Brasília - O ministro Marco Aurélio e a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, durante julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula (José Cruz/Agência Brasil)
Pablo Biondi, de São Paulo (SP)

O apertado placar de 6 a 5 no julgamento que negou o habeas corpus impetrado por Lula é sintomático de um aspecto fundamental da realidade política no Brasil de hoje: a profunda divisão política da burguesia brasileira e sua incapacidade de construir uma saída satisfatória para a crise nacional no curto prazo.

Coloca-se para a burguesia um dilema que passa diretamente pela figura política de Lula, mas que tem como centro o problema do alcance e da continuidade da Operação Lava Jato – uma operação que, ao mesmo tempo, escancarou boa parte dos esquemas de corrupção do país, mas acalentou as esperanças ilusórias de uma renovação política que levaria a democracia liberal à sua redenção.

A Operação Lava Jato é um esforço combinado do Ministério Público, da Polícia Federal e de segmentos do Judiciário para recompor a credibilidade do conjunto das instituições da República e revigorar a democracia burguesa no país. Esse esforço produz uma grande “queima” de quadros do sistema político, revelando práticas e conexões ocultas nos pontos de contato entre as empresas privadas e a esfera pública, bem como o papel organizador do sistema político em todo esse arranjo.

À semelhança de uma crise econômica, em que a queima de capitais em declínio reaviva a chama da acumulação capitalista, gerando um efeito saneador de alavancagem da taxa de lucro por meio da concentração de capital, a crise política em curso exige o sacrifício de alguns empresários e membros do sistema político em nome da restauração da crença das massas no regime. A grande questão que se coloca é a seguinte: quem será entregue em holocausto pelo bem maior da democracia liberal? Interessa a todos os envolvidos que haja punições, no sentido de se moralizar a aparelhagem institucional. Nenhum deles, porém, oferece o próprio pescoço de bom grado. É por isso que se instaura uma luta de vida ou morte no interior do sistema político, uma luta em que as forças partidárias tentam se livrar a todo custo do ônus dessa necessária depuração, empurrando-o para um rival ou para um aliado descartável.

Indubitavelmente, a Lava Jato atingiu todos os grandes partidos, ainda que em graus diferentes, sendo que, mesmo dentro de cada agremiação, alguns políticos conseguiram se sair melhor do que outros. O PSDB, por exemplo, foi menos atingido do que o PT e o MDB, sofrendo muito mais uma exposição desgastante do que uma efetiva punição judicial. E no interior do tucanato, vê-se que Aécio Neves, mesmo tendo sido escandalosamente preservado pela Justiça, concentrou em si o desgaste de seu partido, o que poupou Geraldo Alckmin, abafando-se a menção a seu nome nas listas da Odebrecht.

É preciso perceber que, mesmo atingindo proporções inéditas, a Operação Lava Jato produziu poucos resultados estrondosos. Seus feitos mais relevantes até agora foram a prisão de Eduardo Cunha e a condenação de Lula, sendo que o cenário de prisão do ex-presidente ainda pode ser revertido, como veremos mais adiante. Também se poderia mencionar a prisão do todo-poderoso Marcelo Odebrecht. Fora isso, os nomes atingidos foram pouco expressivos. Aécio Neves chegou a ser afastado, mas logo foi reconduzido a seu posto no Senado. Renan Calheiros bateu de frente com o STF, desafiando a autoridade judicial, e com isso se manteve no seu posto. Tal fato foi decisivo para estancar a sangria descontrolada do sistema político, que seguiu sendo exposto negativamente, mas sem o fantasma das prisões e destituições de cargo. O caso mais emblemático é o de Temer, que comprou votos de parlamentares de forma escancarada para salvar seu mandato. A iniciativa vingou, mas ao custo de uma rejeição popular superior à de Dilma Rousseff.

Antes da condenação de Lula, portanto, o único resultado expressivo da Operação Lava Jato havia sido a prisão de Eduardo Cunha. Toda a promessa de resgate das instituições, no fundo, se resumiria ao encarceramento de um único grande nome e de vários “peixes pequenos”. Fosse esse o desfecho, seria como se a montanha tivesse parido um rato. Daí o dilema: o que fazer em relação a Lula?

