Ultimamente, tem tomado os círculos de esquerda um tema que se transformou em centro de grandes polêmicas entre os fervorosos defensores da justiça social: como é possível existir pobre de direita? Essa questão tem tirado o sono dos vários adeptos do que se convencionou chamar de esquerda, seja ela radical, anticapitalista ou qualquer variante autointitulada de grupos que se entendem defensores daqueles desprotegidos no interior de nossa sociedade. Não à toa, recentemente, um professor de direito da UERJ publicou um texto em sua página pessoal em uma rede social que repercutiu na internet, em blogs e sites da dita esquerda. Responder a essa pergunta passou a ser um dos centros da elaboração que tenta explicar porque os mais pobres passaram a não defender o PT, migrando seu voto para representantes de direita e não para outros representantes do mesmo espectro político, como o PSOL.

Compreendemos, no entanto, que essa pergunta possui em si um conjunto de equívocos e por isso, gastaremos alguns parágrafos para refletir sobre tais problemas, pois acreditamos que trazem consequências importantes para o movimento dos trabalhadores.

Primeiro, é preciso entender que essa pergunta parte de um pressuposto que permeia o imaginário dos defensores dessa esquerda. Para essas pessoas, existe uma associação mecânica entre alguns elementos da realidade, produzindo uma cadeia causal necessária dentro das relações sociais. O que queremos dizer é que essa pergunta parte da compreensão de que há uma inclinação natural entre a posição social das pessoas e suas posições políticas. Ou seja, existe uma natureza humana que se expressa, dentre outros aspectos, no campo político.

Assim, uma pessoa que é pobre, ao não possuir uma vida digna, tende naturalmente a apoiar os representantes do espectro político da esquerda ou do socialismo, entendido aqui como uma forma de sociedade mais justa e igualitária, e uma pessoa rica, que possui bens, tenderia naturalmente a apoiar o espectro político da direita, seja ela mais conservadora ou mais liberal. Como existem mais pessoas pobres que ricas em nossa sociedade, apenas 1% detêm quase toda riqueza, nossa sociedade caminharia naturalmente a uma governo de esquerda ou ao socialismo. Além disso, quem, a princípio, seria contra igualdade social? Moralmente, as pessoas querem uma sociedade melhor e sem mazelas sociais. Todavia, segundo essa interpretação, esse caminho do progresso não se completa porque os detentores do poder econômico não permitem, impedindo que o paraíso do direito na terra se instaure, trazendo igualdade entre os homens. Esses detentores do poder econômico possuem uma inclinação natural ao individualismo e ao egoísmo e, por isso, querem toda a riqueza para si. Logo, querem um governo de direita.

Dentro deste cenário, imaginar uma pessoa pobre indo contra suas inclinações naturais, inclusive de autopreservação, é algo muito difícil, beira, inclusive, a irracionalidade. Por isso, linhas e linhas, textos e textos feitos para explicar porque existe pobre de direita. Não à toa, esse professor do direito e ex-procurador da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao qual nos referimos, tenha gasto tempo tentando responder a essa pergunta.

A resposta mais óbvia à questão, então, seria: incapacidade, não conhecimento, uma educação insuficiente ou qualquer variante que explique o impedimento dessas pessoas, pobres, de terem acesso ao conhecimento. Ou seja, elas não sabem que podem querer um vida melhor, ou se sabem, não entenderam o que seria uma vida melhor. Afinal, é obvio que se entendessem defenderiam os candidatos da esquerda. As boas ideias são as redentoras da humanidade.

