Conta uma bela lenda judaica que num passado distante toda a humanidade vivia junta e falava a mesma língua. Tendo dominado as técnicas de construção e descoberto seu próprio poder criativo, os homens decidiram construir uma torre tão alta, que seu topo chegaria até o céu e eles veriam o criador. Irritado com a arrogância humana, deus resolveu confundir a língua dos homens, para que a gigantesca construção não prosperasse. Ao não se entenderem mais, os trabalhadores da obra não puderam coordenar seus esforços e a torre acabou desmoronando, fruto do caos instaurado.

A lenda sobre a Torre de Babel tem muito a nos ensinar, mas as lições não são sobre a vaidade humana, o poder de deus ou a origem dos idiomas modernos e sim sobre algo muito mais concreto: o funcionamento de nossa sociedade.

Assim como na Torre de Babel, a humanidade, mesmo sem saber, realiza uma grande obra coletiva e coordena esforços para isso: os carros produzidos no Brasil são vendidos na Argentina, levados até lá em navios fabricados no Japão, mas que pertencem a armadores gregos, que empregam marinheiros filipinos. Não há no mundo um único bem material que não seja fruto dos trabalhos conjugados de milhares de homens e mulheres.

Também como na lenda, a maioria dos participantes dessa imensa obra chamada sociedade “fala a mesma língua”, ou seja, compartilha certas ideias e valores, tem uma mesma “visão de mundo”. Por compartilharem as mesmas ideias, as pessoas acabam tendo também um comportamento parecido. A esses ideias ou conjunto de ideias que moldam o comportamento humano, chamamos ideologias.

Para que servem as ideologias
O papel das ideologias é garantir o funcionando da sociedade. Ora, o que aconteceria, por exemplo, se os trabalhadores ignorassem as leis sobre a propriedade privada e resolvessem tomar para si as fábricas, bancos e latifúndios? Ou se as mulheres se revoltassem contra o machismo e passassem a reagir violentamente em qualquer situação de opressão? Ou se os homossexuais se organizassem para espancar neonazistas na Av. Paulista? É claro que se isso acontecesse, a ordem burguesa entraria em colapso e a sociedade, tal como a conhecemos, desmoronaria sobre si mesma como uma enorme Torre de Babel.

Para que isso não aconteça, para que a dominação capitalista siga seu curso tranquilamente, é necessário que as pessoas aceitem passivamente as condições de exploração e opressão a que são submetidas. Como conseguir isso sem recorrer todo o tempo à violência? Através das ideologias.

Cria-se, assim, a ideologia de que a propriedade privada é sagrada e de que os grandes empresários, banqueiros e usineiros são heróis nacionais; de que as mulheres são propriedade de seus maridos e devem a eles respeito e obediência; de que a homossexualidade é uma doença e por isso, se os homossexuais apanham na rua, é porque algo de errado fizeram.

Assim, aos poucos, com inúmeras pequenas ideias, aparentemente sem conexão entre si, se forma na cabeça dos trabalhadores uma “visão de mundo” que já não corresponde aos seus interesses, mas sim aos interesses dos capitalistas. As ideias que justificam a dominação burguesa tornam-se predominantes em toda a sociedade. Elas são reproduzidas exaustivamente na TV, nas escolas, nas páginas dos jornais, na família, no trabalho, entre colegas. Os trabalhadores, pelo simples fato de viverem em sociedade, absorvem essas ideologias e agem de acordo com elas, mesmo sem perceber. Quando uma ideologia é aceita por todos, ela se torna uma espécie de “linguagem comum”, que todos reconhecem, entendem e reproduzem no seu cotidiano.

Como resultado, explorados e oprimidos passam a fazer uma coisa aparentemente absurda, mas que é a regra em nossa sociedade: começam a agir contra si mesmos, contra seus próprios interesses de classe; começam a defender o inimigo e a combater seus aliados; se dividem. Deste modo, os pais culpam os professores pelo baixo rendimento escolar de seus filhos, a população pobre defende um governo de empresários e banqueiros com medo de perder o bolsa-família, os trabalhadores furam a greve porque se convencem de que lutar não resolve nada.

