Rosenverck Estrela Santos, do PSTU Maranhão, Quilombo Raça e Classe e vocalista do grupo de Rap Gíria Vermelha

O movimento negro e sua relação com o Estado: uma polêmica em aberto

Existe uma polêmica no interior do movimento negro que diz respeito à relação que este deve estabelecer com o Estado, principalmente nas instituições governamentais por meio de cargos comissionados. Tem setores que acreditam que é possível estar dentro de governos, mantendo a autonomia do movimento, pois o espaço obtido ou conquistado seria uma fresta ou ruptura aberta na contradição da estrutura do Estado, notadamente caracterizado pelo racismo institucional. Ou seja, a presença de intelectuais e/ou militantes negros na estrutura governamental seria mais um espaço de luta e incorporação das demandas do movimento negro do qual não se pode abrir mão, sob pena de restringir a luta e as conquistas da população negra.

Pensamos diferente. Não temos dúvida que a presença de militantes negros nas esferas governamentais, em certo sentido, torna o debate da questão étnico-racial em evidência e que políticas públicas podem ser construídas, a partir das exigências, orientações e sugestões desses militantes e dos movimentos. A reflexão a ser feita, no entanto, é que tipo e qual o formato de políticas públicas são incorporadas pelo Estado e quais outras passam longe de ser atendidas justamente porque a incorporação do movimento e/ou militantes nas esferas governamentais gera uma agenda de compromisso entre os dois campos e que passa a prevalecer a lógica de que é preciso negociar para não ter o conflito ao invés da tradição e história dos movimentos populares no Brasil de que é preciso entrar em conflito para poder negociar e conseguir conquistas do Estado.

Breves exemplos demonstram isso. Quantos certificados de comunidades quilombolas foram emitidos durante o governo de frente popular? Centenas! Quantas titulações e regularização de terras de comunidades quilombolas nós tivemos? Quase nenhuma! Ou seja, o Estado atende medidas no plano identitário, demandas específicas do movimento negro, mas não garante a posse da terra que seria uma política de reparação e não apenas de ação afirmativa. A presença do movimento negro no Estado consegue garantir a política identitária – não sem luta e dificuldade – mas, tem muita dificuldade, pelos compromissos assumidos, em avançar na exigência para que esse mesmo governo saia das aparências e aprofunde realmente as políticas de transformação da vida da população negra. A invasão do Haiti é outro exemplo emblemático, pois, por um lado o governo de frente popular se tornou ponta de lança do imperialismo estadunidense para a superexploração do trabalhador haitiano, com milhares de mortos e mulheres estupradas e, por outro lado, o silêncio, de parte significativa do movimento negro atrelado ao governo, foi ensurdecedor.

Por essa razão, acreditar que a autonomia do movimento ou desses militantes pode ser mantida dentro de aparelhos de Estado burgueses, cujo objetivo em primeira instância é reproduzir os meios para a ampliação do lucro do capital e, por outro lado, frear as lutas populares, é um ponto com o qual não concordamos.

Nesse sentido, mesmo sabendo da importante pressão dos movimentos negros para a construção da política de promoção da igualdade racial, não se pode deixar de perceber como os governos têm absorvido e ressignificado as demandas desses movimentos em interesse próprio, tendo em vista as suas políticas atreladas ao contexto neoliberal e de reforma do próprio Estado. Será que o exemplo de Palmares tem algo a nos informar sobre esse debate?  É o que vamos refletir agora.

Zumbi e a negação da conciliação de classe
Zumbi dos Palmares, entre tantos feitos, tornou-se reconhecido por ter se colocado contra o acordo com os escravocratas e o governo de Pernambuco, pois este tratado garantiria a liberdade aos palmarinos, mas teria que ter como contrapartida a renúncia da luta pela eliminação da ordem escravocrata, fundamento da sociedade colonial brasileira. Acordo esse que tinha por objetivo ganhar tempo, visto o enfraquecimento das forças militares europeias e possivelmente dividir os palmarinos, dado os termos do tratado. Lembrando que o governo europeu só propôs o acordo em razão das dezenas de fracassos dos seus exércitos.

Esse acordo, que foi aceito por Ganga Zumba, tinha as seguintes propostas: libertar os pretos nascidos em Palmares; recebimento de terras (que se mostraram improdutivas); legalização do comércio dos pretos palmarinos e a aceitação por parte dos palmarinos que estes seriam súditos da coroa portuguesa, ou seja, aceitariam a ordem estabelecida da escravidão. Quanto aos negros e negras fugidos para Palmares por conta própria, esses seriam reescravizados.

Monumento a Zumbi no Pelourinho, em Salvador (BA)

Zumbi e outras lideranças palmarinas se negaram a fazer tal acordo, pois sua luta não era apenas pela liberdade dos Palmarinos, era contra a estrutura escravista da sociedade brasileira. Não bastava emancipar os palmarinos, era preciso emancipar toda a população negra! E, emancipar a população negra era o mesmo que emancipar toda a população trabalhadora brasileira como bem já destacou Clóvis Moura, pois a sociedade escravista foi estruturada em torno da exploração e da opressão sobre os negros e negras. Estava colocado o desafio que mais a frente, em seu tempo, Marx colocaria aos judeus: como os judeus queriam a emancipação, sem emancipar a humanidade?

