 vezes maior.
  • Nos últimos 50 anos o média do desemprego entre negros foi de 11,6% (contra 5,1% dos brancos). Em 2012, a relação era de 12,6% versus 6.6%.
  • Apesar da aprovação de Lei de Moradia Justa, aprovada cinco anos depois da Marcha sobre Washington, os principais bancos do país, ainda discriminam negros, dificultando empréstimos e acesso ao crédito e jogando a população negra para as casas e bairros em condições mais precárias.
  • O sistema educacional ainda é financiado pelas instâncias locais (municípios, distritos etc.). Consequentemente, bairros brancos tem escolas em condições a anos-luz dos novos guetos negros.
  • O sistema judiciário, um dos principais focos de 1963, continua escandalosamente racista. Um negro pego com maconha, por exemplo, tem 3,75 vezes mais chances de ser preso do que um branco.
  •  O sistema prisional reflete a “justiça dos brancos e ricos” acobertados pelo presidente negro. Apesar de serem 13,6% da população, negros são 38% dos detentos e uma porcentagem ainda maior dos que estão no corredor da morte. Entre os mais jovens, o número de negros encarcerados é seis vezes maior o de que de brancos.
  •  A violência policial contra negros não tem limites, indo de batidas criminosas, como o famoso caso de Rodney King, a eliminação pura e simples. Como também os ataques de racistas, que acabam saindo impunes de seus crimes, como ficou evidente no assassinato do jovem Trayvor Martin.

 

Diante de tudo isto, não surpreende que 46% dos negros acreditam que, hoje, ainda existe muito racismo (contra 16% que, de forma bastante cômoda, concordam com isto). Com um cinismo típico daqueles que se aliam à classe dominante, em seu discurso tentou tirar de si próprio a responsabilidade sobre a situação, culpando “os interesses econômicos entrincheirados, aqueles que beneficiam de um status quo injusto, resistem a qualquer esforço do governo de dar a família dos trabalhadores um porção justa”.

E se isso não fosse hipocrisia suficiente, o presidente negro ainda acrescentou que a Marcha abriu “as portas das oportunidades e educação (…) permitindo que os filhos dos manifestantes “pudessem imaginar uma vida para si próprios sem ser obrigados a lavar a roupa e engraxar os sapatos dos outros”. Hipócrita e descaradamente mentirosa, a declaração de Obama mal mascara o fato de que esses mesmo “interesses econômicos” são protegidos, patrocinados e beneficiados pelo seu governo, como comprovam os dados.

Nosso sonho é classista, coletivo e quilombola
Por estas e muitas outras, por mais que tenhamos diferenças com Martin Luther King Jr. e seu discurso, elas, de forma alguma, igualam-se às que temos em relação Obama. Não há como concordar com o pacifismo do pastor e dirigente negro e as posições políticas que ele defendeu. Mas nunca poderemos acusá-lo como uma agente da burguesia e, consequentemente, alguém que estimulou e contribuiu para perpetuar o racismo.

Obama é um caso diferente em todos os sentidos. Ao ponto de não ser digno de, em seu discurso, ter ocupado o mesmo lugar dos ativistas de 1963. Por maiores que sejam as simpatias e ilusões que ele alimenta entre os setores mais pobres, oprimidos e discriminados dos EUA (e, por tabela, do mundo). Ele é um aliado e representante do Capital, que, como lembrou Malcolm X, é o motor do racismo.

Por isso, seu discurso só merece ser respondido com um poema de um outro negro que seguiu um caminho todo ele distinto do presidente norte-americano: o genial poeta-guerreiro Solano Trindade.

Em seu poema “Negros”, Solano nos lembra: “(…) negros senhores senhores na América / a serviço do Capital / não são meus irmãos / negros opressores em qualquer parte do mundo / não são meus irmãos / Só os negros oprimidos / escravizados /  em luta pela liberdade / são meus irmãos / Para estes tenho um poema grande como o Nilo”.

Por isso, ao contrário de Obama e seus aliados, brancos ou negros, são nossos irmãos cada um dos quase 300 mil negros e negras (e seus aliados brancos). Apesar das divergências expostas, nos orgulhamos e a eles devemos respeito. Um respeito e um orgulho que só pode vir acompanhado de um compromisso: lutar incessantemente para que seus sonhos de liberdade e igualdade se concretizem. Nos EUA ou em qualquer lugar onde o racismo, o machismo, a homofobia resistam.

Um sonho que, na nossa opinião, só poderá ser realizado, de acordo com um belo ensinamento de Lênin: “É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles.”.