Crise, Fair Play e outros mitos

Nestes dias de crise econômica e política, é comum analistas políticos desavisados ou mal-intencionados buscarem soluções em receitas mágicas e figuras míticas. Redescobre-se citações, conversas privadas nunca reveladas até então e ressaltam-se os feitos de um tempo passado que, dizem, cabem como uma luva para os problemas do presente.

Mas os mitos não têm vontade própria e acabam por servir a interesses diversos, muitas vezes a interesses nada nobres, dos chamados discípulos e herdeiros. Ou são colocados em altares como se fossem santos ungidos de sabedoria e poder que, em vida, nunca tiveram.

Assim está sendo tratada a figura do ex-governador Eduardo Campos, glorificado e santificado ao ponto da tragédia que tirou sua vida e o sofrimento real dos familiares se transformarem em arma política para as disputas que se avizinham.

Na mesma semana em que se comemoravam os 50 anos de Eduardo Campos, estourou o escândalo da operação Fair Play da Polícia Federal, que investiga fraudes nos contratos para a construção da Arena de Pernambuco e da Cidade da Copa.

A classe trabalhadora do estado vem sofrendo mais duramente que qualquer outro setor os efeitos da crise, com o achatamento salarial, a volta do desemprego em larga escala e a inflação ascendente dos gêneros de primeira necessidade. E contra essa situação, os trabalhadores lutam, organizam-se e também procuram saídas.

É ainda corriqueiro, em conversas nas portas de fábrica, nas garagens de ônibus, nos hospitais e escolas, alguém pedir a palavra e dizer que, “no tempo de Eduardo as coisas não eram tão ruins”, ou que “se Eduardo fosse o Presidente não haveria essa roubalheira toda que o PT ta fazendo”.

No entanto, quem viu e viveu as lutas dos trabalhadores de Pernambuco, os operários de Suape, os trabalhadores rurais, o funcionalismo público estadual e a juventude pobre do estado, sabe muito bem qual é a verdadeira face do mito Eduardo Campos quando ainda vivo e governador. E sabe que não será ressuscitando seu legado que nossas vidas melhorarão. Pelo contrário.

A imagem que todos os principais jornais do estado, empresas de rádio e televisão, bem como empresários e políticos, tentaram construir nas últimas semanas por meio de cadernos especiais, programas em horário nobre, outdoors e faixas espalhados por todo canto, é falsa.

Origem bem questionável
Por toda sua vida política, Eduardo Campos sempre representou os setores mais elitizados da sociedade, grandes empresários, banqueiros e uma burocracia estatal de altos escalões. Nunca teve qualquer vínculo com os movimentos sociais. Menos ainda no período conturbado e de muitas lutas dos anos de 1980.

De origem burguesa e conservadora, acabou se firmando como um porta-voz dos setores mais reacionários da coligação eleitoral que se convencionou chamar de Frente Popular- coligação eleitoral que envolve tanto partidos de origem operária e popular, como partidos burgueses e reacionários – e da qual seu avô, Miguel Arraes, sempre foi um dos principais expoentes.

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Homem dos salões palacianos, fez carreira entre contratos e conchavos, iniciando sua vida política como Chefe de Gabinete do governo Arraes, em 1987. Com a ditadura aos pedaços, os trabalhadores se reorganizam e saem às ruas por salário, moradia, direitos sociais e liberdade de organização, com o funcionalismo estadual, movimento popular e os operários à frente. Não havia mais espaço, portanto, para as velhas políticas populistas do arraesismo – chapéu de palha e outras esmolas.

Por isso mesmo, a marca do segundo governo Arraes de 1986 a 1990 foi de favorecimento da falida indústria da cana de açúcar, com a reedição do degradante programa Chapéu de Palha, onde os trabalhadores rurais são recrutados para frentes de trabalho em troca de cestas básicas, sem salário, enquanto os usineiros tinham suas dívidas perdoadas pelo estado e ainda recebiam mais incentivos e empréstimos.

Outra marca a ser citada foi a brutal repressão contra o funcionalismo público estadual, que passava por um processo de reorganização e criação de novas lideranças e entidades sindicais. Das grandes greves do funcionalismo estadual dessa época, surgiu a palavra de ordem “Arraes, caduco, Pinochet de Pernambuco”, que tanto escandalizava os recalcitrantes arraesistas no movimento.

