Foi no dia 8 de março. As operárias da indústria têxtil escolheram o Dia Internacional da Mulher para começar sua luta. Rapidamente a greve contagiou outras categorias e mais de 90 mil pessoas marcharam rumo ao centro da cidade. As mulheres iam à frente. Para impedir o avanço da multidão, o governo ordenou que a cavalaria formasse uma linha sólida e coesa em uma das pontes de acesso ao centro. Cerca de 1500 cavaleiros se alinharam. A multidão se aproximou e houve silêncio. Ninguém sabia ao certo como terminaria aquele encontro. As mulheres, mais corajosas, chegaram até os cavalos. De joelhos, elas seguravam as botas dos soldados e imploravam que as deixassem passar. Mas os soldados não se moviam. Então, algo inesperado aconteceu: um soldado piscou o olho para uma operária. Era um sinal, e ela logo entendeu. Ela se agachou, e passou por entre as pernas do cavalo, transpondo facilmente a temida barreira. Foi a primeira.

Muitas outras a seguiram por aquela brecha inesperada. Outros soldados piscaram o olho para outras operárias e em poucos minutos, alguns milhares de trabalhadores haviam atravessado a ponte rumo ao centro, todos passando por baixo do ventre dos cavalos, mantidos imóveis pelos soldados. Formalmente, a ordem dada pelo comando havia sido cumprida e por isso ninguém poderia ser punido. Não passou pela cabeça do governo que a súplica de uma multidão de mulheres tocaria o coração daqueles homens duros. Mas tocou. No quinto dia de greve o governo caiu. Oito meses depois, em outubro, os mesmos homens e mulheres que haviam se arrastado por entre as pernas dos cavalos naquela manhã de março tomaram o poder e começaram a edificação de uma nova sociedade. A revolução, como toda criança, começou engatinhando, para logo depois dar passos de gigante. E tudo começou com um pequeno ato de indisciplina: uma piscada de olho.

O episódio é verídico, está documentado, e aconteceu em Petrogrado, antiga capital da Rússia, em 1917. Esse incrível começo da primeira Revolução Socialista vitoriosa da história nos remete a uma questão fundamental: o que são as Forças Armadas e qual a relação que os trabalhadores devem ter com elas?

Um aparato repressivo a serviço da burguesia
As Forças Armadas, incluídos aí o Exército, os serviços de inteligência e as polícias civil e militar, são um aparato repressivo a serviço da dominação de classe da burguesia. É verdade que o Exército protege as fronteiras do país dos invasores externos e presta auxílio à população quando acontecem grandes tragédias. Também é verdade que as polícias desvendam crimes, organizam o trânsito e vigiam as saídas das escolas com o objetivo de proteger as crianças. Mas isso é apenas uma cortina de fumaça que esconde suas verdadeiras funções.

Vivemos em uma sociedade dividida entre explorados e exploradores, oprimidos e opressores. Para manter a estabilidade da ordem social, a burguesia precisa dar uma cara democrática à sua dominação. Não pode reprimir todo o tempo. Por isso, no cotidiano, o domínio da burguesia se dá através da ideologia, e não da violência (ver artigo O que é ideologia, desta série). Mas há momentos em que as ideologias param de funcionar. Quando crises econômicas, política e social atingem um nível insuportável, as ideias tornam-se insuficientes para manter os trabalhadores passivos. Eles saem à luta, se organizam, se rebelam. Nesses momentos, sempre (absolutamente, sempre!), as Forças Armadas são colocadas em ação.

A PM realiza despejos em áreas ocupadas pelos movimentos sem-terra e sem-teto; a tropa de choque reprime greves e manifestações; a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) se infiltra nos movimentos sociais com o objetivo de identificar os líderes e coletar informações, e o Exército garante a ordem nas ruas das favelas ocupadas quando a polícia já não não dá mais conta.

Treinados para atacar negros e pobres
Uma das principais ideologias criadas pela burguesia é a de que as Forças Armadas existem para o bem comum. Não é a toa que o lema da polícia seja “para servir e proteger” e o do Exército seja “braço forte – mão amiga”. A burguesia tenta todo o tempo passar a ideia de que as Forças Armadas são aliadas do cidadão de bem e que quem obedece as leis não tem nada a temer.

