A doença de Fidel Castro e a transmissão do poder a seu irmão Raúl trouxeram novamente o debate sobre o presente e o futuro de Cuba.

O imperialismo norte-americano saiu pressionando abertamente o governo da ilha. Bush anunciou: “apoiaremos os esforços para criar um governo de transição em Cuba, comprometido com a democracia”. A secretária de Estado Condolleeza Rice disse, em mensagem gravada ao povo cubano, que os EUA “estão alentando outros países democráticos a pressionar Cuba por uma transição que leve rapidamente a eleições pluripartidárias”. Os anti-castristas de Miami saíram festejando a suposta agonia de Fidel.

Além das declarações do governo cubano contra a interferência do governo ianque nos problemas internos da ilha, circula um pronunciamento que já conta com milhares de assinaturas, encabeçado por sete prêmios Nobel e 400 intelectuais de todo o mundo, com a seguinte exigência: “diante desta ameaça crescente contra a integridade de uma nação, da paz e da segurança na América Latina e no mundo, exigimos que o governo dos EUA respeite a soberania de Cuba. Devemos impedir a todo custo uma nova agressão”.

À primeira vista, parece que a discussão é, por um lado, ingerência e a preparação de uma agressão (política e militar) do imperialismo norte-americano ao Estado operário e socialista de Cuba, com o objetivo de restaurar o capitalismo. E, por outro, a defesa da soberania da ilha e do Estado operário cubano, garantida pelo governo de Fidel e pelo castrismo.

Se esta fosse a questão central exposta na realidade, nós da LIT-QI não teríamos nenhuma dúvida: estaríamos contra toda ingerência do imperialismo em Cuba. Da mesma forma, repudiamos outras formas de agressão a Cuba, como o boicote comercial que há décadas é realizado pelos EUA. E mais: em caso de qualquer ataque militar do imperialismo, estaríamos a favor da mais ampla unidade, inclusive com o governo castrista, para defender Cuba da agressão.

No entanto, para nós o principal problema e o debate de fundo que a doença e a sucessão de Fidel expõem é outro. A soberania de Cuba está ameaçada já faz tempo, não apenas pelo imperialismo norte-americano, mas também porque o capitalismo entrou com toda força em Cuba há mais de uma década, levado pelas próprias mãos do governo castrista.

Esse debate não é feito com clareza dentro da esquerda mundial pela grande influência que tem exercido Fidel e o castrismo. A maioria da esquerda considera que, depois da restauração capitalista na Rússia e na China, Cuba representa “o último bastião do socialismo”. Ainda que faça concessões ao capitalismo, como foi realizado por Lenin e Trotski na URSS, a partir de 1921, com a NEP (Nova Economia Política), até agora o caráter socialista do Estado cubano estaria preservado por setores da direção castrista, essencialmente pelo próprio Fidel.

A partir deste enfoque, a enfermidade e a morte de Fidel acelerariam a possibilidade da restauração capitalista. Outras correntes são muito mais críticas à política de Fidel e dizem que a própria direção castrista impulsiona a restauração. Para além de suas diferenças, ambas as análises coincidem em um ponto: se Cuba segue sendo um “país socialista” ou um “Estado operário”, a principal tarefa seria defender a ilha frente aos ataques ianques.

Nós, da LIT-QI, temos outra visão. Evidentemente, defenderemos Cuba frente aos ianques e à antiga burguesia cubana exilada em Miami. Mas acreditamos que o problema que enfrenta Cuba é outro, totalmente diferente: a realidade mostra que o capitalismo já foi restaurado na ilha pela própria direção castrista, na segunda metade da década de 1990, associada ao imperialismo europeu e ao Canadá. Para nós, o que hoje está em discussão em Cuba não é um possível risco de uma transformação do caráter socioeconômico do Estado, mas sim a mudança ou não de seu regime político. Por isso, começaremos analisando o atual caráter socioeconômico do Estado cubano.

A revolução e as conquistas
Logo após a revolução de 1959, o povo cubano expropriou as empresas do imperialismo ianque e da burguesia cubana. Assim começou a construção do primeiro Estado operário do continente latino-americano.

Graças à revolução, Cuba conquistou avanços imensos em áreas como a educação e a saúde pública, com níveis comparáveis aos países imperialistas, e superou, nessas áreas, nações muito mais desenvolvidas, como Brasil, México ou Argentina. Também avançou muitíssimo o nível de vida geral da população e a pobreza foi eliminada.

Cuba converteu-se em um símbolo do que seria capaz de conquistar uma revolução socialista. Os dirigentes do processo, Fidel e Che Guevara, passaram a ser a referência política de milhões de lutadores e revolucionários.