O que as ideologias escondem
Tomemos algumas ideias bastante simples e amplamente disseminadas em nossa sociedade: “O homem é naturalmente egoísta”, “Sempre vai haver ricos e pobres”, “As mulheres foram feitas para o trabalho doméstico”, “Uma pessoa sempre vai querer passar a perna na outra”, “O preconceito já vem desde o nascimento” etc.

Qual o sentido dessas ideias? Ora, é evidente que todas elas apontam em uma mesma direção: aceitar as coisas tal como são. E como nos convencem disso? Afirmando que tudo o que existe é natural e inevitável, que tentar mudar a realidade é ir “contra a natureza”. Assim, para justificar um mundo de injustiça e sofrimento, as ideologias “naturalizam” a realidade social, ou seja, levam as pessoas a acreditar que a desigualdade, a exploração e a opressão são tão naturais quanto a chuva, o vento ou o movimento das marés. As ideologias escondem o grande segredo da dominação burguesa: o fato de que a sociedade é uma construção humana e que portanto não há nada de “natural” nela; que o mundo em que vivemos é o resultado da cooperação dos indivíduos e justamente por isso pode ser mudado por esses mesmos indivíduos.

A propaganda ideológica
Mas como as ideologias se espalham pela sociedade? Como absorvemos e reproduzimos com tanta facilidade ideias tão absurdas? Se existe democracia, como alguém pode controlar o que eu penso? Para responder a essas perguntas, é preciso entender como funciona a propaganda ideológica.

Todos sabemos o que é propaganda. As Casas Bahia fazem propagandas animadas, com pessoas falando alto e rápido, e com ênfase nos preços. A Nike centra sua propaganda no incrível desempenho dos atletas que usam seus artigos. O Itaú faz propaganda dos benefícios que seus clientes podem ter com esse ou aquele investimento. Em todos esses casos, o propósito é claro e evidente: compre, use, aplique seu dinheiro! Não há nenhuma dificuldade em reconhecer que estamos diante de uma peça de propaganda. Se alguém não gostar, pode mudar de canal ou virar a página da revista.

Já a propaganda ideológica é um pouco mais complicada. Como dissemos, o principal objetivo das ideologias é fazer as pessoas agirem contra si mesmas. Por isso a burguesia não pode dizer abertamente: “aceite a exploração”, “aceite a opressão”, como se dissesse “beba Coca-Cola”. Uma tal propaganda revelaria a dominação ideológica e provocaria ainda mais revolta. Por isso a principal característica da propaganda ideológica é que ela é disfarçada, sutil, encoberta, subliminar.

Quando um artigo sobre uma greve de professores começa falando dos alunos que ficaram sem aula, estamos diante de uma peça de propaganda ideológica. O objetivo não é informar ou esclarecer, mas sim mostrar como as greves prejudicam a população.

O jornalista não dirá isso abertamente, mas todo o texto será montado para deixar provocar no leitor essa sensação. Quando depois do assassinato de Bin Laden pipocam nos programas dominicais reportagens especiais sobre a tropa de elite que matou o líder da Al-Qaeda, estamos diante de propaganda ideológica. Aqui o recado é: os EUA são invencíveis, para eles não há missão impossível, não ousem desafiá-los! Como se sabe, a melhor forma de plantar uma ideia na cabeça de alguém é fazer a pessoa acreditar que chegou sozinha a essa conclusão.

Assim age a burguesia. Ela não diz “a mulher é um objeto”. Ela apenas mostra comerciais de cerveja que têm a mulher como objeto. Quem chega à conclusão de que a mulher é um objeto é o telespectador. Ela não escreve nos jornais “é preciso derrubar a mata ao redor dos rios”. Ela apenas mostra o quanto o agronegócio, que derruba a mata ao redor dos rios, é o “motor de desenvolvimento do país”. Quem chega à conclusão de que a derrubada das matas é um mal necessário é o leitor. Ela não diz “vamos acabar com os direitos trabalhistas”. Ela só diz que nos EUA, o país mais poderoso do planeta, quase não existem direitos trabalhistas. Quem chega à conclusão de que os direitos trabalhistas são um entrave ao desenvolvimento do país é o próprio trabalhador.

