Rosenverck Estrela Santos, do PSTU Maranhão, Quilombo Raça e Classe e vocalista do grupo de Rap Gíria Vermelha

 O assassinato de George Floyd fez explodir um conjunto de revoltas negras de costa a costa dos Estados Unidos. Não só isso! Proporcionou levantes raciais e sociais em muitos países da Europa e América. Na Inglaterra derrubaram e destruíram a estátua de um traficante de escravizados, iguais a muitas estátuas de escravistas e assassinos que existem espalhadas pelo território brasileiro, como é o caso das homenagens a Duque de Caxias.

Essas revoltas ganharam apoio e solidariedade de muitos setores e movimentos sociais. Um que ganhou destaque foi o movimento antifascista: os Antifas, principalmente quando o presidente norte-americano – Donald Trump – os chamou de terroristas. Não tardou para a cópia rasurada desse presidente no Brasil – Bolsonaro – replicar essas mesmas alusões em nosso país.

As buscas no Google por antifascismo tiveram um crescimento astronômico. Muitos querendo entender os seus símbolos e o que significava ser antifascista. Mesmo com pouco ou nenhum entendimento, viralizou a campanha antifascista, inclusive, secundarizando em alguns momentos o verdadeiro significado da luta negra norte-americana: o antirracismo. Os movimentos virtuais e as hashtags ampliaram-se de tal forma no Brasil que criaram distorções, como alguns grupos e movimentos que se autodenominam antifascistas, mas que na organização de atos buscam impedir a participação de bandeiras e partidos políticos de esquerda. A falta de entendimento histórico é tão grande que reproduzem a mesma prática do fascismo e das ditaduras militares na América latina que cassavam e proibiam partidos políticos. Não obstante esses setores, o movimento antifascista é importante e fundamental no mundo todo.

Voltando ao centro de nosso texto, as revoltas negras fizeram explodir também uma linda frase atribuída a Ângela Davis segundo o qual: “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Mas, o que é ser antirracista?

Racismo e antirracismo: algumas reflexões

Antirracista significa assumir e condenar a existência do racismo? Significa lutar contra o racismo e exigir igualdade de direitos e oportunidades? Significa ser solidário à causa negra? Assumir que tem privilégios, enquanto pessoas não negras? Antirracismo significa se empoderar? Significa construir o afro-empreendedorismo ou o black Money? É possível ser antirracista sem ser anticapitalista? É possível ser antirracista querendo apenas reformas na sociedade capitalista e adaptar-se a ela como faz o empoderamento negro, o Black Money[1] e o afro-empreendedorismo?

Não queremos negar, inclusive, a importância para a luta antirracista de algumas dessas formas de luta e consciência, todas a seu modo, contribuem para o combate às práticas racistas e desigualdades na sociedade brasileira. No entanto, temos que aprofundar esse debate e ter mais consistência do que significa a luta antirracista, porque senão, ao contrário do que achamos estar fazendo, acabaremos por reforçar e reproduzir as condições que mantém e robustecem o racismo.

Até que ponto essas formas de antirracismo podem ser integradas ao sistema capitalista e, sendo úteis à classe dominante, remediar alguns problemas conjunturais das formações sociais específicas do capital; e, até que ponto elas podem ser importantes no amadurecimento das contradições do Capitalismo e do desenvolvimento da consciência de classe e étnico-racial da população negra?

Em nossa opinião, o movimento negro e a luta antirracista não podem ser caracterizados como uma ação exclusivamente racial, identitária ou política. Os fatores políticos, identitários não podem ser apartados dos determinantes socioeconômicos. Assim, igual à classe e consciência de classe, o racismo e a identidade racial são partes fundamentais da dinâmica histórico-social e devem ser analisados dentro do quadro dos conflitos sociorraciais e seus determinantes complexos.

