No dia 21 de setembro, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto que cria a Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos no período entre 1946 e 1988. O projeto provocou inúmeras críticas de diversas entidades de Direitos Humanos, que ressaltam que a Comissão não terá independência do governo nem meios legais e materiais para investigar a fundo os crimes da ditadura.

Por outro lado, setores ligados ao governo se defendem. Um dos seus expoentes nesta área, Nilmário Miranda, ex-ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos no governo Lula, argumenta que “é um equívoco decretar o fracasso antecipado da Comissão da Verdade” e justifica que esta terá, sim, tempo (dois anos), recursos e poderes para realizar seu trabalho. Qual é o verdadeiro problema que está por trás desta polêmica?

O problema de fundo da luta política sobre a Comissão da Verdade é qual o seu objetivo. Ou seja, qual é a função de uma Comissão da Verdade para os setores sociais e as vítimas da ditadura militar, que necessitam resgatar a Memória e conhecer toda a Verdade sobre os crimes que foram cometidos contra eles?

Um processo de apuração dos crimes do regime militar tem vários objetivos: resgatar a memória das vítimas, dar a conhecer as circunstâncias dos crimes, restituir os restos mortais dos assassinados pela ditadura a seus familiares que até hoje tiveram este direito negado etc. No entanto, todo este processo de apuração só tem sentido se tiver como resultado a identificação dos agentes do Estado que cometeram esses crimes, sua responsabilização, julgamento e penalização se confirmados os seus delitos. Este deve ser o objetivo central se quisermos que os criminosos e os setores da classe dominante que os apoiaram, financiaram e orientaram sejam coibidos a não repetir esse tipo de crime.

A luta pela punição dos crimes das ditaduras militares na América Latina
Foi neste sentido que se travou a luta para apurar e punir os crimes dos regimes militares na América Latina. O Brasil é o país mais atrasado no que diz respeito à apuração da Verdade, resgate da Memória e julgamento dos criminosos. Os processos e punições dos genocidas, assassinos e torturadores estão muito mais avançados em outros países de nossa região. Na Argentina, os membros das Juntas militares foram julgados e punidos. Até hoje o genocida general Videla se encontra na prisão. No Peru, o ex-presidente Fujimori também foi condenado e está preso. No Uruguai, o ex-presidente Bordaberry, responsável pelo golpe de 1973, foi sentenciado a 30 anos e morreu em prisão domiciliar. Também no Chile, vários militares acusados de assassinatos e torturas cumprem penas.

Os processos e punições dos genocidas e assassinos foram produto das mobilizações de massas que derrubaram os regimes militares desde o começo da década de 1980. Esses movimentos levaram à conquista de amplas liberdades democráticas em quase todos os países latino-americanos, colocaram em crise, ou na defensiva, as Forças Armadas e os órgãos de repressão e encorajaram os movimentos de Direitos Humanos, as vítimas da repressão e as entidades democráticas, sindicais e populares a exigir a apuração da verdade e justiça. Foi daí que nasceram as Comissões da Verdade.

Os governos burgueses que sucederam às ditaduras tentaram pôr fim às reivindicações de justiça, punição dos responsáveis e reparação às vítimas, por meio de leis como as do Ponto Final na Argentina e outras similares. Mas este esforço reacionário não conseguiu fechar esta ferida nem conseguiu barrar os protestos.

Atualmente, o imperialismo e as burguesias nacionais tentam minimizar os efeitos das vitórias das massas protegendo os órgãos e os agentes da repressão e evitando que sejam punidos. As atuais discussões da Comissão da Verdade e da Lei de Anistia no Brasil estão diretamente relacionadas a este confronto de forças entre as massas e os órgãos de repressão e seus aliados.

A burguesia e os militares tentam proteger os assassinos e torturadores
No Brasil, o processo de anistia e reparação dos perseguidos políticos pela ditadura foi um produto direto da luta contra o regime militar, que culminou na sua derrubada em 1984 com a campanha por eleições diretas para presidente. O ato inicial foi a Lei de Anistia, promulgada em 1979 pelo governo Figueiredo, que permitiu a volta dos exilados, o fim dos processos políticos e, paulatinamente, a libertação dos presos. Mas, ao mesmo tempo, foi uma manobra do regime militar para proteger assassinos, torturadores e os órgãos de repressão, porque anistiava os agentes do Estado que tivessem cometido os chamados “crimes conexos”.

Amparada nesta lei, a burguesia brasileira trata de proteger os que fizeram o seu trabalho sujo, não só para preservar os órgãos de repressão quando forem novamente requeridos para realizar o seu “trabalho”, mas também para não deixar que a “moral da tropa” seja abalada pela punição dos que, afinal de contas, cumpriram ordens, ou seja, aplicaram uma política de Estado. O julgamento interminável do coronel Brilhante Ustra, responsável pelo assassinato sob tortura de Luís Eduardo Merlino no DOI-CODI de São Paulo, é um exemplo claro de que esta ação protetora continua plenamente vigente.

Nessa tarefa, uma das mais importantes armas da burguesia é a decisão reacionária do STF sobre a Lei de 1979, que reafirmou a anistia para os agentes do Estado que cometeram crimes. Apesar de a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA ter se pronunciado, afirmando que esta lei não pode impedir o julgamento de violações de Direitos Humanos por parte de militares e agentes da repressão brasileiros, o governo Dilma defendeu a decisão do STF e continua se recusando a acatar as resoluções da CIDH. O caso mais crítico é a recusa em aceitar a condenação do Estado brasileiro como responsável pelo desaparecimento de 50 militantes da Guerrilha do Araguaia.

Uma Comissão da Verdade “limitada”
Este é o verdadeiro problema da Comissão da Verdade proposta pelo governo e aprovada pela Câmara. Segundo os próprios ministros do governo, ela será, desde o começo, “limitada”, “não visará a Justiça” nem será “punitiva”. Isso ficou claro nas palavras da ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário, ao jornal O Estado de S. Paulo (08/09/2011): “A Comissão da Verdade, entendemos, é um instrumento limitado quanto à questão da Justiça. Não visa a uma atitude de Justiça. Mas a primeira Justiça, e a que é insuperável, é o direito à verdade e à memória.”

Para deixar mais clara a posição do governo, a ministra declarou, sobre a revisão da Lei de Anistia de 1979: “A revisão da Lei de Anistia não está na agenda do governo. E digo mais: se rompêssemos este pacto que foi instituído, em torno do qual já está sendo construído o consenso, não chegaríamos nem à Comissão da Verdade.”

José Genoíno, hoje assessor especial do ministro da Defesa, foi ainda mais categórico sobre o caráter da Comissão da Verdade: “A comissão terá apenas preocupações históricas, de esclarecimento de fatos ocorridos naquele período. Não existem preocupações revanchistas nem punitivas.” (O Estado de S. Paulo, 04/09/2011)

Esse caráter totalmente “limitado” e “atado” da Comissão da Verdade também fica evidente na medida em que sua aprovação no Congresso se dá através de um grande “pacto” entre o governo, o PT, os partidos de direita como o DEM e o PSDB e, principalmente, as Forças Armadas. Obviamente para preservar os militares.

Enfim, a conclusão é clara: as organizações de Direitos Humanos, os sindicatos e entidades populares, assim como todos os setores comprometidos com a verdadeira apuração dos crimes da ditadura militar, estão obrigados a continuar lutando por uma verdadeira Comissão da Verdade, independente do governo, e, principalmente, pelo julgamento e punição dos responsáveis por esses crimes.