Quando Arraes assume mais uma vez o Governo do estado em 1994, já no PSB, e Eduardo Campos torna-se Secretário da Fazenda, era justamente um período de grave crise econômica e política e, pode-se dizer, consolidou-se aí o modo de governar daquele que está sendo mitificado hoje.

De início, aplicou-se à risca a receita neoliberal que vinha dando o ritmo de atuação de todos os governos com o advento da era FHC do PSDB, com cortes violentos de investimentos nas áreas sociais, ataque aos direitos do funcionalismo estadual e uma onda de privatizações, como o Bandepe e a Celpe.

Para sustentar essas medidas, novamente empreendeu-se uma onda violenta de repressão aos movimentos sociais, contra o funcionalismo público e os sem-teto em especial, até que, com a greve da Polícia Militar, Arraes apela para a medida de colocar o Exército para reprimir o movimento e patrulhar as ruas.

Se em 1964 o exército cercou o Palácio para depor um Governador eleito pelo povo, em 1997 os tanques voltavam às ruas para proteger esse mesmo Governador e seu Secretário da Fazenda do povo que o elegeu. Trágica contradição que acabou revelando a quem serviu de fato o arraesismo e o PSB esse tempo todo.

Foi no meio dessa crise toda que Eduardo Campos se envolveu em um dos maiores casos de fraude nas contas públicas até então. O chamado “escândalo dos precatórios”. A crise política que se desdobrou desse escândalo foi decisiva para que o arraesismo fosse deslocado do poder no estado.

Com a redução da arrecadação e o aumento da dívida pública estadual, Eduardo Campos pede orientação à equipe do então Prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, em busca de saída rápida para a crise. Maluf, raposa velha da política desde a ditadura militar, orientou o jovem secretário a “vender a dívida”.

Ou seja, vendia títulos da dívida estadual, os precatórios, por um valor muito acima do mercado e, assim, postergava a dívida real para um momento posterior, só que, agora, multiplicada. Obviamente que, uma operação desse tipo pressupunha vários acertos e trocas de favores com empresários e políticos, bem ao estilo “mensalão”.

E o Mito chega ao poder
Quando Eduardo Campos se candidata a Governador em 2006, já como presidente do PSB, partido para qual tinham migrado diversas lideranças do PMDB, PFL e de outras siglas menores da extrema-direita, trouxe para sua coligação ninguém menos que duas figuras que personificam o coronelismo pernambucano, Inocêncio Oliveira (do então PL) e Severino Cavalcanti (do então PP), e que, com seus métodos peculiares de corrupção e ameaças nas cidades do interior, foram decisivos para sua vitória eleitoral.

E é exatamente com esse perfil conservador de direita que vai conquistar a confiança dos setores majoritários do empresariado que atuava ou pretendia atuar no estado. Além de contar com o apoio declarado do presidente Lula. Ainda que houvesse a candidatura de Humberto Costa do PT no mesmo pleito, já que, como Deputado Federal, Eduardo Campos foi um dos maiores defensores do mensalão do PT.

No segundo turno da eleição, por orientação de Lula, e após o fiasco da candidatura de Humberto Costa, a coligação encabeçada pelo PT (PT, PC do B e PTB) passa toda para a campanha de Eduardo Campos e se compromete com o modelo que governa o estado até os dias atuais. Só muito recentemente o PT estadual se coloca formalmente na oposição.

O chamado “crescimento da economia” se deveu ao desvio de recursos públicos para favorecer a atuação de grandes empreiteiras que se instalaram em várias cidades da Região Metropolitana, mas que não significou melhoria significativa de vida para os trabalhadores.

Em muitos aspectos, nos chamados pólos industriais, aumentou a precarização da vida e a diferença social nas cidades, como a favelização, criminalidade e prostituição, enquanto só uma pequena parcela foi de fato absorvida pelo trabalho industrial.

A política educacional de criação das chamadas Escolas Integrais revelou-se uma farsa, já que nessas escolas os alunos apenas ficam mais tempo na sala de aula, sem atividade esportiva, sem cursos profissionalizantes ou qualquer outra atividade pedagógica que justificasse o tempo integral. E na maioria absoluta das escolas, onde o ensino não é “integral”, permanece o abandono.

O projeto para a saúde se baseou numa lógica privatizante de impor a gestão privada nas unidades de saúde e construir Hospitais e UPAS de beira de BR, só para dar visibilidade eleitoral, enquanto que, na prática, o atendimento de urgência piorou e a rede ambulatorial e de atenção básica à saúde foi desmontada.