Zumbi não aceitou renegar a totalidade de seu povo por promessas falsas, logo comprovadas com a prisão e o abandono dos que aceitaram sentar à mesa do governo pernambucano. Mas por qual motivo Zumbi e outros líderes e mocambos do Quilombo dos Palmares não aceitaram a conciliação com o governo pernambucano e a metrópole portuguesa? Porque, como explica Clóvis Moura, Palmares foi a antítese do sistema escravista, não em virtude da fuga ou dos assaltos aos latifúndios, pois isso sempre ocorreu no sistema colonial brasileiro, mas acima de tudo porque representava uma outra forma de organização social, política, econômica e cultural, em pleno território da América Portuguesa. Era uma nova forma de sociabilidade e produção e reprodução da vida, levada à frente por mais de 30 mil pessoas de diferentes grupos étnico-raciais e dirigidos por lideranças negras. Fazer uma aliança com os poderosos oligarcas era negar esse projeto de sociabilidade, negar outra forma de produzir a existência humana baseada em princípios de produção e repartição igualitária.

Por isso Zumbi negou-se a assinar qualquer aliança com a elite e fortaleceu-se em seu objetivo que era a emancipação da população negra do sistema colonial escravista. Esse é o exemplo de Zumbi e Palmares. Esse é o exemplo de quem não se rendeu aos acordos com a oligarquia latifundiária e escravista. Como, então, temos que nos contentar com reformas e medidas paliativas dentro do sistema capitalista, capitulando a governos que empreendem políticas neoliberais que literalmente causam o genocídio da juventude e das mulheres negras?

Como lembra o historiador Joel Rufino dos Santos, Zumbi negou o sistema escravista pelo menos três vezes – aos 15 anos ao abandonar a sociedade escravista onde vivia com um padre desde que fora sequestrado em Palmares, ainda criança; aos 23 anos quando recusou a paz de Ganga Zumba e aos 25 anos de idade quando o governo português propôs a ele individualmente uma série de benefícios, desde que abandonasse a luta. A reposta foi: continuar a combater em Palmares. Ou como lembra Clóvis Moura, preferiu a liberdade entre as feras, do que a sujeição entre os homens.

Lembrando que Zumbi só ratificava a tradição da história de Palmares que teve início na dominação holandesa sobre Pernambuco e terminou na dominação portuguesa. Nesse confronto entre holandeses e espanhóis (Portugal estava sob domínio da Espanha) muitos negros tiveram que optar entre um dos lados. Ou ficavam do lado holandês ou do lado da União Ibérica como fora o exemplo do negro Henrique Dias, comandante de tropas negras que lutaram ao lado dos portugueses. Nessa disputa entre o ruim e o pior Palmares não tomou lado. O lado de Palmares era o da população negra em sua luta pela liberdade e condições existenciais de vida e não na defesa de um dos lados da elite escravocrata em fratura. Não se colocaram esse dilema, entre ficar com o ruim ou o menos ruim; escravista era escravista não importa se holandês, espanhol ou português. Não havia conciliação com escravistas! Por que então hoje temos que optar entre o ruim e o menos ruim? O neoliberal de direita ou neoliberal de esquerda? Aquele que fornece um cartão de crédito para as mães pretas e arma a polícia até os dentes para matar seus filhos ou aquele que mata os filhos sem dar o cartão de crédito para a mãe preta?

Por que não relembrar a história de autonomia e independência de classe de Zumbi dos Palmares ao ter negado por três vezes no mínimo o sistema escravista e por consequência o status quo e o seu Estado de poder e dominação? Antes de um negociador ou conciliador, Zumbi foi um líder que negava acordos de cúpula e benefícios. Não aceitou os gabinetes nem o conforto individual em detrimento da luta direta pela melhoria das condições de vida de seu povo.

Evidentemente sabemos que o Estado é um instrumento da burguesia para dominar, porém ao ser constituído por contradições devemos atuar nessas contradições para atingir conquistas democráticas, o que se torna cada vez mais difícil na época imperialista que vivemos. Saber disso não pode nos levar a compactuar com o governo bandido e sanguinário de Temer, do PMDB e do PSDB. Mas, também, não nos autoriza a compactuar com governos que traem a classe trabalhadora e a população negra; abusam da corrupção e empreendem ou apoiam – mesmo que disfarçadamente – o extermínio da juventude negra; que invadem ou apoiam a invasão de países negros na forma do exército ou por empreiteiras ávidas por lucros e riquezas.

Para atuar nas contradições do Estado, este Estado tem que estar sob o nosso controle, caso contrário, nós é que estaremos sob o controle dele. Podemos cair no risco do que Gramsci chamou de transformismo. Isto é, grosso modo¸ deixar de representar a nossa classe e a população negra e passar a representar os interesses do Estado racista. Isso é tudo que Palmares não representa e que Zumbi se tornou o avesso! Eles são o exemplo clássico da autonomia da luta e da não conciliação de classe dos trabalhadores e das trabalhadoras negras brasileiras.