Governador do Maranhão, Flávio Dino, participa de evento da Polícia Militar
Rosenverck Estrela Santos, do PSTU Maranhão, Quilombo Raça e Classe e vocalista do grupo de Rap Gíria Vermelha

Rosenverck Estela Santos

A população negra e pobre do Brasil tem convivido com a violência de forma substancial. Assim, quando falamos de violência, vem a nossa cabeça, em especial, jovens negros armados cometendo assaltos e homicídios. Essa é a aparência da violência que historicamente foi construída em nosso país. A violência tem cor e tem rosto para a grande maioria da população brasileira. E isso não é por acaso! Em verdade, temos um projeto de nação construído historicamente que, alicerçado no racismo e em outras formas de discriminação, fez com que nossa percepção de violência fosse extremamente limitada e vinculada explicitamente a um indivíduo determinado: o jovem negro.

No entanto, se olharmos mais de perto, pode-se comprovar que a realidade nos mostra outra face. Ao invés de criminosos naturais do Brasil, a juventude negra é que tem sido vítima de um projeto de genocídio histórico que tem impedido toda uma geração de conseguir construir suas experiências de vida. O Estado capitalista brasileiro, em diferentes contextos, tem desenvolvido uma política de extermínio da juventude negra que tem suas raízes na escravidão e que se funda teoricamente com o nascimento da República que associa princípios escravistas remanescentes da Colônia e do Império com o discurso raciológico, capitalista e eugenista do período republicano.

O projeto era embranquecer este país fenotipicamente e isso deveria ser realizado com qualquer arma que se estivesse à mão.  Em 1911, por exemplo, no Congresso Internacional das Raças, o representante brasileiro – João Batista de Lacerda – declarava: “o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (SCHWARCZ, 2011 p.11). A solução referida seria para o atraso e barbárie da sociedade brasileira, marcada pela miscigenação, mas acima de tudo pela presença negra e indígena na sociedade brasileira. Desde o período colonial e imperial que a imagem da população negra já era associada ao crime, a violência e a barbárie (SCHWARCZ, 1987).

A política era precisa e habilmente manobrada para conquistar neutralidade e legitimidade. A equação era e continua simples, mas refinada. Retira-se tudo: educação, saúde, esporte, direitos sociais, trabalho, lazer; depois empurra-se para a marginalidade; retira-lhes a identidade, o nome, a história, as referências, a dignidade e os renomeia: bandidos! Logo após: mata-se, extermina-se, empreende-se o projeto de acabar com o perigo: a juventude negra brasileira. Uma política que tem história e que se renova; que tem múltiplas causas e justificativas; que tem diferentes contextos e territórios. Mas o resultado final é sempre o mesmo: o genocídio negro.

E depois disso tudo, se culpa as vítimas pelo seu extermínio. No passado, porque não queriam trabalhar, porque eram inferiores, bestiais e preguiçosos. No presente, porque são usuários de droga, malandros e traficantes. Como se a fabricação, controle e organização do tráfico de drogas não tivessem origem nos condomínios de luxo, na burguesia brasileira e nos gabinetes com ar condicionado como política social e coletiva bem definida de extermínio e incentivo da guerra interna na periferia.

Desde o nascimento do Capitalismo que convivemos com a violência, porque o Capitalismo é violento. Como disse Marx: “Todos eles, […], lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade para impulsionar artificialmente a transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro” (2013, p.821). Não satisfeito Marx (2013, p.829-830) enfatiza: “Se o dinheiro, […], vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces, o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”.

Essa violência do Estado capitalista que se materializou na escravidão africana, no genocídio indígena, na expulsão de camponeses de suas terras, na exploração brutal do trabalho, da mão-de-obra infantil; se completa em formas de discriminação sofisticadas como o racismo, o machismo e a LGBTfobia, que estruturalmente contribuem  para a exploração, a manutenção da propriedade privada, a opressão e a desigualdade social para a maioria da população mundial, em especial os grupos que são atingidos por essas formas de discriminação e dominação. Ou seja, como política de Estado capitalista a violência é estruturalmente operada para manter a desigualdade, a exploração e a opressão. Entretanto, ela deve ser dissimulada e umas das formas de não percebermos a violência funcional da sociedade capitalista é personificarmos ela no rosto dos jovens negros.

Nesse sentido, criam-se instituições que controlam a violência e tem aparentemente a função de proteger a sociedade contra os bandidos e desajustados sociais, mas que, em verdade, tem a função de proteger a propriedade privada, a burguesia e combater os perigos à sociedade capitalista. O Exército e as Polícias, em especial, têm exercido essa atividade com muita violência. Não à toa, no Brasil, se criou a Guarda Nacional em um dos momentos mais conflituosos de nossa história com a intensificação da formação de quilombos, revoltas indígenas e eclosão de revoltas negras e sociais como a Balaiada, a Cabanagem, a Sabinada, etc. A Força Nacional criada pelo governo do PT foi na mesma direção e serviu para reprimir greves, manifestações e hoje tem sido usada para atacar terras indígenas e Quilombolas.