O Programa de Segurança Pública seguiu a tradição de criminalizar a pobreza e os movimentos sociais, abarrotando os presídios, Funases e delegacias com a juventude negra e pobre definitivamente excluída do tal desenvolvimento do estado tão propagado pelo governo.

No campo, nunca houve tanta concentração de terras nas mãos de tão poucos, a maior parte das cidades do interior estão em situação de calamidade pública e sobrevivem de programas sociais e políticas compensatórias do Governo Federal. Situação agravada pela seca. Enquanto isso, o latifúndio vai muito bem.

Se houve uma mudança no perfil da economia do estado, a partir da construção de um pólo de indústria petroquímica e naval, isso se deveu a um deslocamento de plantas industriais que atuavam em outras regiões do país e do mundo, em busca de mão de obra mais barata e de toda sorte de facilidades governamentais, como isenção de impostos e tarifas e infraestrutura todas custeadas com dinheiro público.

As constantes greves e mobilizações dos trabalhadores de Suape revelaram a situação de brutal exploração a que são submetidos para garantir os lucros das grandes empreiteiras que, hoje, estão todas citadas como envolvidas no escândalo do Petrolão, Lava-jato e agora Fair Play.

Se por um lado, durante o período de crescimento da economia nacional e dos investimentos no pólo industrial do estado, houve um relativo crescimento do emprego e da renda da classe trabalhadora, por outro, todo o dinheiro arrecadado com os impostos do incremento da atividade industrial e comercial simplesmente sumiu na intricada rede de propinas em que se baseou a atuação das grandes empreiteiras no estado.

Não é de se estranhar
Por tudo isso, não é de se estranhar que o ex-governador e falecido Eduardo Campos e o PSB estejam no centro das investigações de superfaturamento e fraude nos contratos da Arena de Pernambuco. A Odebrecht, responsável pela construção do estádio, e que é alvo das investigações da operação Lava-jato, inclusive com seu presidente e vários executivos já presos, foi das empresas que mais se favoreceram durante a gestão do ex-governador.

Segundo a Polícia Federal, a fraude segue os mesmos moldes do Petrolão e da Lava-Jato:

A Odebrecht recebeu do governo estadual R$ 10 milhões para fazer o projeto de construção que deu base para o processo licitatório e, em seguida se inscreveu como concorrente em condição privilegiadíssima.

O governo estadual cedeu o terreno para a construção das obras sem custo para a empresa e, ainda assim, a Odebrecht subavaliou o valor do terreno (que já era uma concessão estatal) e superavaliou os gastos previstos para conseguir, também por intermédio do governo estadual, empréstimo no BNDES de R$ 400 milhões.

Primeiro, foi fixado um custo geral para a obra de R$ 532 milhões e em seguida o consórcio foi solicitando aditivos sem qualquer justificativa plausível ao governo, que elevaram esse valor para quase R$ 800 milhões, liberados pelo governo do PSB sem qualquer questionamento.

O projeto inicial previa a construção de uma “Cidade da Copa” que, além do estádio, comportaria moradias, empresas, espaços de educação, esporte e lazer. Mas essa “cidade” nunca saiu do papel. No entanto, mais de duas mil famílias tiveram imóveis desapropriados com indenizações ínfimas, sob coação e ameaça das empreiteiras e dos órgãos governamentais.

Paulo Câmara, atual Governador e Geraldo Julio, Prefeito da Cidade de Recife, expoentes quadros do PSB e que se intitulam herdeiros do legado de Eduardo Campos, vão ter que explicar agora de onde veio o dinheiro de suas campanhas, e para onde foi o dinheiro arrecadado nesses anos todos de crescimento do estado.

Não temos nada a ver com isso
Nós, trabalhadores, não temos nada para aprender com essa gente. Precisamos sim, seguir o exemplo dos que hoje trabalham e lutam por uma vida melhor no estado, nossos irmãos e irmãs rodoviários, compesianos, professores, trabalhadores da saúde, sem-teto, camelôs e trabalhadores rurais.

Um projeto de governo e gestão deve sair dessas lutas e das necessidades reais dos que constroem a riqueza do estado com sangue, suor e lágrimas, apesar desses parasitas que ocupam os postos governamentais do nosso estado e se revezam no poder há décadas.