O racismo, a partir da metodologia marxista, não pode ser caracterizado sem a apreensão de seu dinamismo histórico e conexão estrutural com o modo de produção capitalista.  Isolar o racismo da totalidade complexa do qual faz parte é um erro ideológico, histórico e metodológico. O racismo é econômico, é político, é ideológico, é cultural, é subjetivo, pois faz parte de um todo complexo e interligado empregado para exploração e dominação da população negra. Querer, a título de exemplificação, que o combate ao racismo seja no campo político da identidade e não do econômico; ou no campo econômico desconsiderando o político e a identidade é um equívoco de compreensão da historicidade e realidade social da população negra, pois não percebe que esta se encontra posicionada desigualmente tanto nas relações de produção, como nas relações de consumo; tanto no campo econômico, quanto nas manifestações da superestrutura política, educacional, cultural, jurídica, etc. Portanto, os nexos históricos do racismo, desde a compreensão de sua gênese até as formas específicas conjunturais, são importantes no entendimento da desigualdade da questão negra, bem como das medidas necessárias para sua superação, ou seja: o antirracismo.

Diante dessas reflexões, qual deve ser o objetivo do movimento antirracista? Qual deve ser o objetivo proposto na consigna igualdade racial? Se concordarmos que a igualdade social e a emancipação humana – e seus mecanismos, práticas e ideologias de exploração e opressão como o racismo, o machismo, etc. – passam pela extinção das classes e das condições de desumanização impostas pelo modo de produção capitalista no todo complexo do antagonismo estrutural, como a população negra está localizada no interior dessa antítese?

Sabemos que a população negra não é toda a classe trabalhadora, mas ao mesmo tempo não podemos definir a classe trabalhadora brasileira sem a presença maciça da população negra. Então, como o movimento negro pensa a igualdade social para a população negra? Sabendo localizá-la no interior da classe trabalhadora e, assim sendo, conectando seus objetivos ao conjunto dessa classe ou pensando em propostas policlassistas que desmembram a população negra da classe trabalhadora e a concebem para além das classes? É possível ter igualdade racial e igualdade social no Brasil ou em qualquer parte do mundo, onde as condições raciais são imperativas, demandando propostas e objetivos policlassistas ou supraclassistas e mantendo as condições de desumanização da sociedade capitalista?

Não há dúvidas que a construção da consciência racial, por meio da identidade étnico-racial é uma conquista fundamental e importantíssima num país que nega os referenciais negros. Por outro lado, a política identitária não pode ser um fim em si mesma, sob o risco de apenas “beneficiarem de cargos burocráticos e espaços abertos para os membros qualificados de uma ínfima classe média branqueada” [2]. Durante a administração do PT, por exemplo, não foi difícil observar inúmeros militantes do movimento negro assumindo cargos políticos comissionados e adotando o discurso do governo federal, como também da lógica do mercado para a população negra.

Clóvis Moura introduz em seu brilhante livro – Sociologia do negro brasileiro – uma breve discussão sobre os anseios e desejos da classe média negra brasileira que introjeta valores e objetivos da sociedade burguesa. Relata o caso de um sociólogo negro que num simpósio que ambos participavam declarava a necessidade de preparar a população negra para assumir a direção de multinacionais.

Descrevemos abaixo um texto de Clóvis Moura que consideramos ilustrativo dessa discussão:

Esta falta de perspectiva que impede ver-se a ponte entre o problema negro e os estruturais da sociedade brasileira, isto é, supor-se que o negro, através da cultura poderá dirigir uma multinacional, bem demonstra a alienação sociológica e o raciocínio de quem expôs o problema dessa forma. O problema do negro tem especificidades, particularidades e um nível de problemática muito mais profundo do que o trabalhador branco. Mas, por outro lado, está a ele ligado porque não se poderá resolver o problema negro, a sua discriminação, o preconceito contra ele, finalmente o racismo brasileiro, sem atentarmos que esse racismo não é epifenomênico, mas tem causas econômicas, sociais, históricas e ideológicas que alimentam o seu dinamismo atual. Um negro diretor de uma multinacional é sociologicamente branco. Terá de conservar a discriminação contra o negro na divisão do trabalho interno da empresa, terá de executar suas normas racistas, e, com isto, deixar de pensar como negro explorado e discriminado e reproduzir no seu comportamento empresarial aquilo que um executivo branco também faria. [3]

Se a tarefa da população negra que sofre racismo é destruir as condições que a fazem alvo do racismo, que condições são essas? Em nossa análise, as condições capitalistas de reprodução da desigualdade social estão na base dos mecanismos de reprodução da desigualdade racial. Raça e classe, no Brasil e em diversos países do mundo – como nos Estados Unidos – não podem ser dissociados, sob pena da luta antirracista ser apenas parcial.