Por isso, o fato de uma pessoa ter uma opinião formada sobre um determinado assunto não significa de modo algum que essa ideia seja dela. Noventa e nove porcento das ideias que temos na cabeça foram plantadas sutilmente pela burguesia através da educação, da imprensa, da família, da TV, do cinema, da igreja etc etc etc. A força das ideologias está justamente no fato de que os explorados defendem e reproduzem as ideias dos exploradores, achando que essas ideias são suas.

Ao serem repetidas incansavelmente por toda a sociedade, as ideologias assumem a aparência de uma “verdade absoluta”. Como assim as mulheres são iguais aos homens? Como assim acabar com a exploração? Como assim socialismo? Quando alguém questiona uma ideologia, parece realmente que está “falando outra língua”. Instintivamente, repelimos esse tipo de pessoa e a separamos de nosso convívio. Ou simplesmente a ignoramos. A Torre de Babel não pode ser abalada.

Ideologia da classe operária
Mas se uma ideologia é uma determinada “visão de mundo”, um conjunto de ideias que serve a certos interesses, poderíamos então dizer que a classe trabalhadora tem uma ideologia? A resposta é categórica: sim!

O socialismo científico, formulado na metade do século 19 pelos filósofos alemães Karl Marx e Friedrich Engels (por isso chamado também de marxismo) é a ideologia da classe operária, a ciência de sua libertação. O socialismo científico é um conjunto de ideias que interpretam corretamente o mundo à nossa volta, que revelam as verdadeiras razões da opressão, da desigualdade e da exploração. No entanto, diferentemente das ideologias burguesas, que penetram na mente dos trabalhadores por milhares de meios invisíveis e imperceptíveis, o marxismo não chega às residências pelas antenas de TV, não é ensinado nas escolas, nem cantado em canções de sucesso. Ele precisa ser buscado, descoberto. E é claro, como toda ciência, o marxismo precisa ser estudado.

O operário consciente que deseje entender a fundo o mundo ao seu redor deve começar por desconfiar de todas as ideias que parecem óbvias e naturais porque a maior parte delas não passa, muito provavelmente, de mentiras bem contadas. Em seguida, deve ter, em relação à sociedade, a mesma curiosidade que tem em relação à máquina nova que acaba de chegar na fábrica: deve querer desvendá-la, destrinchá-la, dominá-la. Tendo dominado o marxismo, esse operário interpretará os fatos da realidade com a mesma facilidade que um eletricista experiente interpreta o esquema elétrico de uma garagem residencial, que tem uma lâmpada, um interruptor e uma tomada.

A verdadeira obra humana
As ideologias burguesas não são uma força invencível. Se a classe dominante tivesse tanta confiança em suas ideias, não haveria homens armados de prontidão nos quarteis e batalhões, aguardando as ordens para bater, dispersar e prender.

Karl Marx, o velho filósofo alemão, disse certa vez que quando uma ideia é absorvida pelas massas organizadas, ela adquire força material, ou seja, vira uma arma real.
Quando a crise econômica, política e social colocar em xeque a dominação burguesa; quando a repressão contra os trabalhadores, ao invés de inibi-los, gerar ações ainda mais radicalizadas, a ideia do socialismo penetrará nas grandes massas e balançará a monstruosa obra do capitalismo. Os trabalhadores, ao invés de falar a língua da burguesia, começarão a falar a sua própria língua e se entenderão. A imensa Torre de Babel, erguida sobre as costas dos pobres e perseguidos, e solidificada com o cimento da mentira, desmoronará sobre as cabeças de seus arquitetos incompetentes. E os trabalhadores, livres do entulho da velha construção, começarão a sua própria obra: uma sociedade sem opressão e exploração, o socialismo no mundo inteiro.

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