O poeta Jessier

“Arquiteto por profissão, poeta por vocação, matuto por convicção. Apareceu na folhinha no ano de 1954, na cidade de Campina Grande, Paraíba, e é filho adotivo de Itabaiana, também na Paraíba, onde reside desde 1983.” É dessa forma que o poeta e prosador matuto Jessier Quirino se apresenta. Singelo como todo sertanejo, o artista paraibano é hoje, incontestavelmente, um dos nomes mais importantes na luta em defesa da cultura nordestina. Dono de uma capacidade bastante apurada para observar tudo aquilo que o rodeia, Jessier traduz em seus livros e recitais os hábitos, a linguagem, a vida do homem do sertão e seu modo de ver o mundo. Assim, através de grande bom humor e sensibilidade, o poeta reconstrói um curioso e particular universo matuto.

O arquiteto domador de palavras
Filho de Antonio Quirino de Melo e Maria Pompéia de Araújo Melo, Jessier Quirino fez os primeiros estudos em Campina Grande e no Recife, formando-se depois em Arquitetura na cidade de João Pessoa, em 1982. Embora ainda exerça sua profissão, os dias e a agenda do poeta têm sido preenchidos quase que completamente pela literatura e apresentações pelo Brasil. Jessier pode até se considerar um autodidata, já que nunca fez nenhum tipo de curso sobre técnicas literárias. Toda sua intimidade com a prosa e os versos vem de uma destreza para “desenhar” as rimas e a métrica de seus textos, o que faz de Jessier Quirino um arquiteto domador de palavras.

Cronista, poeta e contador de causos matutos
A obra de Jessier está reunida, até o momento, em oito livros que retratam com precisão o cotidiano da vida no sertão nordestino. Entre seus principais trabalhos, destacam-se Paisagem de Interior, Agruras da lata d’água, Política de Pé de Muro – O Comitê do Povão, Prosa Morena, Bandeira Nordestina e Berro Novo. Alguns dos livros do artista, inclusive, vêm acompanhados de CD´s que trazem narrativas de causos matutos, composições declamadas e poemas musicados. Assim, a arte de Jessier Quirino, além de resgatar os costumes e as características do sertanejo, também não deixa de ser herdeira da tradição oral que havia antes da invenção da linguagem escrita.

Como um cronista da tradição nordestina, influenciado pela literatura de cordel, Jessier lança seu olhar minucioso sobre os aspectos que compõem o cenário do sertão. Em Paisagem de Interior, poema que também dá nome ao livro, Jessier Quirino descreve com perfeição milimétrica o ambiente onde vive o matuto. “Três moleque fedorento morcegando um caminhão / chapéu de couro e gibão / bodega com surtimento / poeira no pé de vento / tabulêro de cocada / banguela dando risada / das prosa do cantador / buchuda sentindo dor/ com o filho quase parido / isso é cagado e cuspido / paisagem de interior.”.

A sensibilidade e o bom humor do poeta ao descrever os traços que marcam os interiores do Nordeste, utilizando-se de expressões típicas do sertanejo, estão presentes em praticamente toda sua obra. O deslumbramento e a estranheza do sertanejo diante das contradições entre a cidade grande e o campo também aparecem de forma divertida na literatura de Jessier. Em Berro Novo, seu livro mais recente, o contador de causos matutos explica quais as razões que levam alguém a ter um problema cardíaco. “Mas cumpade véi, eu vou dizer um negócio a você: uma coisa que não existe no sertão é pobrema cardíuco! O pobrema cardíuco é uma doença que se adquere com o vírus da letra i: Imposto de Renda; IPTU; ICMS; Implacamento de Carro, Ingarrafamento e Istresse! Essas são as palavra que causa pobrema cardíuco; e no sertão não tem essas palavra!”.

A obra de Jessier Quirino está repleta de situações cômicas, sempre destacando o matuto e sua maneira de ver o mundo. Há, inclusive, um personagem que constantemente marca presença nos livros do autor. Mané Cabelim é um matuto enrolado, todo metido a sabido, que a todo instante está envolvido em situações escabrosas e sendo passado para trás. Ele representa exatamente o contrário da esperteza do sertanejo nordestino, tão comum no universo de Jessier.

