Redação

Com o fim da URSS, muitos se candidataram ao papel de coveiro do socialismo. O bombardeio veio de todos os lados, da direita à esquerda. Contudo a construção do socialismo permanece sendo o principal desafio histórico da humanidade“O marxismo procede do desenvolvimento da técnica, como motor principal do progresso, e constrói o programa comunista sobre a dinâmica das forças produtivas. Se supusermos que uma catástrofe cósmica destruirá o nosso planeta (…) seremos forçados a renunciar à perspectiva do comunismo (…) Abstraindo deste perigo, problemático neste momento, não temos a menor razão científica para designar previamente limites, sejam quais forem, às nossas possibilidades técnicas, industriais e culturais. O marxismo está profundamente penetrado pelo otimismo do progresso e isso basta, diga-se, para opô-lo irredutivelmente à religião”
Leon Trotsky

Os arautos do imperialismo se apressaram em proclamar que o capitalismo “venceu”. A maioria da esquerda passou a repetir algo parecido, o historiador Daniel Arão Reis, por exemplo, tenta nos convencer de que “o socialismo contemporâneo encontra-se, certamente, numa crise terminal. (…) As bases sociais, econômicas, políticas, teóricas, culturais de um projeto que pretendeu ultrapassar o capitalismo, e foi por ele absorvido, não se sustentam mais e não podem mais sustentar uma proposta alternativa radical”.

Se Arão Reis estiver correto em sua premissa de que o socialismo vive uma crise terminal, qual seria então a estratégia para as revoluções? Pois estas teimam em não sair de cena, está aí a Bolívia para confirmar.
Este artigo pretende discutir se as bases econômicas, políticas e teóricas do socialismo caducaram, ou se, ao contrário, ele permanece como uma necessidade histórica, o que é diferente de sua inevitabilidade.

O SOCIALISMO CIENTÍFICO
O mundo prometido pela burguesia – igualdade, fraternidade e liberdade – não vingou. E esse fato reacende no mundo ocidental a necessidade de buscar uma forma de organização para além do capitalismo.

Assim, o século XIX conhecerá homens como Sant Simon e Fourier, ou o inglês Owen, conhecidos hoje como os socialistas utópicos.
Diferente dos filósofos que preparam a revolução burguesa, teorizando sobre a necessidade de acabar com os privilégios de classes da nobreza, agora se tratava de abolir as classes.

No entanto, como nos explica Engels, as bases teóricas que projetavam a necessidade de uma sociedade sem classes, arrancavam e paravam na injustiça do modo de produção capitalista.
Não podiam, portanto, explicar o capitalismo como o resultado de um processo histórico, de luta entre as classes, e do desenvolvimento das forças de produção da sociedade. Apesar de ser o resultado de mentes brilhantes, não podiam ultrapassar os limites da crítica moral, baseada nas injustiças geradas pela exploração do homem pelo homem.

A alternativa ao capitalismo seria então a idealização de mundo, com regras saídas de uma mente brilhante.

Como afirma Engels, “suas teorias incipientes não faziam mais do que refletir o estado incipiente da produção capitalista. Pretendiam tirar da cabeça a solução dos problemas sociais, latentes ainda, nas condições econômicas pouco desenvolvidas da época”.

“AS IDÉIAS ESTÃO NO CHÃO…”
Com o desenvolvimento do capitalismo, o surgimento das grandes fábricas e a plenitude do novo modo de produção, a luta entre suas classes fundamentais, a burguesia e o proletariado, passa a tomar o primeiro plano na Europa.

Com o avanço da ciência, em todos os terrenos da atividade humana foi possível compreender que toda história anterior foi o resultado da luta entre as classes. E a superação do capitalismo não seria diferente.

Dessa forma, o socialismo deixa de ser a descoberta casual de uma mente brilhante e passa a ser o produto necessário da luta entre as classes formadas historicamente: a burguesia e o proletariado. Assim, os fundadores do Socialismo Científico se recusam a idealizar uma sociedade “perfeita”. O Socialismo seria o resultado de uma luta inevitável entre as classes.

Mas, se a luta entre as classes é inevitável, o socialismo depende da capacidade de mobilização e organização da classe operária, e do sujeito político capaz de traduzir esses interesses numa perspectiva de poder.

CONTRADIÇÕES FUNDAMENTAIS DO SISTEMA CAPITALISTA
A proclamação da vitória do capitalismo sobre o socialismo seria uma verdade se o primeiro pudesse oferecer as futuras gerações uma vida melhor. Mas, o que vivemos é justamente o oposto: 20% da população mundial, concentrada em 10 países, é responsável por 80% de tudo o que se produz no planeta. Enquanto os 80% restante da população do globo, cerca de 5 bilhões de seres humanos, devem lutar todos os dias para repartir os 20% restante.

