O que está por trás da proliferação das chamadas “Organizações Não-Governamentais”?Vários fatores se escondem por trás do crescimento do autodenominado “Terceiro Setor”. O termo, cunhado para diferenciar um ramo de atividade que não poderia ser definido como estatal, nem como privado, tornou-se parte do rol de palavras politicamente corretas que inundam nosso vocabulário, tal como “cidadania” e “voluntariado”. O que essas aparentemente inofensivas palavras têm em comum? Mascaram a divisão de classes que cinge nossa sociedade, retirando da política a possibilidade de mudar o mundo.

Onipresentes praticamente em todas as áreas sociais, as ONG’s despontam como perspectiva de atuação para inúmeros jovens ativistas desiludidos com a possibilidade de mudança por meio da política. Motivos não faltam para essa desilusão e esse ceticismo. A perpetuação da desigualdade social e a corrupção sistêmica que atinge políticos e partidos, inclusive da esquerda reformista, como o PT, que até pouquíssimo tempo eram revestidos por uma aura de santidade, fizeram com que boa parte da população tenha se desacreditado desse regime democrático-burguês.

No entanto, devido às inúmeras traições perpetradas por partidos que antes se colocavam como alternativa a esse sistema, tal desilusão em boa parte desaguou para uma opção individualista e apolítica. Um levantamento feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisas e Economia Aplicada) em conjunto com o IBGE e a Abong (Associação Brasileira de ONG’s), em 2004, dá conta que, só no Brasil, existem 276 mil Organizações Não-Governamentais. Com uma aparência antipoder e antipartido, prometendo resultados imediatos em troca do esforço individual, as ONG’s capitalizaram não só ativistas, mas também tradicionais quadros da esquerda.

O início
A origem dessas organizações, porém, não foi nada espontânea. O termo ONG foi forjado na Ata de Constituição da ONU, em 1946. A proliferação das ONG’s deu-se já durante a segunda metade da década de 60 na América Latina. As Organizações Não-Governamentais cresceram ocupando um espaço deixado pelo Estado. No entanto, o financiamento dessas entidades não vinha da “sociedade civil”, mas do próprio Estado.

Boa parte das ONG’s que atuavam nessa época na América Latina eram e são sustentadas por países europeus e pelo Banco Mundial. De acordo com o sociólogo James Petras, em seu livro “Hegemonia dos Estados Unidos”, de 2001, existem 50 mil ONG’s nos países subdesenvolvidos que recebem algo em torno de US$ 10 bilhões de instituições financeiras européias, norte-americanas e japonesas.

As ONG’s cresceram junto com o neoliberalismo, alavancadas pelo próprio sistema, cujos efeitos afirmam combater. Ainda segundo Petras, em seu artigo “As duas caras das ONG’s”, “numerosos líderes de ONG’s se aliaram a regimes neoliberais que utilizaram sua experiência organizativa e retórica progressista para controlar protestos populares e desestabilizar movimentos sociais”. Desta forma, ao mesmo tempo em que atuam em práticas assistencialistas para minimizar os efeitos do neoliberalismo, no sentido de evitar convulsões sociais, as Organizações Não-Governamentais trabalharam principalmente na cooptação de lideranças populares.

Pequenas ONG’s,grandes negócios
Com o tempo, as ONG’s transformaram-se num grande e lucrativo negócio. A legião de pobres e miseráveis produzida por duas décadas de neoliberalismo na América Latina conferiu às ONG’s um inesgotável “público alvo”, ou seja, uma desculpa para existir. Ao atuar oferecendo serviços públicos e recebendo dinheiro do Estado, essas entidades são cúmplices dos governos no processo de terceirização dos serviços públicos.

Isso ocorre de forma dramática em órgãos federais como o Ibama e a Funasa. Além de promoverem a substituição de servidores públicos contratados por “voluntários”, as ONG’s freqüentemente superfaturam custos de programas sociais para desviar verbas públicas. Isso porque, não sendo caracterizadas como empresas lucrativas, as ONG’s encontram caminho livre e desburocratizado para buscar financiamento estatal, criando um verdadeiro mercado da miséria.

Tal filão já chamou a atenção dos bancos. A Fundação Itaú Social promove, neste momento, um curso para “Gestores de ONG’s sobre avaliação econômica de Projetos”. Como afirma o vice-presidente do Itaú, Antonio Matias, “a avaliação pode ser aplicada a qualquer programa, em qualquer área, de educação e saúde até ao combate ao trabalho infantil e à criminalidade”. Desta forma, pode-se avaliar o setor mais lucrativo para se investir e garantir um retorno favorável. A Fundação Getúlio Vargas também disponibiliza um curso para “capacitação” de ONG’s.

O jornalista e escritor Julio Ludemir morou três anos na favela da Rocinha para escrever seu livro “Sorria, Você Está na Rocinha”. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o jornalista explica de que forma se dá a atuação do Terceiro Setor na favela, geralmente aliada ao tráfico de drogas. “Essas pessoas (ONG’s) têm muito mais interesse na preservação do seu projeto do que na sua eficácia. E querem a guerra. Não há nada melhor para esses projetos sociais do que a guerra [disputa entre traficantes]”.

Se o Terceiro Setor beneficia principalmente os governos neoliberais, as multinacionais também não ficam atrás. No Brasil, um portal na Internet aglutina e divulga ações de voluntariado. Sustentado por empresas como rede Globo, IBM, BankBoston e Itaú, esse portal “desenvolve ferramentas de gestão de voluntariado” para essas corporações.

Os objetivos do portal são explicitados na mensagem que é divulgada ao candidato a voluntário que o acessa. “Ao nos preocuparmos com a sorte dos outros, ao nos mobilizarmos por causas de interesse social e comunitário, estabelecemos laços de solidariedade e confiança mútua que nos protegem a todos em tempos de crise, que tornam a sociedade mais unida e fazem de cada um de nós um ser humano melhor.”
Por essa lógica, as desigualdades sociais não são fruto da exploração de uma classe sobre a outra, mas sim fruto da falta de “sorte dos outros”. Percebe-se, então, a razão que faz com que multinacionais invistam no Terceiro Setor.
Talvez um dos aspectos mais perversos dessa história seja a cooptação de ativistas honestos para esse projeto. Assim governos e multinacionais utilizam-se da genuína vontade de mudar a realidade para cooptar, sobretudo, os mais jovens. Não por acaso esse foi o principal público-alvo da campanha “Ano Internacional do Voluntariado”, em 2001.

O aumento do número de ONG’s é proporcional ao aumento da miséria e pobreza na América Latina. Como afirma Petras, as ONG’s não passam do “rosto comunitário do neoliberalismo”.

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