A disputa acirrada no STF reflete um dilema real para a burguesia brasileira: de um lado, sacrificar Lula seria uma mensagem poderosa que fortaleceria o discurso de que, desta vez, o Brasil rechaçaria a impunidade dos crimes de colarinho branco. De outro, condená-lo significa abrir mão de um quadro político habilidoso e estratégico para a dominação burguesa. Essa não é uma escolha simples, pois os riscos são grandes de todos os lados.

Na leitura de votos de cada ministro do Supremo e em declarações feitas nas vésperas, podemos encontrar as linhas condutoras das duas táticas possíveis para a burguesia. Em Luis Roberto Barroso, temos o discurso da sensação de justiça, o apelo ao senso de indignação popular diante da impunidade e a declarada reivindicação de defesa das instituições, como se elas próprias estivessem no banco dos réus. Menos demagógico e mais pragmático, Gilmar Mendes qualificou Lula como um “asset”, um ativo das classes dominantes, um recurso estratégico do qual não se poderia renunciar nesse momento.

Ou seja: de um lado, arrisca-se perder um quadro político pelo bem da moralização institucional; de outro, arrisca-se desmoralizar a institucionalidade para salvaguardar um quadro político e facilitar a vida de seus pares investigados e processados. Não há situação ideal para a burguesia, não há ganho sem perda. Junte-se a isso a elevada polarização política do país e se tem um disputado 6 a 5 depois de mais de dez horas de julgamento.

Todavia, seria ingenuidade acreditar que esse cálculo de ganhos e perdas foi feito isoladamente pelo STF, por mais que este tribunal seja, mais do que todos os outros, um tribunal político, situado na zona limítrofe entre a forma jurídica e a razão de Estado. Precisamente por conta dessa localização, a corte constitucional é parte dos acordos de cúpula e das disputas que constroem o dia-a-dia da vida política nacional. Os anseios do empresariado e do sistema político, não sem tensões, se fazem sentir nas decisões dos ministros, de forma mais ou menos transparente.

Brasília – O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes sai após votar no julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula (Valter Campanato/Agência Brasil)

O grande anseio da burguesia brasileira, hoje, é a superação da crise política e o restabelecimento de um clima mais favorável para os negócios. Para tanto, a saída mais óbvia seria o processo eleitoral a ser realizado em outubro deste ano. Mas esse processo pode ser o mais confuso de nossa história recente, já que há uma plêiade de pré-candidatos: além de Lula, que não está de todo descartado, pode-se elencar Bolsonaro, Alckmin, Ciro Gomes, Flávio Rocha, Rodrigo Maia, Henrique Meirelles e até mesmo Temer. Cogita-se ainda o nome de Joaquim Barbosa, sendo que, até pouco tempo atrás, houve quem acenasse para uma candidatura de Luciano Huck. Há também os candidatos da frente-popular (Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila), mas que não têm o mesmo peso que Lula. O imbróglio é imenso, comprovando a divisão política da burguesia.

Como se nota, há candidatos para todos os gostos burgueses, desde uma candidatura própria com Flávio Rocha até uma aposta total num ex-ministro do STF, tido como paladino da justiça por conta de sua postura no julgamento do chamado Mensalão. As frações burguesas farão distintas escolhas, provavelmente com novas divisões internas. Um grupo mais consistente da burguesia, organizado na grande mídia e tendo a Rede Globo como vanguarda, prefere tirar Lula do jogo, avaliando que um candidato condenado e réu em outros processos, sendo vitorioso, desmoralizaria a Lava Jato. Esse setor também se insurgiu contra o aventureirismo de Luciano Huck e já demonstrou sua indisposição em face de Bolsonaro, que seria fator de recrudescimento da instabilidade.

Por outro lado, não faltam setores burgueses atentos à relativa força política do lulismo. Dizemos relativa porque Lula e o PT definitivamente não possuem o mesmo significado que tinham, para as massas, nos 1980 a 2000. Seu grande trunfo, na verdade, é o poder de se destacar em meio a opções tão frágeis. As intenções de voto em Lula exprimem muito mais uma escolha pragmática na figura mais conhecida do que uma adesão ao simbolismo conciliador de seu projeto, ou um culto a essa nova divindade. Tanto é assim que, como é notório, muitos trabalhadores até se disporiam a votar no ex-presidente no atual cenário, mas não têm disposição de mover um dedo sequer para salvá-lo da prisão.

