Rio de Janeiro RJ 28 12 2018 O presidente eleito Jair Bolsonaro recebe a visita do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em Copacabana.foto Fernando Frazão/Agencia Brasil
Soraya Misleh, de São Paulo

Soraya Misleh

Entre os dez chefes de Estado que prestigiaram a posse de Bolsonaro, em 1º de janeiro, um deles em especial ganhou os holofotes: o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu. De um lado a visita foi repudiada no Brasil e em todo mundo por seus crimes contra a humanidade e, de outro, saudada com honras pelo capitão reformado do Exército agora Presidente da República. Foi a primeira visita de um primeiro-ministro sionista ao Brasil desde a Nakba – a catástrofe com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica na Palestina. Em novembro de 2017, Netanyahu esteve na América Latina, mas não incluiu o Brasil como destino. Passou por Argentina, Colômbia e México e enfrentou protestos em todos os países, como é de praxe.

Mas o que significa essa visita sem precedentes? Para Netanyahu, uma “revolução” nas relações com Israel. À primeira vista, a afirmação pode parecer uma injustiça. Já em 1947 se iniciou a cumplicidade histórica do Brasil com o sionismo: o diplomata Osvaldo Aranha presidiu a Assembleia Geral das Nações Unidas de 29 de novembro que recomendou a partilha da Palestina em um estado judeu e um árabe e, sob a orientação do governo à época, acompanhou o voto favorável do imperialismo emergente pós-Segunda Guerra Mundial – os Estados Unidos – à injusta partição que deu sinal verde à limpeza étnica inaugurada menos de 15 dias depois.

Mais recentemente, durante os governos Lula e Dilma, o Brasil alçou a vergonhosa posição de quinto maior importador de tecnologia militar israelense. Portanto, a despeito da promessa de ainda mais acordos, do ponto de vista material, que sustenta a ocupação de terras palestinas, os governos anteriores não deixaram a desejar. Não obstante, em resposta, começou a se firmar a campanha de BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel no Brasil e na América Latina como um todo.

De outro ponto de vista, contudo, a visita sinaliza mudança na posição diplomática histórica do Brasil, a favor da falácia do “diálogo” e da injusta solução de “dois estados”, defendida pelos governos mundo afora. Essa se baseia nas recomendações da ONU, cuja resolução é que nenhuma Embaixada se estabeleça em Jerusalém enquanto não se decidir, via negociações, o estatuto da cidade.

Para além, de modo a aprofundar seus negócios e seguir ganhando mercado na região, a construção ideológica ganha destaque neste novo quadro. Diante do declínio do sionismo no mundo, com Israel amargando queda de 46% nos investimentos europeus em face do fortalecimento da campanha de BDS no continente, a ação é crucial ao projeto colonial. Em um país com o potencial do Brasil e liderança na América Latina, a propaganda é estratégica a esse propósito. Como Netanyahu declarou à mídia, “é um país com quase um quarto de bilhão de pessoas, uma superpotência. E estão mudando suas relações com Israel de um extremo a outro, incluído o tema de Jerusalém.” Declarações de Bolsonaro de “amor a Israel”, o apoio de lideranças evangélicas que formam a base do “sionismo cristão” e promessas de aproximação ainda durante a campanha eleitoral constroem o terreno que leva a se visualizar, talvez como nunca, bandeiras israelenses em manifestações públicas do governo e representantes.

O gesto simbólico de transferência da Embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém vai ao encontro dessa lógica, que representa a adesão plena e sem máscaras ao projeto colonial sionista – cuja expansão se centra na atualidade na cidade reivindicada pelos palestinos como sua capital histórica. Ademais, ao seguir os maus passos de Trump – que após muita polêmica e pressão internacional, adiou a transferência de sua Embaixada e instalou, de início, um escritório de representação em Jerusalém –, demonstra a subserviência do Brasil ao imperialismo e o papel subalterno a que é relegado no sistema capitalista mundial.

Sionismo cristão x resistência
Em uma campanha turbulenta e repleta de denúncias públicas, como a de financiamento ilegal por parte de empresários de fake news nas redes sociais, assim como ocorreu com Trump, atores que têm muito interesse na construção ideológica pró-Israel ganharam protagonismo: as principais lideranças evangélicas, bastiões do denominado “sionismo cristão”. Dos EUA ao Brasil, tiveram papel importante para assegurar a eleição da extrema direita.