Mas o lirismo poético e a beleza das paixões também possuem espaço garantido nos versos do poeta. Em Paixão de Atlântico na Beira do Mar, poema integrante do livro Berro Novo, Jessier Quirino dá uma amostra de versatilidade literária e de capacidade para criar imagens simbólicas. “E a moça abeirando meus véus de espuma / Olhar de cupido a me recear / Aqui… bem aqui! O cabelo a voar / De cor, cor-de-cuia de louro brejeiro / Seus pés, de mansinho, me tocam primeiro / E a boca em suspiro aspira o meu ar / Recolhe os bracinhos a se arrupiar / E se carrapixam os poros e pelos / Os outros primores, eu nem pude vê-los / Morri de Atlântico na beira do mar.”.

A poesia como arma política
Para um artista tão sensível e atento ao mundo que o circunda, a picaretagem da política brasileira não poderia passar despercebida. No poema Politicagem, do livro Bandeira Nordestina, Jessier Quirino dispara seu arsenal matuto e rebelde contra a corrupção. “A tal da politicagem / É o acento circunflexo / Da palavrinha cocô… / É feito brigar com gambá / Pois mesmo o cabra ganhando / Sai arranhado e fedendo.”.

Mas a composição mais afiada mesmo fica por conta do poema Virgulino Lampião, Deputado Federá, escrito no formato de um discurso ficcional do famoso cangaceiro. “Seus Dotôres Deputado / falo sem tutubiá / pra mostrá que nós matuto / sabe se pronunciá / dizê que tá um presídio / com dó e matuticídio / a vida nesse lugá. / O Brasí surgiu de nós / nós tudo que vem da massa / deram um nó no mêi de nós / que nós desse nó não passa / e de quatro em quatro ano / vem vocês com o véio plano / desata o nó e se abraça. / Tamo chêi dessa bostice / de promessa e eleição / dos que vem de vez em quando / se rindo, estendeno a mão / candidato a caloteiro / aprendiz de trapaceiro / corruto, falso e ladrão.”.

Ignorando os limites entre prosa e poesia, a arte de Jessier Quirino lança mão de sua singeleza e criatividade para marcar uma visão crítica sobre o Brasil. Apropriando-se da voz de seu Virgulino Lampião, Jessier ainda manda um recado a todos os parlamentares. “Político que come uva / em plena safra de manga / vai pra lei dos desperdiço / nas faca dos meus capanga.”.

Nadando contra a maré
Em um país onde a padronização cultural ganha cada vez mais espaço, seja através de fórmulas nacionais ou estrangeiras repetidas à exaustão, a obra de Jessier Quirino deve ser reconhecida como uma trincheira avançada na luta em defesa da cultura nordestina. E essa “nordestinidade” não é apenas a expressão de um regionalismo, mas também a exposição de uma manifestação artística original, repleta de sentidos e significados. O universo matuto de Jessier, formado por costumes sertanejos, arcaísmos e neologismos, coloca o poeta no rastro de grandes mestres da literatura nacional, como Guimarães Rosa e Manuel de Barros.

No combate ao esvaziamento artístico de muitas produções contemporâneas, o poeta e ensaísta Alberto da Cunha Melo reconhece a importância de Jessier. “Talvez prevendo uma profunda transformação no mundo rural, em virtude da força homogeneizadora dos meios de comunicação e das novas tecnologias, Jessier Quirino, desde seu primeiro livro, vem fazendo uma espécie de etnografia poética dos valores, hábitos, utensílios e linguagem do agreste e do sertão nordestinos. Sua obra, não tenho dúvidas, além do valor estético cada dia mais comprovado, vai futuramente servir como documento e testemunho de um mundo já então engolido pela voragem tecnológica.”.

É por estas e outras que a arte de Jessier Quirino é um símbolo de resistência cultural, uma prova de que ainda existem os que nadam contra a maré.