Além disso, o lulopetismo dominou a esquerda reformista de modo impressionante, conquistando um pequeno exército militante, uma guarda pretoriana pronta para fazer aquilo que os trabalhadores não querem fazer: marchar em defesa de Lula e da “democracia”. Alguns desses militantes, que juram ser oposição de esquerda ao PT, parecem estar dispostos a entregar a própria vida, ou quase isso, para preservar o ex-gestor do capitalismo brasileiro. Também aí temos uma demonstração do que ainda resta de força a Lula, que, inclusive, emplacou seu candidato no PSOL e arregimentou várias correntes e parlamentares desse partido como satélites do petismo. Essa capacidade de arregimentação e domesticação, por certo, não é ignorada por parte das classes dominantes.

Poderíamos nos indagar onde está a burguesia pró-PT. A maior parte desse segmento está bastante enfraquecida. Basta pensarmos na condição atual da família Odebrecht, de Joesley Batista e de Eike Batista, apenas para nos lembrarmos de alguns. E como os empresários, em geral, não querem se associar ou não querem ser associados a um barco afundando, suas relações com o petismo tornaram-se mais discretas. É o caso da latifundiária Katia Abreu, que esteve na linha de frente da resistência parlamentar contra o impeachment de Dilma, e que hoje prefere se escorar em Ciro Gomes, acompanhando o destino de Lula a uma distância segura.

Há uma posição reticente da burguesia em relação a Lula. Talvez ele não seja a primeira opção de nenhuma fração burguesa, mas são raras aquelas que não o admitiriam em nenhuma hipótese. Curiosamente, o líder petista seria mais valorizado se as organizações que lhe dão sustentação, particularmente a CUT, fossem menos subservientes ao capital. Se a burocracia vinculada ao PT tivesse se empenhado na construção de greves gerais no último período, o ex-presidente poderia surgir como uma solução apaziguadora, como a única alternativa capaz de acalmar o movimento de massas. Mas como a CUT se recusou a enfrentar o governo Temer de modo consequente, tendo o receio de derrubá-lo – um governo que ela não cansou de acusar de golpista –, então uma parte dos capitalistas pôde se questionar, legitimamente, sobre a serventia do lulismo.

De qualquer modo, Lula ainda tem resquícios do capital político que amealhou durante a presidência, e por isso ainda é um rival de peso para seus concorrentes, o que ajuda a compreender as movimentações de alguns pré-candidatos. Como é evidente, os agentes do sistema político não são meros expectadores no julgamento de um de seus colegas: eles podem intervir para auxiliá-lo ou para prejudicá-lo conforme o interesse particular do momento. Para aqueles que estão mais preocupados com a sua sobrevivência no sistema, apoiar Lula é o horizonte imediato. Já para aqueles que se julgam, ao menos momentaneamente, acima do risco da degola, dando-se ao luxo de aspirar a posições mais ambiciosas (como as vagas das eleições de outubro), sabotar o candidato do PT é uma opção mais atraente.

Se Lula for uma carta fora do baralho, e se as camadas mais sóbrias da burguesia se unificarem contra Bolsonaro, evitando um ainda mais desastroso “Trump brasileiro” (pois Trump, mesmo repelido por boa parte dos republicanos, não deixa de ter uma base parlamentar para governar), então os candidatos restantes seriam igualmente fracos, aumentando em muito as chances de cada um. Com tamanha divisão burguesa, expressa em diversas candidaturas, a corrida eleitoral está em aberto. Entretanto, a maioria dos pré-candidatos está sendo investigada, e prefere o arrefecimento das medidas judiciais e policiais. O próprio Temer, novamente sob fogo cerrado, foi surpreendido pela decisão do STF, considerando-a como um revés para toda a “classe política”.