Algumas interpretações do antirracismo no Brasil

Como foi pensado o antirracismo por alguns dos intelectuais brasileiros? Antonio Sérgio Guimarães [4], por exemplo, disse que a luta antirracista assumiu quatro diferentes formas no Brasil: as duas primeiras são a crença racialista na existência biológica das raças, e a aceitação das raças sociais como categorias que organizam a estrutura social. Nessas perspectivas não há possibilidade de superação das raças na humanidade, seja biológica ou social e, nesse sentido, o que se pode fazer é melhorar as relações sociais, a cidadania, a igualdade de tratamento e oportunidades de direitos. Em nossa análise, essa postura é defendida por maior parte dos movimentos negros defensores das políticas de promoção da igualdade racial, e, em especial, dos governos que a empreenderam, durante as primeiras décadas do século XXI.

A terceira e quarta formas de luta antirracista provocariam a superação da ideia de raças e, segundo Antônio Guimarães, a terceira, se estrutura em torno da concepção de que é preciso avançar na eliminação do conceito de raça para destruir o racismo. Sendo assim, a educação teria um papel essencial, pois ao serem educadas da não existência de raças, as pessoas mudariam suas ações e percepções racistas.

Essa ideia, em nossa opinião, se baseia em uma compreensão distorcida de educação como salvadora e redentora dos problemas da sociedade. Percebemos que essa compreensão é muito comum no senso médio da sociedade e, também, muito presente na opinião geral que professoras e professores têm sobre o racismo, pois ao conceberem apenas como uma ideologia de discriminação e, por conseguinte, no campo moral, acreditam que com uma educação antirracista seria possível eliminá-lo.

A quarta forma de luta antirracista, na qual se filia o autor que estamos citando, acredita que a superação das classificações raciais pode ocorrer a partir de dois sentidos: o reconhecimento da inexistência de raças biológicas e da denúncia da constante mudança da ideia de raça, pois ela assume diferentes formas ao longo do tempo. Com efeito, diz ele: “precisaremos ainda usar a palavra raça de um modo analítico, para compreender o significado de certas classificações sociais e de certas orientações de ação informadas pela ideia de raça”.

Desta feita, para este autor, o movimento antirracista no país deve – na reelaboração do conceito de raça reconhecer a importância da ideia de raça para legitimar as desigualdades de direitos; reafirmar o caráter inexistente da raça biológica e identificar como a raça determina o perfil e características das classes sociais.

Evidente que todas as formas de antirracismo tiveram ou têm sua importância, mas será que conseguiremos superar a ideia de raça e o racismo a partir dessas quatro formas de luta antirracista que Antônio Guimarães traz à discussão?

Conseguiremos a emancipação e igualdade da população negra, com o fim da desigualdade racial e do racismo, por meio de mais direitos sociais, igualdade de oportunidades e tratamento, mais acesso à educação para povo brasileiro e consequente esclarecimento da não existência do conceito de raças biológicas, bem como a utilização consciente e consequente da ideia de raça social? Será possível a emancipação e igualdade da população negra sem discutir as formas capitalistas de exploração e opressão?

Certa vez, em um debate que estive na Universidade Federal do Maranhão, com uma liderança de uma entidade negra em São Luís, eu problematizava justamente essa ideia da necessidade da luta contra o Capitalismo. Em sua fala essa pessoa retrucou dizendo que o problema do movimento negro não era o Capitalismo, mas o racismo, ou seja, a luta antirracista e, por conseguinte, do movimento negro era uma luta prioritária contra o racismo e o Capitalismo não era preocupação principal. Em outro evento, com outra liderança negra, agora de outro estado, eu ouvi que ele preferia ser “chicoteado” por um negro, do que por um branco. Se era pra ter um branco de ultradireita e fascista no poder, ele preferia que fosse um negro de ultradireita no poder. Que estava cansado de “apanhar” de branco e, se era para “apanhar”, que fosse de um negro no poder. Ou seja, não importa a ideologia, a condição de classe, desde que seja negro.