Mas a realidade é bem diferente. As Forças Armadas são, em primeiro lugar, uma força de classe. Isso pode ser visto em seu treinamento. Para “combater o crime”, é preciso, antes de mais nada, saber identificar os criminosos. E como identificá-los? O treinamento da PM ensina: pela sua aparência. São jovens, negros, andam mal vestidos, passeiam em pequenos grupos à noite etc. Esse tipo de “treinamento”, complementado por ações práticas dos alunos das academias de polícia nos bairros pobres da periferia, vai educando o policial na lógica de que todo pobre é um criminoso em potencial. Com o tempo, esse tipo de pensamento vai se enraizando na cabeça do policial e sua ação começa a adquirir um caráter discriminatório e segregador. Ele se separa do povo e acha que pode tudo. Daí a famosa imagem do policial militar jogando spray de pimenta no rosto de duas meninas que acompanhavam a mãe em um protesto por moradia no Rio; ou ainda o vídeo do policial militar dando cinco tiros a queima-roupa em um adolescente de 14 anos, em Manaus, há alguns meses.

Esses e muitos outros não são casos isolados. São a prova definitiva de que as Forças Armadas são, na realidade, a carceragem de uma prisão invisível, uma prisão chamada sociedade capitalista.

Outro exemplo emblemático: a forma como a tropa de choque se prepara para uma manifestação. Várias horas antes da manifestação o pelotão é chamado ao pátio do batalhão e fica em formação, aguardando a ordem de sair. Se está sol, fica no sol; se está chovendo, fica na chuva. Enquanto aguarda, o pelotão é “esclarecido” sobre os motivos da espera: “vocês estão aqui por causa de vagabundos e grevistas, veados e maconheiros” etc. São dadas também advertências: “cuidado com os coquetéis molotov, pedras e estiletes que todo estudante e sindicalista carrega consigo!”. O resultado é óbvio: os policiais saem para `as ruas completamente enfurecidos, sedentos de vingança pelas horas de espera, fome e cansaço. Com esse tipo de “preparação”, não é de se admirar que a PM gaste tanto gás de pimenta com sindicalistas, estudantes e crianças de 6 anos.

A atitude da classe trabalhadora
Como instituições, o Exército e as polícias são irrecuperáveis. O objetivo dos socialistas é a dissolução dessas forças armadas violentas, racistas e anti-operárias e sua substituição por forças armadas formadas e controladas pelos trabalhadores e pela população pobre. Mas até lá os trabalhadores não podem ficar de braços cruzados.

A atitude da classe trabalhadora para com as Forças Armadas não pode levar em conta apenas o caráter repressivo da instituição. Deve levar em conta também o fato de que esta instituição é feita de pessoas de carne e osso, e que toda pessoa de carne e osso tem duas características: 1) pensa e 2) vive em uma determinada realidade social que a influencia.

As Forças Armadas não são compostas apenas por capitães e coronéis bem remunerados. Elas são formadas também por soldados rasos, cujo nível de vida é idêntico ao dos trabalhadores mais explorados. Existem as milícias que controlam as favelas, mas existem também os soldados que moram no morro, que secam seu uniforme dentro de casa e que vão para o trabalho à paisana para não serem mortos pelo tráfico.

A classe trabalhadora deve confiar que a revolução socialista provocará uma luta de classes também dentro das Forças Armadas e que os elementos mais honestos serão simpáticos à causa do proletariado e poderão, em certo momento e sob certas condições, romper a disciplina e se juntar à revolução. Todas as revoluções vitoriosas dependeram desse momento dramático: quando uma parte das Forças Armadas passa, de armas na mão, para o lado dos rebeldes. Pensar que o proletariado pode tomar o poder sem romper as forças armadas é uma utopia, é jogar o proletariado num poço de sangue e derrota.

Mas, para dividir os aparatos repressivos, os trabalhadores precisam agir desde já, mesmo que modestamente. É preciso realizar um sério trabalho de propaganda sobre a base das Forças Armadas, defender o direito de greve e sindicalização dos soldados, disseminar entre eles a desconfiança para com os oficiais e o alto comando. É preciso convencer os soldados de que a melhoria de suas vidas depende de sua união com os trabalhadores, da derrota do capitalismo e da vitória do socialismo. Essa propaganda será, no atual momento histórico, tímida e débil, quase inexistente. Mas as revoluções e as crianças ensinam: quem não sabe engatinhar, jamais poderá correr.

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