Partidária de uma tática oposta à de Temer e companhia, Carmen Lucia apostou na preservação da imagem das instituições, a começar pela de seu próprio tribunal. De modo a garantir um resultado contrário à concessão do habeas corpus, a ministra colocou em pauta o pedido de Lula antes do exame de mérito do tema da prisão após a segunda instância recursal. O próprio ministro Marco Aurélio Mello denunciou a manobra e, fazendo as vezes de advogado da parte, pediu a suspensão dos efeitos da decisão até que houvesse a apreciação específica, em outro processo, sobre a prisão na hipótese mencionada. Isso porque, quando se der essa apreciação, o placar tende a se inverter: a ministra Rosa Weber é favorável à tese que impede o encarceramento antes do esgotamento de todos os recursos, e essa posição beneficia, concretamente, a pretensão de Lula.

O que Carmen Lucia fez foi uma manobra burocrática bem ao gosto das manobras que as burocracias sindicais fazem nas eleições de suas entidades, jogando com as regras do jogo para obter vantagens nas disputas e derrotar a oposição. Artifícios como esses são parte da luta política na democracia burguesa, e o próprio PT recorreu a coisas do gênero sempre que pôde, embora nem sempre com o mesmo sucesso, pois sua capacidade de negociação foi deteriorada desde o segundo mandato de Dilma. Pode-se citar como exemplo o episódio em que a então presidente tentou nomear Lula como ministro da casa civil para lhe dar foro privilegiado e evitar que seu caso ficasse nas mãos do juiz Sérgio Moro. Tal iniciativa foi barrada no STF, ainda que a sua composição, desde aquela época, seja de magistrados indicados por governos petistas.

A manobra de Carmen Lucia funcionou nesse julgamento, mas não vai funcionar sempre. Formou-se uma maioria tênue e circunstancial contra Lula. A presidente do STF pode adiar ao máximo a apreciação de processos sobre o mérito da prisão após a segunda instância, mas como instruiu o ministro Marco Aurélio, o tribunal pode julgar medidas de urgência a qualquer momento, o que poderia gerar uma nova liminar a favor do candidato do PT. Aliás, tanto Marco Aurélio como Gilmar Mendes afirmaram que não aplicarão o entendimento dominante na corte nos processos que chegarem em suas mãos.

Diante de tudo isso, é notório que a crise política não apenas continua sem solução, como também contamina o STF de algum modo e envolve setores das Forças Armadas – como o Exército, que já não controla as opiniões individuais do alto oficialato, e a Aeronáutica, que se contrapôs abertamente aos oficiais mais exaltados do Exército. Paralelamente, as incertezas para a burguesia seguem sendo um tormento, assim como para a situação dos partidos e seus candidatos. Lula era parte do pacto nacional de salvação do sistema político, conforme a narrativa do áudio vazado de Romero Jucá – um áudio cuidadosamente editado pela esquerda reformista, na sua transcrição, para suprimir a menção ao nome do petista.  É possível que os termos do pacto tenham mudado, e que o ex-presidente tenha sido colocado de escanteio por seus pares, mas as inquietações do Planalto diante do resultado do julgamento sugerem o contrário: a manutenção do pacto original e o temor de um novo pico de descontrole do Judiciário e da Polícia Federal. De qualquer modo, ainda restam, ao condenado Lula, a militância cooptada e os melhores advogados que o dinheiro pode providenciar. Ao PT, resta a dúvida apenas sobre a cabeça da candidatura, uma vez que o arco de alianças com os “golpistas” já está definido.

E à classe trabalhadora? Resta-lhe deixar que Lula e o PT se entendam com aqueles com quem governaram este país para o capital durante 13 anos. Resta-lhe primar pela mais absoluta independência de classe, rechaçando tanto a direita tradicional e a nova direita, representada pelos patéticos MBL e “Vem pra rua”, quanto o polo frente-populista de Lula e seus aliados, aqueles que movem montanhas para salvar a pele do maior pelego da história desse país (hoje, inclusive, um empresário), mas que não fizeram nada por Rafael Braga e pelos verdadeiros perseguidos políticos dessa “democracia” que sempre foi ditatorial contra o povo explorado e oprimido. Resta-lhe recusar-se a refazer os caminhos do PT, conforme propõe o PSOL de Boulos. Resta-lhe, enfim, a rebelião contra todos que a atacam e contra todos os mercadores de ilusões.