Neste pensamento, toda a luta antirracista torna-se uma luta não contra as condições materiais e intelectuais que reproduzem o racismo, mas tão somente contra àqueles que difundem ou são privilegiados por ele. Você combate o “agente” do racismo, mas deixa intactas as condições que o sustentam. O antirracismo se torna uma luta subjetiva entre brancos e negros; entre quem pode nos atacar e quem não pode nos atacar. Os pretos no poder podem atacar, explorar, oprimir o conjunto da população negra, mas os brancos estão proibidos. A exploração e a opressão ficam intocadas em suas condições materiais e intelectuais de existência.

Todo mundo se assusta com as ideias proferidas pelo atual presidente da Fundação Palmares. Mas justamente, uma ideia distorcida e parcial de antirracismo produziu um pensamento que todos os brancos são nossos inimigos e todos os pretos são nossos aliados. Retirava-se completamente a condição de classe e a condição racial se tornava – única e exclusivamente – a ideia-força-prática da luta contra o racismo. Mesmo que isso não fosse dito com todas as letras, construiu-se um “senso comum” no qual falar de África e da população negra era quase falar de uma região ou de um povo sem antagonismo de classe e conflitos sociais. Parecia que vivíamos entre nós, uma harmonia social e cordialidade que só racismo eurocêntrico e culturalistas construíram.

Quem não se lembra da Ministra dos Direitos Humanos do governo de Michel Temer – Luislinda Valois – quando disse que esse presidente criminoso representava as mulheres negras do Brasil? Era uma juíza negra empoderada que tinha consciência do racismo e de sua negritude.  Na época, li textos que diziam que a ministra tinha se embranquecido, assumido a ideologia branca e, infelizmente, tinha perdido sua consciência racial. Esses setores que faziam essa análise, apenas sob o prisma racial, não conseguiam entender que Luislinda Valois não tinha perdido consciência racial e identidade negra – como  Sérgio Camargo – mas sim, assumido um lado de classe: o lado da burguesia brasileira (em sua maioria branca, é certo).

Outro autor que escreveu sobre o antirracismo no Brasil – Jacques d’Adesky[5]– afirmou que a luta antirracista não gera explosões raciais em virtude de sete fatores: o primeiro tem a ver com diferentes contextos históricos da luta do movimento negro – os anos 1930 da Frente Negra brasileira; os anos posteriores ao Estado Novo, em 1945, com o Teatro Experimental do negro; e a “apatia relativa” da luta contra o racismo nos anos da Ditadura Militar – que determinaram uma estratégia de mobilização vinculada à negociação e não a luta armada ou conflitos diretos. O segundo fator diz respeito à divisão do movimento negro nos anos 1980 e 1990 que trouxe à discussão as táticas de negociação e luta direta e fizeram o movimento negro se dividir – grosso modo – em dois grupos: a corrente moderada e a corrente radical. Uma querendo negociar com Estados e governos e que foi a corrente vitoriosa do movimento negro, e, outra, não aceitando essas negociações. “A primeira corrente, considerada integracionista, tomou a frente, com o correr dos anos, sobre a corrente radical. […]. É formada, em sua maioria, por intelectuais e militantes próximos dos poderes públicos, conta com o apoio dos principais políticos negros […]”.[6] O terceiro fator, estaria ligado às questões econômicas e sociais; o quarto, a fragilidade de articulações do movimento negro; o quinto fator seria a alienação cultural; o sexto, o ideal de branqueamento; e o sétimo, a democracia racial e a cordialidade das representações do racismo e do antirracismo. Para além de este autor estar correto ou não – tenho muitas críticas – as suas análises trazem uma série de reflexões importantes para se pensar a atuação do movimento antirracista.

Lembrou-me as conclusões de Cornel West[7] nos EUA. Para este autor, depois das conquistas dos direitos civis, nos anos 1960, com a política de ações afirmativas e o projeto de empoderamento negro, gerou-se uma classe média e elite negra norte-americana que se distanciou do conjunto da massa da população negra que passou a ser alvo de toda forma de violência, genocídio e encarceramento. A nova liderança negra estava baseada “em sua capacidade de atuar com intermediária entre o mundo empresarial, os estabelecimentos políticos e os pobres confinados nos guetos”.[8] Nesse sentido, para Cornel West, “a verdadeira crise da liderança negra é que a própria ideia de liderança negra está em crise[9].