Não obstante esses aspectos históricos, a Polícia do Brasil, em especial, a Polícia Militar tem servido com verdadeiros batalhões de extermínio oficiais do Estado brasileiro que tem empreendido uma Política de Estado genocida e que tem em seu braço armado o principal responsável. Evidente que a violência também se expressa no desemprego, na falta de habitação, lazer, educação e saúde.

Entretanto, isso evidentemente não causa espanto pra quem vive nas periferias do Brasil e do Maranhão, em destaque, que cotidianamente observam seus jovens sendo vitimados pela ausência completa de políticas pública e direitos sociais. Exceção feita à presença sempre ostensiva dos aparelhos repressivos do Estado como a Polícia que não apenas é uma das principais responsáveis diretas pelo assassinato de milhares de jovens – principalmente negros – como são protagonistas indiretos, junto a outros órgãos do Estado, da guerra interna que vive a periferia e que causa mais mortes e violência. A Sociedade Maranhense dos Direitos Humanos afirmava em 2015 o seguinte:

Chamamos atenção para o balanço inicial das mortes violentas nos 100 primeiros dias do ano na grande São Luís, onde constatou-se a redução de apenas 0,32% das mortes (311 em 2014, caindo para 310 em 2015), uma queda insignificante. Entretanto, no mesmo período, os homicídios decorrentes de intervenção policial subiram 90,9% (de 11 mortes em 2014 para 21 em 2015), o que corrobora as denúncias feitas sobre o aumento da violência policial. (SMDH, 2015, np.)

Por essas razões, é mais do que comprovado que a juventude negra não é a responsável pela violência no Brasil, mas antes um alvo das políticas de violência da burguesia brasileira, desde sua formação. E isso, evidentemente, não é exclusividade dos governos de direita e extrema-direita como podemos comprovar nas inúmeras pesquisas e dados disponíveis sobre a violência no Brasil. Os governos ditos de esquerda, reformistas, de conciliação de classe, também têm desenvolvido políticas de genocídio da juventude negra, isto porque, entre outros fatores, não é possível administrar a violência do Estado capitalista. Ela é estrutural! Senão, vejamos alguns dados referentes ao Estado do Maranhão que envolvem desde os governos assassinos dos Sarneys até o governo de conciliação de classe de Flávio Dino (PCdoB) que, infelizmente, se uniu a todo tipo de bandido histórico da sociedade maranhense.

O Mapa da Violência 2011 – Os Jovens do Brasil – demonstrava, no começo da década, o grau de extermínio porque passa a juventude negra e pobre, moradora das periferias dos centros urbanos, neste país. No Maranhão, o salto do extermínio da juventude pobre e negra foi brutal – mais de 300% de aumento da violência. O que fica explicito no próprio documento em questão: “Observando mais atentamente as Unidades Federadas, ficam evidentes modos de evolução altamente diferenciados, com extremos que vão do Maranhão, Pará ou Ceará, onde os índices decenais se elevam drasticamente”. (WAISELFISZ, 2011, p.24)

Nesse sentido, a capital do Maranhão, São Luís, sai do 23º lugar em 1998 para o 11º em 2008. O número de homicídios na população de 15 a 24 anos por UF e Região no Brasil de 1998/2008 demonstrava que o Maranhão saía de 74 homicídios, em 1998, para 455 homicídios em 2008, ou seja, um aumento alarmante e assustador, principalmente em se tratando da população negra, como dizia o documento:

Efetivamente, de 2002 a 2008, para a População Total:

  • O número de vítimas brancas caiu de 18.852 para 14.650, o que representa uma significativa diferença negativa, da ordem de 22,3%.
  • Já entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou de 26.915 para 32.349, o que equivale a um crescimento de 20,2%. Com isso, a brecha que já existia em 2002 cresceu mais ainda e de forma drástica […]. (WAISELFISZ, 2011, p.57)

Para o ano de 2005, indica que, nesse ano, morrem proporcionalmente 80,7% mais negros do que brancos” (WAISELFISZ, 2011, p.57). Em abril de 2015, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos realizou e publicou pesquisas sobre violência ao jovem negro no Maranhão, intitulada: O extermínio da juventude negra no Maranhão, e destacou que:

  • No quadro geral do Maranhão, temos um amplo predomínio de homens (92,9%), negros e jovens dentre as vitimas de mortes matadas no período 2000-2012. Os negros constituem 76,2% da população maranhense (Censo de 2010), mas representaram 85% das vitimas fatais no período 2000-2012
  • O crescimento da taxa de homicídios do Maranhão (176,6%) foi garantido em grande medida pela expansão das taxas de homicídio da população negra, em especial dos jovens. Na década 2002-2012, o Estado apresentou o 3º maior crescimento do país na taxa de homicídios da população jovem (184,5%), abaixo apenas do Rio Grande do Norte (293,6%) e Bahia (249%).
  • Evidência brutal do genocídio em curso, a taxa de homicídios entre os jovens negros de São Luis do Maranhão alcançou a assombrosa e terrível cifra de 160,1 mortes por cem mil habitantes em 2012, uma taxa comparável a San Pedro Sula (“a cidade mais violenta do mundo”). Em termos proporcionais, para cada jovem branco morto na capital, foram mortos 6,5 jovens negros. (COSTA, 2015, p.3)

Pelos dados do Atlas da Violência, lançado em 2019, percebemos que a juventude brasileira ainda tem sido vítima de uma completa política genocida. “Entre 2016 e 2017, o Brasil experimentou aumento de 6,7% na taxa de homicídios de jovens. Na última década, essa taxa passou de 50,8 por grupo de 100 mil jovens em 2007, para 69,9 por 100 mil em 2017, aumento de 37,5%”. (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019, p.26). Em se tratando da questão racial, este Atlas, comprova a continuidade da desigualdade racial nos números referentes à violência sobre a juventude negra.

Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (definidos aqui como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE, utilizada também pelo SIM), sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos. (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019, p.49).

Na parte do Atlas que trata sobre a violência contra os negros, o Maranhão não é destacado nem como um dos Estados em que a violência aumentou e nem mesmo diminuiu. Mas os dados são os seguintes: em 2007, o número de homicídios de negros (por 100 mil habitantes) era de 962, em 2014 era de 2.179 e, em 2017 era de 1.968. Percebemos que houve uma redução dos homicídios contra os negros, mas é impossível comemorar tais dados, pois a violência e o genocídio continuam altíssimos matando mais do que a maioria das guerras que ocorrem hoje pelo mundo.

Não por acaso, tivemos, desde 2018, inúmeros casos de assassinatos a sangue frio cometidos por agentes oficiais do Estado contra jovens negros no Maranhão. O portal G1 MA de 31/08/2018 em matéria intitulada Assassinatos por policiais crescem 79,4% no Maranhão, traz inúmeros casos de violência policial e demonstra a veracidade da afirmação. Diz a reportagem: “Em 2017, segundo o Fórum de Segurança Pública, 110 pessoas foram mortas no Maranhão pela polícia. Nos últimos quatro anos, o crescimento foi de 79,4%, com 386 mortes”.

Se pensarmos nas décadas anteriores e a ausência de pesquisas sistemáticas, podemos imaginar o quadro dramático de violência a que foi submetida a população negra, em especial sua juventude. O que não se interrompe nos dias atuais, como demonstram as execuções cometidas, nas últimas semanas, por policias contra jovens negros nos bairros do São Cristovão e região da Liberdade, na capital maranhense.

Poderíamos continuar citando milhares de dados e recortes de raça/classe/gênero que só comprovariam o extermínio da juventude negra e pobre. Mas esses dados podem ser visualizados nos próprios documentos disponibilizados por órgãos oficias de segurança – sem nenhuma vergonha na cara – e por órgãos de pesquisa.

Os números a cada ano só comprovam que o projeto de genocídio da juventude negra brasileira está em pleno vigor e não diz respeito apenas aos governos de direita, mas também a governos que se autodenominam de esquerda, com os governos reformistas do PT que foram exímios exterminadores da juventude negra, com a complacência e silêncio – infelizmente – de parte do movimento negro.

Precisamos, portanto, de outro modelo de sociedade e nação, para que os jovens pobres e negros no Brasil possam realmente ter sua juventude conquistada e, assim sendo, não morram muito antes de contribuírem para a construção de uma sociedade igualitária – esse sim o real perigo que assusta a burguesia desde país.

REFERÊNCIAS

ASSASSINATOS POR POLICIAIS CRESCEM 79,4% NO MARANHÃO. In: G1 MA. Disponível em: https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2018/08/31/assassinatos-por-policiais-resce-794-no-maranhao.ghtml acesso em 18.02.2020

ATLAS DA VIOLÊNCIA 2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública (orgs.). Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

COSTA, Wagner Cabral da. O extermínio da juventude negra no Maranhão. São Luís/MA: Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH, 2015.

MARX, Karl. O Capital – livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: CIA das Letras, 2011.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2011: os jovens no Brasil São Paulo: Instituto Sangari; Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2011.