O capitalismo aumentou a distância que separa os países ricos dos países pobres e aprofundou a desigualdade entre os que vivem de salários e os que recebem os lucros. A explicação que os marxistas dão a esse fenômeno está nas contradições do sistema. O capitalismo nasceu prisioneiro de várias contradições que foram ampliadas em sua fase imperialista e não podem ser resolvidas com reformas:

1) A incompatibilidade entre a produção social e sua apropriação privada. O capital necessita de uma classe social, os trabalhadores, a mais numerosa da sociedade, para valorizar-se através da exploração.

Necessita incorporar o desenvolvimento da ciência resultado da produção intelectual do conjunto da sociedade – através da tecnologia. E necessita também de toda a infra-estrutura criada pelo Estado. Mas, o lucro segue sendo individual. Isso explica o fato de que o patrimônio de 224 mega empresários do mundo é equivalente à renda anual de 2 bilhões e 500 mil pessoas (40% da população do globo).

2) O Capital criou o mercado mundial para o seu desenvolvimento, mas segue mantendo os Estados nacionais e suas fronteiras.

A ampliação do mercado mundial e a extensão das relações de produção capitalistas, inclusive com a incorporação da ex-URSS, China, etc. foi realizada aumentando a desigualdade entre as nações. As fronteiras dos Estados dividem o mundo em países distintos, com diferentes graus de desenvolvimento, e são as guardiãs da divisão internacional do trabalho marcada pela crescente desigualdade. O “muro da vergonha” que divide os EUA e o México, cemitério de imigrantes, é a imagem dessa divisão que é impossível de ser ultrapassada enquanto o imperialismo dominar o mundo.

3) E, por fim, a produção é voltada para o lucro e não para as necessidades sociais. Isso é o que explica o fato de que, apesar de se produzir no mundo mais mercadorias do que em qualquer outra época histórica, à degradação, a pobreza e a miséria são proporcionais ao tamanho da riqueza criada. Isso explica o fato de que o capital não está levando somente à degradação humana, mas a agressão à natureza ameaça a própria vida no planeta.

Essas são as bases econômicas e políticas que o nosso historiador se recusa a ver e que explicam a necessidade do socialismo.

Marx e Engels, sempre insistiram no fato de que a sociedade futura é o resultado da ação humana sobre a sociedade presente. Ela avança a partir das contradições insolúveis do capitalismo, como resultado da luta entre as classes sociais. E o seu resultado imediato em cada país, depende do nível de desenvolvimento da tecnologia, do grau de industrialização, da cultura, enfim, do nível de desenvolvimento em que se encontra.

Os limites para o desenvolvimento humano

Trotsky afirmou que “não temos a menor razão científica para designar previamente limites, sejam quais forem, às nossas possibilidades técnicas, industriais e culturais”. Se a chegada do homem à lua nos parece algo de um passado distante, não existe a menor razão para impor limites.

Os limites ao desenvolvimento humano são impostos pelas relações sociais capitalistas. A produção voltada para o lucro, além de ser uma trava para o desenvolvimento da ciência, impede que seus frutos sejam redistribuídos pela sociedade.

O capitalismo preparou as condições e as forças da revolução social: a técnica, a ciência e o proletariado. Ao manter e aprofundar a produção social e acabar com a apropriação privada do resultado da produção, acabando com a propriedade privada dos meios de produção, destruímos a trava mais importante ao desenvolvimento da sociedade humana em seu estágio atual.

Mas, o horizonte das possibilidades de avanço humano com o fim da propriedade privada deve e pode ir além de acabar com a pobreza material. Ao se referir aos projetos comunistas do século XVI e XVII Engels criticava o “comunismo ascético,(…) que renunciava a todos os gozos da vida”. Como parte do progresso da história humana, o capitalismo, ao desenvolver as máquinas que fazem o trabalho de mais mil homens, liberou uma parte da sociedade do trabalho extenuante. A reprodução material da sociedade necessita de cada vez menos pessoas envolvidas.

Mas, o capitalismo realizou essa tarefa histórica aumentando na sociedade a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. O trabalho continua sendo uma carga e todos nós somente encontramos o gozo da vida fora da atividade diária pela sobrevivência.

