Os médicos defendem o direito das mulheres interromperem a gravidez até a 12ª semana da gestação caso desejemO Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou no último dia 21/03, em congresso realizado na cidade de Belém, resolução que recomenda mudanças na legislação sobre o aborto. Os médicos defendem o direito das mulheres interromperem a gravidez até a 12ª semana da gestação caso desejem, sem que isso traga implicações legais a elas e aos profissionais. Trata-se de uma resolução que apóia as mudanças de Reforma do Código Penal referentes ao aborto, contidas no PLS 236/2012, que vem sendo debatidas pelo Senado Federal.

O PLS 236/2012 propõe manter o aborto como crime, mas ampliar as “exceções” nas quais o aborto pode ser considerado legal. Hoje, há três situações em que isso é possível: gravidez decorrente de estupro, quando a gestação ameaça a vida da mãe e em casos de fetos anencéfelos. A proposta é incluir uma quarta condição: ser realizado até a 12ª semana de gestação, por vontade da mulher, desde que autorizado por médico ou psicólogo.

“Os Conselhos de Medicina concordaram que a Reforma do Código Penal, que ainda aguarda votação, deve afastar a ilicitude da interrupção da gestação em uma das seguintes situações: a) quando “houver risco à vida ou à saúde da gestante”; b) se “a gravidez resultar de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”; c) se for “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos”; e d) se “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação”, diz o texto disponível no site do CFM.

É uma resolução bastante parecida com a da Reforma do Código Penal, mas com um importante agregado: dispensa o laudo do profissional de saúde para autorizar o procedimento e propõe substituí-lo por uma declaração da mulher manifestando sua vontade. Isso dá maior autonomia para que elas decidam sobre seus corpos.

O entendimento foi construído a partir de estudos e debates durante vários meses, e se pautou nas várias dimensões da questão. Entre as argumentações, as de maior relevância são as que envolvem a saúde da mulher e as de caráter social.

No Brasil, a cada ano são registrados um milhão de abortos, quantidade que representa metade dos partos realizados no mesmo período que são cerca de 2,2 milhões. O perfil das que abortam não tem nada a ver com o estereótipo de criminosas, como são tomadas pela nossa legislação. Elas têm entre 20 e 29 anos, vivem em união estável, têm até oito anos de estudo, são trabalhadoras, católicas, com pelo menos um filho, usam métodos contraceptivos e a maioria se declara contra o aborto.

Conforme o CFM, o aborto é uma das maiores causas de morte materna e é a terceira causa de ocupação de leitos nas maternidades do SUS. As mortes decorrentes de intervenção mal sucedida poderiam ser evitadas em mais de 90% das situações, caso fossem realizados por profissionais capacitados e em condições adequadas de higiene. Soma-se a isso o fato das mulheres pobres, que tem maiores dificuldades de acesso às redes de atendimento, serem as que mais morrem.

Essa realidade não pode mais ser tomada apenas como caso de polícia, tem de ser vista como um problema de saúde pública. É esse o mais importante resultado da proposição do CFM. Ainda não estamos falando da legalização do aborto, aliás, o Conselho faz questão de frisar que é contrário. Mas podemos com certeza dizer que se abrem novos parâmetros para pautar a discussão, avançando para além dos vieses moralistas ou conservadores.

Os setores religiosos já saíram em ataque à resolução do CFM nos últimos dias. Além de atacar a suposta falta de ética do conselho, a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) questionou o componente de classe da atual legislação, que compromete a saúde principalmente das mulheres trabalhadoras. Segundo Clóvis Bonfleur, representante da entidade, “não há nada que prove que mulheres com recursos são submetidas ao procedimento com segurança ficando o risco de vida apenas às mais pobres”. Ele parece desconhecer a realidade do país, que à revelia da legislação, possui dezenas de clínicas de luxo que cobram milhares de reais para a realização de abortos, feitos por profissionais de saúde, com toda a segurança possível. Mas essa realidade não é acessível a todas as mulheres. Para a maioria, sobram apenas os métodos mais arcaicos possíveis e, depois, os leitos dos hospitais públicos para tentar resolver as sequelas.

Nos últimos 10 anos, todas as ações tomadas pelos governos ou deputados atuaram no sentido de retroceder as conquistas das mulheres nesse terreno, em um movimento oposto aos observados em alguns países da Europa ou mesmo em países vizinhos, como o Uruguai que recentemente descriminalizou a prática. Neste país, inclusive, a postura da categoria médica a favor da legalização do aborto em unidade com os movimentos de mulheres foi determinante para o fortalecimento desta luta na sociedade.

A “frente em defesa da vida”, dirigida por setores religiosos burgueses, é o movimento que tem pautado as ações do governo em relação a esse tema desde sua eleição, quando Dilma apresentou a “Carta ao Povo de Deus”, comprometendo-se a não descriminalizar o aborto no país. Essa posição encontra eco no avanço do conservadorismo e ganha espaço na medida em que muitos movimentos governistas se calam para proteger a presidenta.

Em maio de 2010, com o apoio de setores do PT, o “Estatuto do Nascituro” (Estatuto do não nascido) foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. O Estatuto pretende, entre outras coisas, transformar em crime os abortos considerados legais hoje, como os provenientes de estupros. Também em 2010, o governo Lula retirou o apoio à descriminalização do aborto e às cláusulas que permitiam ampliar os casos de aborto legal do Plano Nacional de Direitos Humanos.

A proposta do Conselho e a Reforma do Código Penal nesse assunto vão, felizmente, na contramão do que estamos vendo até aqui. Mas ainda não é unânime entre os médicos e o governo já deu seu recado. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, garantiu que não há nenhuma intenção do governo em avançar na legalização da prática. É um absurdo que no governo de Dilma, “a maior autoridade desse país”, conforme suas próprias palavras, a postura seja fechar os olhos para as mulheres que morrem e deixar a situação como está.

A classe trabalhadora organizada e os movimentos feministas classistas devem exigir medidas concretas do governo, que começam por uma campanha efetiva de prevenção e educação sexual, com distribuição de camisinhas e anticoncepcionais gratuitos sem burocracias nos postos de saúde, mas que tenha por objetivo assegurar o aborto legal, gratuito e feito em condições de higiene. A resolução do CRM, ao abordar o tema sob ótica da saúde pública, pode ser um importante instrumento para isso.