Isso nos faz pensar se um dos problemas centrais que faz com que as demandas da população negra e o antirracismo não sejam levadas até as “últimas consequências” não seja justamente o seu problema de direção. Parte do movimento negro e algumas lideranças, em contextos de fôlego e de crescimento da luta negra preferiram o diálogo com o Estado, as classes dominantes e a manutenção da ordem, não obstante a resistência e mobilização da população negra. Isso é ilustrativo na aprovação do Estatuto da Igualdade racial que foi todo desfigurado em um acordo com o partido de direita DEM e outros setores conversadores. Ou mesmo a política de cotas que se transformou de cotas raciais para cotas sociais em manobras de conciliação dentro do parlamento entre governo, setores do movimento negro e grupos conservadores. Apesar de toda sua importância as políticas de cotas foram atacadas por negociações que trazem problemas até hoje como podemos ver nas inúmeras fraudes.

A luta antirracista no Brasil, principalmente no período republicano, assumiu um caráter reformista e de combate às formas revolucionárias. Durante os anos 1990 quando estava me formando em História e tinha os primeiros contatos com o marxismo, inúmeras vezes entrei em debate e ouvi ataques por parte de grupos do movimento negro e professores – como acontece até hoje – ao marxismo e as ideias socialistas. É preciso alertar que eram setores e não todo o conjunto do movimento negro, pois este era um debate muito vivo no interior de nossas organizações. Durante a década de 1990, também, inúmeros professores que se tornaram pós-modernistas transformaram-se em anti-marxistas e anti-socialistas de carteirinha e ajudaram a formar uma geração de profissionais conservadores cujos efeitos sentimos hoje. A própria historiografia sobre a escravidão e as resistências da população negra passou a privilegiar a negociação, em detrimento ao conflito e a rebelião, numa inequívoca adaptação historiográfica às ideias neoliberais em voga.

O antirracismo assumiu a característica reformista, de luta por dentro da ordem capitalista, e por essa razão ainda tem dificuldade em pensar o antirracismo para além da sociedade de classes e raças. Essa é uma das razões também – não a única, é evidente, pois a discussão de raça foi fundamental para a construção de nossa identidade – porque a luta antirracista centrou-se toda da discussão de raça e desconectou-a o máximo que podia da condição de classe, fazendo críticas a todas as teorias e movimentos que buscavam a superação da ordem capitalista, por meio do socialismo. Em sentido contrário, um setor considerável agarrou-se em perspectivas culturalistas, racialistas, empreendedoras que, exclusivamente, buscavam valorizar a herança cultural negra e a identidade étnico-racial como fundamentos centrais, senão únicos, da luta antirracista. O combate ao racismo virou um fim em sim mesmo e não um meio para se atingir uma outra forma de sociabilidade no qual raça, classe, gênero e todas as formas de discriminação, dominação e exploração do ser humano não existissem mais. Dessa forma, exercendo uma ação contínua para eliminar esses fenômenos de hierarquização da história emancipada da humanidade.

Não se está advogando o fim imediato da consciência e identidade racial e da problematização da questão racial como elemento fundamental da luta negra contra a desigualdade. Longe disso! O que estamos afirmando é que esta consciência é fundamental para a luta cujo objetivo final deve ser a eliminação dessa mesma consciência e todas as condições materiais de desigualdade. Isto é, a consciência racial é pré-condição da extinção das condições materiais que a fazem existir, baseadas na exploração e opressão da população negra, enquanto classe trabalhadora.

O que é ser antirracista?

Por essas razões, é possível ser antirracista, sem ser anticapitalista? É possível ser anticapitalista, sem ser antirracista? Para mim, não é possível ser antirracista sendo reformista, aceitando o Capitalismo com fim da história e buscando se adaptar aos seus mecanismos de dominação. Não é possível ser antirracista aceitando o Capitalismo como sociabilidade possível de existência. Acreditar que é possível reformar e humanizar o Capitalismo, no sentido de combater o racismo, empoderando a população negra e criando uma geração de empreendedores afros é desconhecer as origens e formas de reprodução da dominação racial.