A uma turba de fiéis que busca alento na religião e se amplia diante da crise mundial do capitalismo – no Brasil os evangélicos já se aproximam de 30% da população –, o “sionismo cristão” enraizado sobretudo pela ala neopentecostal dissemina a já desgastada ideia de que Israel é a terra prometida e seu “povo judeu”, escolhido por Deus. Assim, busca ressuscitar representações bíblicas já desmontadas historicamente, utilizadas pelo movimento sionista para justificar a colonização na Palestina ainda em seus primórdios. O resultado é que, como chegou a afirmar Bolsonaro em entrevista ao SBT no dia 3 de janeiro, “grande parte dos evangélicos são favoráveis à mudança da capital [Jerusalém]”. A pregação se reflete também no Parlamento brasileiro: muito embora a bancada evangélica ainda seja pequena – equivale a apenas 15% dos eleitos -, cresceu nessa legislatura de 78 para 91 parlamentares, de acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

Em reportagem do El País de 30 de outubro último, a pesquisadora norte-americana Amy Erica Smith ensina que o envolvimento com a política desse grupo data dos anos 1980 e se aprofunda: “Os evangélicos achavam que as políticas públicas do Estado brasileiro estavam prejudicando sua capacidade para evangelizar. Queriam chegar ao poder para obter coisas como licenças para rádio.” Esse setor promete pressionar Bolsonaro a cumprir sua promessa.

Não obstante, não vai ser fácil. A resistência vem não apenas de palestinos e internacionalistas solidários, mas inclusive de regimes árabes e do empresariado, que veem a medida polêmica como uma pedra no sapato a seus negócios com o Brasil – as exportações brasileiras à região, segundo documento apresentado pela Câmara de Comércio Árabe-Brasileira na segunda quinzena de dezembro ao vice-presidente Hamilton Mourão, devem se expandir dos US$ 13,6 bilhões de 2017 para até US$ 20 bilhões em 2022. Da Liga Árabe à Câmara de Comércio Brasil-Árabe, o alerta que vem sendo dado é de risco de retaliações para comércio e investimentos com a medida. “Nós temos a preocupação de não criar ruídos nas relações [com os países árabes], com algo que poderia impedir a realização deste potencial [de negócios]”, declarou o presidente da Câmara, Rubens Hannun, no ensejo.

Os países árabes são hoje o quinto principal destino de exportações brasileiras. Maior produtor e exportador mundial de carne bovina e segundo maior de frangos, o Brasil é também líder nas vendas de carne halal (cuja técnica para abate segue preceitos islâmicos). A informação é de que a exportação para países de maioria islâmica atinge 2 milhões de toneladas/ano, volume com potencial de crescimento estimado em 60% nos próximos anos, de acordo com a mídia. Segundo reportagem publicada o jornal O Estado de S. Paulo de 2 de novembro último, os países árabes “ensaiam também sua entrada no financiamento a investimentos em infraestrutura do País. Produtores de petróleo, eles concentram 40% dos recursos de todos os fundos soberanos do mundo”.

Os regimes podem se ver pressionados pela população local aliada dos palestinos caso mantenham relações com o Brasil na eventual concretização da transferência da Embaixada – uma afronta ao direito à autodeterminação do povo oprimido. A atitude do Egito, logo após as eleições, de adiar visita oficial brasileira ao país árabe sinalizou nessa direção e repercutiu de imediato: Bolsonaro chegou a afirmar na sequência que a transferência da Embaixada “não é uma questão de honra”. Mas, de modo a satisfazer seu eleitorado mais fiel, dias depois usou o twitter para expressar que não desistira de sua pretensão original. Mais recentemente, aconselhado pela ala militar de seu futuro governo de que essa ação teria implicações e precisaria ser feita de forma paulatina, declarou que estabeleceria não uma Embaixada em Jerusalém, mas um escritório de representação. Em sua visita, contudo, Netanyahu deu como certa a mudança em entrevistas que concedeu. Segundo ele, Bolsonaro lhe assegurou que a questão não é “se” será feita, mas “quando”.

Com razão, muitos árabes e palestinos defendem que, ao contrário, o mundo e o Brasil deveriam romper relações econômicas e diplomáticas com o Estado de Israel, por sua natureza racista e ilegítima. Isolar o apartheid é tática importante que a solidariedade internacional precisa fortalecer e consolidar. Ao lado, assim, da resistência heroica, pode contribuir à solução justa que contemple a totalidade dos palestinos: a derrota do projeto colonial sionista e a constituição de um único estado palestino, laico, democrático e não racista, com direitos iguais para todos e todas que queiram viver em paz com os palestinos. Portanto, com o retorno dos milhões de refugiados às terras de onde foram e continuam a ser expulsos, do rio ao mar.

Fica o chamado por uma frente única pró-palestina, para fortalecer as campanhas de solidariedade internacional, sobretudo a de BDS. Significa lutar também contra a exportação de tecnologias militares israelenses. Testadas cotidianamente nos palestinos, convertidos em “cobaias”, essas armas servem tanto à criminalização e repressão de movimentos sociais, sindicais e populares quanto ao genocídio sobretudo de indígenas e negros nas periferias brasileiras. A luta contra a opressão e a exploração é uma só, do Brasil à Palestina!