Mas, o desenvolvimento tecnológico e a abundância da riqueza coletiva podem transformar o trabalho não em um meio de vida, mas na primeira necessidade vital. E permitir “a cada um trabalhar ‘segundo as suas capacidades’ o que significa fazer o que quiser e o que puder, e recompensar cada um ‘segundo suas necessidades’, independentemente do trabalho fornecido’” (Trotsky).

A esse estágio superior da sociedade, o qual Marx chamou de Comunismo, corresponderia uma fase prévia – a socialista – que estaria ainda presa às limitações “em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual”.

Nesse nível, o princípio de distribuição obedece ao nível de desenvolvimento das forças produtivas e não pode dar a “cada um segundo suas necessidades”. O princípio nessa sociedade de transição é “de cada um segundo sua capacidade a cada um segundo o trabalho realizado” (Marx).
Apesar do imenso avanço que pode proporcionar a expropriação da burguesia e o planejamento econômico, a distribuição será desigual, na medida em que a remuneração obedece ao princípio de retribuir de acordo com o trabalho efetuado.

Mas, a capacidade dos indivíduos para o trabalho é desigual, seja física ou intelectual, e as necessidades são distintas, desde o tamanho da família até os gostos individuais. Entretanto, o limite para cada um já não está determinado pelo lugar que nasceu, se numa família burguesa ou proletária, mas pela sua própria capacidade.

A TRANSIÇÃO PARAO SOCIALISMO
O problema de todos os “coveiros” do socialismo é identificar a URSS e todos os Estados que expropriaram a burguesia como uma sociedade socialista. No entanto, antes de lançar a primeira pá de cal, deveriam refutar as conquistas teóricas do marxismo sobre a transição.

Por mais desenvolvido que seja um país, e este não era o caso de Rússia, China e Cuba, o nível de desenvolvimento de sua indústria não poderia sequer oferecer “a cada um segundo o trabalho realizado”.

As formas de propriedade, privada ou coletiva, podem fazer uma profunda diferença quando se trata de redistribuir para a sociedade o trabalho coletivo realizado. A diferença pode estar entre a vida e a morte para milhões de pessoas, basta assinalar que na Rússia a expectativa de vida desceu 48 lugares na classificação do PNUD. Entre 92 e 97, a população diminuiu em 5,7 milhões.

Ultrapassada a barreira da propriedade privada e a garantia das necessidades básicas, o desenvolvimento futuro está determinado pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, não mas à escala de um país, à escala internacional.

A luta pelo socialismo não segue um plano pré-determinado, ela é o resultado da luta entre as classes. O marxismo previa uma transição ao socialismo que se iniciaria em países de grande desenvolvimento tecnológico, mas o poder foi alcançado em países periféricos. Dessa forma, o regime soviético não poderia ser considerado socialista, mas de transição entre o capitalismo e o socialismo. A ditadura do proletariado, como assinala Trotsky, seria uma ponte entre a sociedade burguesa e socialista.

E a passagem de um estado a outro seria o resultado da extensão da revolução aos países adiantados. O que equivale a dizer que o caráter da transição não estava resolvido pela história.

O imperialismo unificou o planeta pela economia mundial, aprofundando a desigualdade entre os países. O socialismo deve partir dessa realidade, a existência do capitalismo como um sistema mundial, para poder superá-lo. O poder à escala nacional inicia a transição em direção à destruição do imperialismo. No entanto, essa transição foi interrompida por uma contra-revolução. Esse foi o significado mais profundo do papel da burocracia soviética.

Mas, “o socialismo demonstrou o seu direito à vitória não nas páginas de O Capital”, afirmava Trotsky. Ao compararmos o significado da expropriação da burguesia, basta que assinalemos que um país atrasado como a Rússia, com 90% de analfabetos em 1917, com um PIB per capita que era 10% do norte-americano, depois de arrasada na II Guerra Mundial, saiu como a segunda potência industrial do planeta e com um PIB per capita que alcançou 47% do norte-americano. Hoje, não chega a 7%. Um retrocesso de cem anos!

As novas gerações de lutadores têm uma grande tarefa pela frente: atualizar o programa, aprender com os erros. Mas, diferente de Arão Reis, não partimos da premissa de que “o socialismo contemporâneo encontra-se numa crise terminal”. Ao contrário, partimos da premissa que nos propõe Trotsky: “Caso a URSS viesse a fracassar, fruto de dificuldades internas, golpes externos e erros da direção (coisa que, esperamos nós, não aconteça), restaria, como garantia do futuro, o fato inabalável de que, somente graças à revolução proletária, um país atrasado deu, em menos de duas décadas, passos sem precedentes na História”.

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