A ocupação da reitoria da USP, da Unesp-Marília e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp pelos estudantes dessas universidades tem sido objeto de muita discussão. Em 1968, durante a ditadura militar, outra ocupação de prédios da USP pelos estudantes, o da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na rua Maria Antonia, dividiu as opiniões e as atitudes, definindo quase geograficamente o mapa do espectro político paulista: quem estava no lado da rua do Mackenzie e quem estava no lado da USP. Muitos dos que hoje são professores estiveram naquele momento ocupando a sua faculdade. Mas não são poucos os que se emocionam ao falar da Maria Antonia e hoje são contrários às novas ocupações.

A ocupação nas reitorias e universidades é um ato simbólico por meio do qual tem lugar a reapropriação pelo público daqueles espaços que teoricamente são ou deveriam ser públicos. Como tal, a ocupação é uma ressignificação do território na qual a sede da autoridade universitária, da tradição acadêmica e da burocracia universitária passa a ser a sede de sua contestação, transgressão e questionamento. O espaço da imobilidade passa assim a ser o espaço do movimento.

A ocupação é, também, um ato por meio do qual os estudantes interpelam as autoridades universitárias e governamentais colocando em evidência uma agenda política que de outro modo permaneceria na penumbra. Exercendo seu direito à rebelião, os estudantes estão redefinindo os termos da discussão e argumentando, com seus atos, em favor da autonomia universitária e da defesa de uma universidade pública.

A ação dos estudantes é uma resposta vigorosa à crise das universidades paulistas. Essa crise não começou com os decretos do governador José Serra. A redução do quadro docente e seu envelhecimento, as restrições orçamentárias, o estrangulamento do financiamento estatal para a pesquisa e a pós-graduação são sintomas dessa crise. Mas se o governador não criou essa crise ele sem dúvida a agravou com seus decretos, com a criação da Secretaria de Ensino Superior e com a nomeação do professor José Pinotti, vice-reitor das Faculdades Metropolitanas Unidas como secretário.

O atual movimento estudantil expressa, também, a insatisfação contra um governo federal que deu início a seu mandato anunciando a vitória da esperança sobre o medo para, logo a seguir, frustrar essas mesmas esperanças. Condenados a ver a universidade na qual depositaram o seu futuro sucateada e o próprio futuro confiscado pelos governos estaduais e federal os estudantes resolveram agir. O alcance dessa ação ainda depende da capacidade de articular um programa de renovação da universidade com um programa de transformação social.

Embora vigorosa, a ação dos estudantes não pode ser considerada desmedida ou inusitada. Não há novidade em uma ocupação universitária, assim como não há novidade na oposição que ela desperta entre os setores mais conservadores da comunidade acadêmica e da sociedade.

A história da universidade é também a história do movimento estudantil e de suas ocupações. Em nosso continente, a agenda da autonomia universitária, da gestão pela comunidade universitária e da docência livre foi apresentada pela primeira vez pelos estudantes na Universidade de Córdoba, em 1818. Rapidamente os estudantes despertaram a simpatia de um nascente movimento sindical que e eles se uniu nas ruas de Córdoba.

Também houve, nessa ocasião, a ocupação da universidade, e também não faltaram os que condenaram os estudantes, como fez o bispo do Córdoba, que anunciou horrorizado a chegada da “hora das democracias e do proletariado, criada e saudada com ardor pelos apóstolos da demagogia, hora de subversão e anarquia geral”.

O movimento de Córdoba definiu para a América Latina um paradigma de universidade pública, laica e democrática, co-gerida por estudantes e professores, independente da Igreja e do Estado e aberta aos problemas de sua época. Esse paradigma influenciou imediatamente movimentos de reforma universitária no Peru, Chile, Cuba, Colômbia, Guatemala e Equador e, durante a década de 1930, no Brasil, Paraguai, Bolívia, Venezuela e México. Olhando a partir do presente são poucos os que duvidam que a razão estava com os estudantes de Córdoba que ocuparam a universidade e não com o bispo da cidade.

E hoje, perante as ocupações na USP, Unesp e Unicamp quem estaria disposto a fazer o papel do bispo? Alguns pedem a intervenção policial. Caso isso ocorra, as universidades passariam a ser ocupadas não pelos seus alunos e funcionários, mas por uma força militar repressiva inaugurando uma situação inédita e que se tornaria a maior violação do princípio da autonomia universitária.

A universidade, sede do pensamento crítico e do debate livre das idéias estaria cedendo a voz da razão para a força das armas. A situação da USP é a mais crítica. Ainda é tempo da reitora Suely Vilela realizar o que havia se comprometido: conversar com os estudantes numa audiência pública, ouvir as suas reivindicações e explicar-lhes a sua posição diante dos decretos do governador Serra. Ainda é tempo de ser convocada uma reunião aberta no anfiteatro na qual a crise entre a comunidade acadêmica possa ser debatida, sem a presença da polícia.

Neste momento, a simples retomada da negociação e a reabertura do diálogo já seriam uma demonstração de respeito à vocação crítica e democrática da universidade autônoma. O outro caminho é o da repressão policial que abrirá uma ferida que será difícil de curar no seio da USP e de todas as universidades públicas paulistas e brasileiras.

* Henrique Carneiro é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).
Ruy Braga é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Alvaro Bianchi é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

  • Artigo publicado originalmente em no blog da ocupação da USP (http://ocupacaousp.blog.terra.com.br)

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