Redação

A participação de Lula no encontro da Governança Progressista sinaliza à esquerda mundial o que os “mercados” já sabiam: a conversão do PT ao programa do social-liberalismo

Ruy Braga e Álvaro Bianchi

A presença do presidente Luís Inácio Lula da Silva na Cúpula da Governança Progressista, realizada em Londres, tem sido anunciada pelos organizadores como a possibilidade de relançar o combalido projeto da Terceira Via. “O mundo ainda vai ouvir muito sobre a Terceira Via”, festejou seu ideólogo, o sociólogo Anthony Giddens, em artigo recentemente publicado.

A Terceira Via, anunciada por Anthony Giddens, apresentou-se como um projeto e um programa econômico, social e político, supostamente eqüidistante tanto do liberalismo quanto do socialismo. Abraçado pelo então presidente norte-americano Bill Clinton, e pelo primeiro-ministro britânico, Tony Blair, o projeto ganhou corpo com a reunião da Cúpula da Governança Progressista, realizada em Florença em 1999, que contou também com o chanceler alemão Gerhard Schroeder e com os primeiro-ministros Wim Kok, da Holanda, e Massimo D’Alema, da Itália.

Cabe perguntar: qual o significado da participação de Lula nesse encontro? A vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores constituiu um acontecimento político inédito em nossa história. Contudo, as ações de seus primeiros meses de governo têm sido marcadas pelo signo do social-liberalismo. A participação no encontro da Governança Progressista sinaliza para a esquerda mundial o que os “mercados” já sabiam: a conversão do PT ao programa do social-liberalismo.

Por social-liberalismo entendemos um amplo movimento em escala internacional da incorporação de premissas do neoliberalismo por tradicionais partidos de orientação social-democrata. O respeito por parte destes às determinações dos “mercados” – esta verdadeira mistificação conceitual que procura obscurecer as estratégias e os mecanismos da exploração e da opressão –, a adesão às políticas de ajuste estrutural compactuadas pelos fundos internacionais (FMI e Banco Mundial) e a defesa programática das reformas trabalhistas e previdenciárias produziram um curioso efeito político: a emergência de uma espécie de “neoliberalismo mitigado”.
É possível identificar um número bastante variado de exemplos desta conversão de partidos reformistas à ortodoxia liberal: o “Novo Trabalhismo” inglês, o “Socialismo Administrativo” francês e o “Novo Centro” alemão, a despeito de sua pluralidade, apontam, há algum tempo, para o caminho que vem trilhando o “petismo” brasileiro. No Brasil, com a vitória eleitoral de 2002, este processo elevou-se quantitativa e qualitativamente. Democracia e mercados, Estado e economia, direita e esquerda, crise e reestruturação produtiva, indivíduo e classes sociais… Um conjunto heterogêneo e articulado de grandes temas ressurge, captado de acordo com o prisma do “social-liberalismo” na teoria da Terceira Via.

É inquestionável a importância deste debate no âmbito das alternativas à crise do neoliberalismo.

Fenômeno internacional, tal crise – México (1994), França (1995), Sudeste Asiático (1997), Rússia (1998), Brasil (1999), Argentina (2001-2002) e, novamente, Brasil (2002) – descortinou uma conjuntura relativamente nova no cenário econômico e político internacional. O desgaste das estratégias dos fundos internacionais, os ataques aos direitos sociais, o desempenho econômico modesto, o desemprego e o enfraquecimento eleitoral daí decorrentes conferiram um novo fôlego ao projeto da “moderna” orientação social-democrata, na Europa e no Brasil. Se bem é verdade que a crise do neoliberalismo condicionou o ressurgimento do debate sobre a terceira via, também é verdade que os principais eixos teóricos e políticos que o sustentam têm raízes profundas na conjuntura econômica e política dos anos 1970 e 1980.

Os anos da década de 1980 foram de estruturação do neoliberalismo. A cena da história assumiu uma tonalidade marcada pela difusão do processo de mundialização do capital cuja dinâmica fez vergar a espinha dorsal da maioria das sociedades nacionais. Um impulso extra adveio da crise e do posterior sepultamento das “sociedades do Leste”, assim como da defensiva do movimento operário mundial, atingido em cheio pelo desemprego de massas e a reestruturação produtiva em curso.
O pensamento e a prática reformistas não poderiam passar imunes a um processo dessa magnitude. A Terceira Via, colocando-se supostamente “além da esquerda e da direita” pressupõe tacitamente a social-democracia renovada pela hegemonia neoliberal. A resultante é clara: o socialismo inscreve-se apenas formalmente, no horizonte histórico. Deve ser perseguido por meio de reformas progressistas negociadas com o capitalismo. Nesse sistema, só não há espaço para a revolução. Entre esta e o capitalismo, intercala-se um caminho alternativo: acumular forças e transitar pacificamente rumo a um socialismo inalcançável. O Estado regulador proposto pelo reformismo permitiria mudar o mundo permanecendo tudo como está.
O governo petista busca, acompanhando a trajetória recente de parte da esquerda européia social-democrata, se constituir como a alternativa por excelência entre aqueles que defendem a passividade da classe trabalhadora diante da exploração, por um lado, e os partidários das lutas de classes, por outro. Simétricos na recusa à negociação, neoliberais e “esquerdistas” encontrar-se-iam enclausurados numa compreensão estreita das possibilidades abertas ao crescimento com estabilidade pelo compromisso social no crepúsculo de um período histórico marcado pela crise contemporânea.

Se, por um lado, é possível localizar profundas diferenças entre a trajetória da esquerda reformista européia – e suas representações teóricas – e a trajetória política petista, por outro, é impossível deixar de notar paralelismos e convergências significativas. Sobretudo quando pensamos no programa de governo do PT, na reforma da Previdência e na gestão macroeconômica levada a cabo pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Não queremos dizer com isso que o governo Lula será uma espécie de “cópia” de experiências políticas reformistas recentes. A rigor, o programa petista localiza-se à direita de várias das políticas reformistas européias. Mas, do “Novo Trabalhismo” inglês ao “Socialismo Administrativo” francês, passando pelo “Novo Centro” alemão, não deixa de ser possível vislumbrar no passado recente europeu algumas indicações interessantes a respeito do futuro do governo Lula e das alternativas ao neoliberalismo.

* Ruy Braga é professor da USP
** Alvaro Bianchi é professor da Universidade Metodista de São Paulo

Post author Ruy Braga* e Alvaro Bianchi**, especial para o Opinião Socialista
Publication Date