Redação

Tácito, de São Paulo (SP)

Faleceu, no dia 10 de janeiro de 2020, aos 67 anos, o baterista Neil Peart da banda canadense Rush. Deixou para o mundo um legado imenso não só como o baterista – apontado por muitos como o maior da história – mas como um letrista inigualável. Foi através de sua musicalidade nas baquetas e no seu domínio lírico que o Rush deixou de ser uma banda de sucesso local e alcançou o posto de uma das maiores lendas do rock.

O início
Nascido no Canadá, Neil Peart teve uma infância rural, crescendo em uma fazenda e tendo só seus irmãos como amigos. Talvez por isso sempre fora o mais tímido da banda, encontrando seu refúgio na literatura. O mesmo passou a infância aspirando a carreira de escritor, mas a invasão britânica de bandas como Beatles, Rolling Stones e The Who o fizeram mudar de planos. Nada mais natural para uma criança na época querer ser um rockstar, de forma que escolheu a bateria logo cedo. Tentou a sorte na Inglaterra, um dos grandes celeiros de bandas da época, mas logo retornaria a sua fazenda, desiludido.

O Rush já havia lançado o primeiro disco e já tinha um sucesso local em Toronto. Na mesma época, uma música da banda, Working Man, passou a fazer um considerável sucesso na região de Cleveland nos Estados Unidos. A letra fala sobre o cotidiano de um jovem operário, realidade quase padrão naquela cidade nos anos 70. O sucesso foi tanto que a banda consegue um contrato com uma gravadora maior e uma turnê pela América do Norte, porém, o baterista da banda na época, John Rutsey, era mais velho e tinha problemas de saúde. Jovens e apreensivos com a turnê no horizonte, o resto da banda – Geedy Lee (baixo) e Alex Lifeson (guitarra) – decidem dispensá-lo e anuncia, em um jornal que precisava de um novo baterista. Relutante em seguir a carreira como músico, Peart, convencido pelo pai, viaja para Toronto onde realiza uma audição e é aceito.

Entrando na banda e 2112: indo para as cabeças
Peart entra e logo se identifica com os dois integrantes. Enquanto a grande maioria das bandas de rock na época viviam sobre a máxima do sexo, drogas e rock n´roll, Lee e Lifeson eram verdadeiros nerds: amigos de infância, compartilhavam desde sempre o amor pela música, o gosto pela literatura e pela vida pacata. Enquanto o camarim de outras bandas era uma verdadeira devassidão, ambos gostavam de terminar os shows e ir para o hotel, onde podiam compor, ver suas séries favoritas, tomar algumas cervejas, ligar para as namoradas e dormir cedo. Eram companheiros perfeitos para um garoto recluso que havia crescido em uma fazenda devorando livros, e logo os três se tornaram inseparáveis. Porém, apesar de toda a capacidade, faltava identidade à música. Apelidados pela mídia de “O Led Zeppelin canadense”, o Rush ainda não tinha um som para chamar de seu. Peart, conforme ficava à vontade, foi imprimindo seu estilo, primeiro na faixa By-Tor and the Snowdog do álbum Fly by Night, de 1974 e depois nas faixas The Necromancer e na The Fountain of Lamneth, com quase 20 minutos de duração, do álbum Caress of Steel, de 1975. Porém, mesmo representando uma evolução sonora, os discos comercialmente foram verdadeiros fracassos e a gravadora, ansiosa por reproduzir o sucesso de Working Man, deu um ultimato: ou o Rush se adequava ou o contrato estaria encerrado. Só não contavam com a decisão da banda que, se fosse para caírem, que caíssem de pé.

Era tudo ou nada. Peart decide se isolar na fazenda da família com o livro A Nascente de Ayl Rand, que conta a história de um aluno de arquitetura que se revolta com o conservadorismo da universidade, que ensinava que o sucesso era reproduzir o que estava feito. Mesmo ciente do caráter conservador no livro (considerado a “bíblia” dos republicanos nos Estados Unidos), Peart não resiste em construir a narrativa da sua próxima epopeia sobre a história da personagem principal. 2112 então é uma música aos moldes dessa fase do Rush, de 20 minutos divididos em 7 partes. A música conta a história do ano 2112, quando a humanidade, após uma guerra galáctica, finalmente vive unida sob a ditadura dos sacerdotes do templo de Syrinx. Um dia, um homem ao entrar em uma caverna, descobre um violão e fica maravilhado com os sons que pode tirar do instrumento. Porém, ao mostrar aos sacerdotes, os mesmos o destroem por não reproduzir os padrões da sociedade e o reprimem por defender um dos “caprichos tolos” que levou o fim da civilização. Esse homem então se isola e passa a sonhar com a liberdade de expressão, se suicidando ao final. Enquanto isso, o templo é atacado por um exército galáctico, que põe fim à ditadura dos sacerdotes.