A restauração
Em 1990, o fim da URSS e a restauração capitalista no Leste Europeu significaram um duro golpe para a economia cubana, centrada na exportação de açúcar e sua troca por petróleo e tecnologia com esses países. Nesse contexto, a direção castrista começou a desenvolver uma política de restauração capitalista e de desmonte das bases essenciais do Estado operário. Os fatos principais da restauração foram:

1) A Lei de Inversões Estrangeiras de 1995, que criou as “empresas mistas”, administradas pelo capital estrangeiro. Os investimentos dirigiram-se especialmente ao turismo e a ramos relacionados, mas se ampliaram a outros setores, como produtos farmacêuticos e, recentemente, ao petróleo;

2) O fim do monopólio do comércio exterior por parte do Estado, exercido pelo Ministério de Comércio Exterior. Hoje, tanto as empresas estatais como as mistas podem negociar livremente suas exportações e importações;

3) O dólar se transformou, de fato, na moeda efetiva de Cuba, coexistindo com duas moedas nacionais: uma “conversível” em dólares e outra “não conversível”;

4) Foi privatizada, de fato, a produção e a comercialização de cana-de-açúcar, através das “unidades básicas de produção cooperativa” (80% da área cultivada). Seus membros não têm a propriedade jurídica da terra, mas repartem entre si os lucros obtidos. Em 1994, começaram a funcionar os “mercados agropecuários livres”, cujos preços se determinam no mercado.

O que acabamos de analisar não tem nada a ver com a NEP na URSS. Trata-se de algo qualitativamente distinto porque significou a destruição da essência do Estado operário cubano: foi eliminada a planificação econômica estatal e o ministério que a realizava foi dissolvido. Em seu lugar, surgiu um novo Estado capitalista, em que a economia funciona de acordo com a lei capitalista do lucro.

Por outro lado, a restauração capitalista está provocando uma deterioração acelerada das conquistas sociais da revolução, especialmente na área de educação e saúde. Ao mesmo tempo, a diferenciação salarial entre trabalhadores estatais e privados é crescente, e reaparecem chagas típicas do capitalismo, como a prostituição.

A entrada do imperialismo
A restauração capitalista não foi feita essencialmente através da formação de uma nova burguesia nacional, mas sim por meio de investimentos estrangeiros: os imperialismos europeus e canadense realizaram grandes investimentos e hoje dominam os setores mais dinâmicos e fortes da economia.

A estrutura econômica cubana mudou muito na última década: deixou de se basear no açúcar e se concentrou nos serviços que, em 2004, representavam 73,6% do PIB cubano e 51% do emprego.

Nesse mesmo ano, os “ingressos em divisas associados ao turismo” quase igualaram-se à cifra de exportações de bens físicos (mais de US$ 2,1 bilhões). Se somarmos os ingressos por medicina e outros, os serviços geram hoje mais de 60% das divisas que ingressam no país.

Por outro lado, o peso do capital estrangeiro aprofunda-se ainda mais com os contratos que entregam para a Repsol e empresas inglesas e canadenses a exploração das abundantes reservas petroleiras descobertas no mar do Caribe.

O castrismo e a “via chinesa“

Pode ser entranho que falemos de restauração capitalista quando permanecem no poder os mesmos dirigentes que encabeçaram a revolução e que sempre falaram na “defesa do socialismo”. Mas isso não significa nada: tanto Gorbatchov, na ex-URSS, como os dirigentes do Partido Comunista Chinês esconderam sua política de restauração com discursos “socialistas”.

O processo da China mostrou que se pode restaurar o capitalismo, ou seja, modificar o caráter socioeconômico do Estado, sem mudar o regime político. O PC chinês conservou seu poder hegemônico, mas o país deixou de ser um Estado operário e passou a ser um país capitalista administrado pelos dirigentes do partido, que se beneficiam dos novos negócios. Na Rússia e em outros estados do Leste Europeu o processo ocorreu de modo diferente, já que os PCs perderam o poder.

Apesar das diferenças entre os processos, em Cuba se deu algo similar à “via chinesa” de restauração capitalista: a restauração foi impulsionada pelo PC e pela cúpula castrista, que também obteve grandes benefícios.

Por exemplo, são bastante ilustrativos os dados sobre o poder econômico que administra Raúl Castro, chefe histórico das Forças Armadas cubanas. “As Forças Armadas Revolucionárias (FAR) têm um orçamento anual de US$ 1,469 bilhões e o manejo das mais importantes empresas estatais do país. Controlam 322 empresas responsáveis por 89% dos ingressos das exportações, 59% dos lucros obtidos pelo turismo e 60% das transações em divisas”. (El Nuevo Herald, 10/8/2006)
A cúpula castrista transformou-se em sócia dos capitais estrangeiros, garantindo seus negócios e, por sua vez, enriqueceu através das empresas estatais e sua participação nas empresas mistas.