Por essa razão, ser antirracista é lutar contra o racismo e, ao mesmo tempo, lutar contra a condição material e intelectual que corrobora na gênese e reprodução do racismo, qual seja: o capitalismo. Isso vale, para o anti-capitalistas e para os socialistas. Acreditar que depois de uma Revolução Socialista, num passe de mágica, o racismo irá se desfazer por conta própria é desconhecer a origem e os mecanismos de reprodução do capitalismo e das formas de sociabilidade baseadas na desigualdade.

A consciência racial e o antirracismo é, portanto, condição fundamental para a destruição do capitalismo e construção de uma humanidade emancipada e em igualdade social. Diversidade, identidade, consciência étnico-racial e consciência de classe, tudo isso é necessário e imprescindível, mas insuficientes se as condições da sociedade permanecerem desiguais.

Não adianta a população negra empoderada, com sua negritude afirmada, se esta mesma população continuar vivendo em condições desumanas socioeconomicamente. Assim como a igualdade social pressupõe o fim das classes e da propriedade privada; a igualdade racial pressupõe o fim das raças e da propriedade privada. Nossa luta não é para a destruição de um poder monocromático branco e colocar em seu lugar um poder monocromático negro ou uma diversidade colorida mantendo-se a desigualdade social para a grande maioria da população brasileira, que é negra.

O projeto antirracista, portanto, é um projeto de igualdade social e emancipação humana. É projeto de sociedade onde as classes e raças não existam enquanto condições e marcadores de desigualdade. Uma sociedade no qual a humanidade plena seja realizada e a verdadeira história humana possa iniciar sem distinções de qualquer espécie: raça, classe, gênero. Por isso, a luta antirracista é tão perigosa para a classe dominante. Por isso que é essa classe busca disputar a direção e o significado de ser antirracista. Quem não entende isso, apesar de dizer o contrário, só está reforçando o poder embranquecido da burguesia brasileira.

Nesse sentido, é fundamental desvelar as determinações de raça, classe e gênero na estruturação das desigualdades sociais e da produção da pobreza. Esta é uma tarefa que cabe a todos os movimentos sociais, pois a unidade da classe trabalhadora deve ser uma unidade concreta que leve em conta as realidades diferenciadas de homens, mulheres, negros e brancos no Brasil. O que a burguesia faz de tudo para esconder, nós devemos escancarar como forma de luta e desestruturação das bases ideológicas do Capitalismo. Fazendo isso, nós conseguiremos unir a exemplo de muitos momentos da história brasileira – como foram os quilombos – os explorados e os oprimidos numa ação conjunta contra o capital e seus instrumentos de dominação.

Recentemente me foi perguntado se eu acreditava realmente que poderia existir um levante negro e social no Brasil. Eu disse que sim! Pois, numa sociedade absolutamente desigual, onde as tensões estão sempre no limite, a qualquer hora a bomba humana de explorados e oprimidos vai explodir. Nessa hora, esteja do lado certo! Parafraseando Trotsky, nós aprendemos o ritmo da história. Sempre soubemos nadar contra a corrente convictos de que ela mudará seu rumo, convictos de que o novo movimento histórico nos conduzirá à vitória!

 

[1] Existe até um movimento estruturado de empresários nessa lógica que busca conectar “empreendedores” e “consumidores negros”, numa lógica neoliberal não disfarçada da ideologia do empreendedorismo, do individualismo e da competição. Cria-se a ilusão aterradora de que “vender coxinha” e se tornar um empregado flexibilizado e sem direitos é ter autonomia e se tornar um empresário. Distorcem, inclusive, o contexto e a frase de Steve Biko: “Negro, você esta por sua própria conta”

[2] MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988, p.10.

O termo – branqueada – não se refere à cor da pele, mas a uma concepção ideológica que se vincula a quem está no poder e em consonância com a manutenção da sociedade de classes.

[3] (MOURA, 1988, p.10)

[4] GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2ª Ed. São Paulo: Editora 34, 2012.

[5]D’ADESKY. Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismo e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

[6] D’ADESKY. Jacques, p.168

[7] Apud CASTELLS, Manuel. O Poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

[8] (CASTELLS, Manuel. p.73)

[9] (Apud CASTELLS, Manuel, p.79)