Construído como uma alegoria da história da banda com a gravadora, a música é relutantemente lançada no disco como a principal faixa, sendo inclusive escolhida como o título do álbum. Mas, para o choque da gravadora e dos próprios integrantes, que já planejavam o que fariam da vida, o disco explode, tornando o Rush uma das maiores bandas do mundo.

A era progressiva e o Moving Pictures: gigantes do rock
Tal sucesso garantiu carta branca para o Rush tocar o que quiser, e eles passam a almejar o som mais complexo possível. Geddy Lee, na época, tocava um baixo de dois braços enquanto cantava e tocava teclado com os pés. Peart adicionava cada vez mais elementos à bateria, ficando famoso pelo seu kit gigante com direito a sinos e um gongo. Desnecessário dizer que chegou um momento que eles mesmos cansaram. Após o disco Hemispheres de 1978, onde levaram mais tempo gravando a faixa instrumental La Villa Strangiato  que o disco Fly By Night inteiro, os integrantes decidem dar um tempo. Ainda nos seus 20 anos de idade, a banda emerge na new wave e outros estilos da época, como o reggae, e percebe que era possível manter a complexidade sonora sem fazer as imensas faixas da primeira fase. Eles entram nos anos 80 com um disco bem mais radiofônico, Permanent Waves, mas ganham na loteria novamente com o disco de 1981, o Moving Pictures.

Praticamente uma coletânea de grandes sucessos, Moving Pictures mostra o amadurecimento de uma banda então considerada progressiva para um som complexo, porém bem mais maleável. A melodia da faixa instrumental YYZ, construída em cima do código do aeroporto canadense, mostra todo o talento de Peart ao combinar partes da bateria com elementos percussivos. Porém nada superaria Tom Sawyer em sucesso. A música, inclusive, trouxe a obra da banda ao Brasil, já que a Globo decide usar um trecho da canção na abertura da série Profissão Perigo. Assim como o Iron Maiden que, apesar de não tocar em praticamente nenhum programa popular, consegue arrastar multidões país afora pelo fanatismo dos fãs, o Rush passa a ser objeto de devoção de um público fiel, que 20 anos depois lotaria o Maracanã para cantar a plenos pulmões esse e muitos outros sucessos.

O resto é história. Agora como um gigante, o Rush embalaria em uma fase com muito mais sintetizadores e Peart usando partes eletrônicas. Nos anos 90, sempre atentos às tendências, retornam aos instrumentos orgânicos, se reinventando novamente. Nessa época, Peart, vendo que não podia tocar mais da mesma maneira dada a idade, emerge em estudos sobre o jazz e muda todo seu estilo, do modo de bater nos bumbos a segurar a baqueta e sentar no banquinho, conseguindo reproduzir o mesmo som com muito menos esforço. O próprio dizia que, sem isso, teria que ter se aposentado bem mais cedo.

O sucesso seria interrompido por uma tragédia: a morte da filha de Peart em um acidente e, poucos meses depois, da primeira esposa, para um câncer. Ele decide pausar a carreira e passa cinco anos viajando de moto pela América do Norte. A banda ainda gravaria mais clássicos, mas o destaque fica para o disco ao vivo Rush In Rio, onde os três lotaram o Maracanã para, em suas palavras, a plateia mais insana das suas carreiras. Em 2015, a banda oficialmente se aposenta, e Peart passa a se dedicar à família e à literatura. Foi diagnosticado com câncer há três anos. Recluso, levou sua batalha em silêncio com a família e seus dois melhores amigos, mas não resistiu.

Integridade e respeito: o fim do Rush
Medir o tamanho da obra do Rush é impossível para um texto só. Uma carreira de mais de 40 anos, diversas fases, uma disciplina sem tamanho e um amor à música marcarão para sempre quem quer que ouça um disco. Peart cravou seu lugar na história, reconhecido por muitos como o maior baterista da história, sendo citado como a inspiração máxima de diversos músicos. As tragédias pessoais, mesmo o tornando uma pessoa aparentemente fechada, não o afastaram da arte, e o mesmo se manteve como uma rocha nas baquetas. Ilustrativo, por exemplo, é sua performance no vídeo no Rush In Rio: enquanto os outros integrantes aparentam assombro e excitação com aquela plateia gigante, o mesmo comanda a bateria sem esboçar a menor reação. Exceção quando, em uma das músicas, o próprio joga a baqueta para cima, e, com um tímido sorriso, termina tocando seu instrumento com a precisão que só ele tinha. Hoje é dia de ouvir Rush, se impressionar com os três e, acima de tudo, agradecer por uma obra de tamanha magnitude e integridade. Obrigado Geddy Lee, obrigado Alex Liefston. E muito, muito obrigado Neil Peart!