Nova revolução ou colônia
Repetimos que a disjuntiva atual de Cuba não é entre a sobrevivência do “Estado operário” ou a restauração capitalista: o Estado operário já não existe e a restauração já se produziu. Isso significa que uma das questões centrais colocadas na realidade é que, a partir da restauração, Cuba está perdendo seu caráter de país independente e marcha aceleradamente para se transformar em uma semicolônia do imperialismo europeu e canadense.

Lamentavelmente, é a própria direção castrista que empurra o país nesta direção. Fidel, ao mesmo tempo em que mantém seus discursos contra Bush e a burguesia cubana exilada, homenageia permanentemente, junto com Chávez, o rei Juan Carlos, símbolo do imperialismo espanhol.

A principal ameaça à independência cubana não provém do imperialismo ianque e da burguesia exilada nos EUA. Para defender ou recuperar essa independência, é necessário realizar uma nova revolução social que exproprie as empresas e capitais europeus e canadenses, da mesma forma que, para consegui-la, foi necessário expropriar o imperialismo norte-americano e a burguesia cubana. A profunda diferença com o processo iniciado em 1959 é que isso significa hoje lutar contra a política de Fidel e a direção castrista.

A transmissão do poder para Raúl Castro mostrou claramente que um reduzido número de dirigentes do partido, do Exército e do Conselho de Estado toma as decisões que afetam o futuro do país. Nem sequer participam delas o conjunto do PC cubano ou o Parlamento. Menos ainda, se consulta o povo cubano.

Seguramente a grande maioria desse povo mantém seu carinho e respeito pelo velho dirigente da revolução. Contudo, esse fato não pode ocultar que milhões de cubanos não têm nenhuma possibilidade de intervenção política real na decisão de quem deve suceder Fidel. Trata-se de uma situação completamente antidemocrática que impede um direito elementar.

Uma discussão falsa
Quem defende o atual regime cubano afirma, por um lado, que em Cuba existe uma “democracia popular” totalmente diferente da falsa democracia burguesa. Por outro, que a “democratização” sempre foi a máscara do imperialismo e da burguesia cubana exilada para buscar a restauração capitalista.

É uma posição duplamente falsa. Em primeiro lugar, não pode haver uma verdadeira “democracia popular” sem que os trabalhadores e o povo tenham o direito de formar grupos de oposição política, publicar jornais, etc. O que não existe em Cuba.

Mas o essencial que esta posição oculta é que a restauração capitalista (ou o risco certo de restauração para aqueles que consideram que ela ainda não ocorreu) não ocorreu pelas mãos de uma invasão do imperialismo norte-americano, mas foi impulsionada pela própria direção castrista, que está vendendo o país ao imperialismo europeu e canadense.

Por isso, o caráter antidemocrático do atual regime cubano não é resultado necessário de uma “fortaleza socialista sitiada” que se defende de uma agressão externa, mas sim uma ferramenta a serviço da política da cúpula castrista que restaurou o capitalismo, destruiu as conquistas da revolução e leva o país a se transformar numa semicolônia.

A defesa do atual regime oculta-se por trás do risco da volta dos ianques e da burguesia cubana. Mas seu significado real é, por um lado, a defesa da política e dos privilégios econômicos da cúpula castrista e, por outro, uma tentativa de evitar que o povo cubano possa se organizar para lutar contra ela.

A morte de Fidel, ou a impossibilidade de exercer o poder, não só pode aumentar as diferenças entre as distintas alas do castrismo, mas também debilitar essa cúpula em sua relação com as massas. Por isso, ela necessita “ajeitar tudo” para evitar os riscos de divisão interna e, essencialmente, assegurar o controle do movimento de massas.

Confiamos no povo cubano
Nossa proposta de “democratização” parte de bases totalmente distintas e aponta para objetivos opostos aos do imperialismo ianque. Para nós, trata-se de defender as conquistas que sobraram da revolução, reverter a restauração capitalista e frear o processo de colonização do país.

Confiamos plenamente no povo cubano, que já mostrou inúmeras vezes a capacidade de lutar contra a burguesia e o imperialismo. Por isso mesmo, defendemos plenamente o direito de debater e decidir democraticamente o destino do país e a sucessão de Fidel.
Post author Alejandro Iturbe, da LIT-QI
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