Como parte-se de uma relação mecânica entre condições de vida e defesa de alguma expressão ideológica de nossa sociedade, a resposta só poderia centrar-se em entender o que leva as pessoas a romperem com essa lógica. Mas essa relação não existe. Antes de mais nada é preciso dizer que as ideias não surgem do nada. Elas são fruto das relações sociais efetivas e das formas específicas que nossa sociedade toma. Assim, não existe ideia que paira na nuvem e que pode ser acessada por uma mente capaz. Elas refletem as necessidades reais, dos indivíduos reais inseridos em relações reais. E como essas relações reais possuem contradições, progressos e retrocessos, as ideias também irão possuir todas essas características. Por isso Marx jamais atrelou a adesão massiva às ideias comunistas como um pressuposto do comunismo, mas afirmou justamente o contrário:

(…) que tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade. (MARX, 2007, p.42)

O que estamos dizendo é que a forma com que entendemos o mundo ao nosso redor está diretamente relacionada à forma com que nós vivemos e as relações que estabelecemos. E elas só podem ser fruto disso, sejam elas de qualquer natureza: moral, religiosa, política, cultural. Isso porque somos um produto social e como tal toda a nossa forma de ser diz respeito a nossa forma de se relacionar em sociedade. Assim, não existe natureza humana imutável, não existem ideias eternas. A esse respeito Marx diz de Max Stirner, um precursor distante do anarquismo, “que, apesar de sua falta de ideias – por nós constatada com paciência e por ele com ênfase –, permanece dentro do mundo das ideias puras, naturalmente só pode se salvar desse mundo [o mundo real] por meio de um postulado moral” (MARX, 2007, p.231).

As posições políticas são frutos desse processo e estão assentadas nas necessidades mais imediatas das pessoas. E nisso elas são muito concretas. Elas querem garantir, em primeiro lugar, sua própria sobrevivência e buscam os melhores caminhos disponíveis para isso.

E aí reside outro erro da pergunta que investigamos. Ela parte de outro pressuposto, qual seja, que existe uma relação entre o voto dado pelas pessoas a um candidato e o seu posicionamento ideológico na sociedade. Os formuladores dessa pergunta entendem que um bom eleitor é aquele que parte de um determinado sistema de ideias para concretizar sua escolha política no processo eleitoral. E como as pessoas estão escolhendo mal, elas precisam aprender a escolher seu candidato, adquirindo ideias que o ajudem na escolha adequada. O problema é que as escolha políticas não partem de ideias abstratas, elaboradas pelos grandes ideólogos de nossa sociedade. Elas partem das relações concretas. Assim, as pessoas não têm uma elaboração ampla de quais rumos mais gerais a sociedade deve seguir quando votam. E elas não precisam disso. Elas partem de qual será o caminho que lhes garante uma vida melhor, qual será aquele que irá garantir melhorias efetivas em suas vidas. E é por isso que o problema não é falta de instrução ou essa tal de natureza humana imperfeita que impede as boas ideias de se materializarem na realidade.

No último período a população brasileira e, no interior dessa, os mais pobres fizeram uma experiência muito importante com essa dita esquerda. E concretamente, viram que a vida não mudou qualitativamente. Elas continuam sendo exploradas e oprimidas cotidianamente, tendo seus poucos direitos arrancados a cada momento.

As relações sociais fizeram os pobres desse país produzirem ideias, quais seja, de que aquele caminho apresentado pela esquerda, pelo PT, não lhes servia. É preciso outro. Mas o dito campo da esquerda tornou-se um espelho do PT. Então é preciso olhar para outro lugar.

Além disso, ao longo das últimas décadas o PT fez coro com a direita dizendo que essa forma de sociedade era melhor, que esta forma de sociedade poderia garantir uma vida digna para aqueles mais pobres. Esse partido reforçou todas as concepções burguesas de sociedade no imaginário da população mais pobre desse país. E por quê? Pelo voto. Ganhar a população para a saída eleitoral faz parte do jogo. E assim, o que de fundo o PT faz é reforçar, na prática, as ideias liberais. Ainda que perfumadas com cheiro de justiça social.

O que a tal esquerda deveria se preocupar, ao invés de colocar a culpa na população, era desmascarar esse sistema que constrói cotidianamente as mazelas e os desequilíbrios sociais. Era demonstrar para a população mais pobre que existe sim uma saída, a transformação da sociedade. Mas essa esquerda não pode fazer isso. Porque o combate a fundo das ideias de direita é um desvelamento da própria sociedade e ela não quer romper com essa sociedade, ela quer apenas o voto.

Questionar porque um conjunto da população pensa de uma determinada forma sem questionar as bases materiais das quais esse indivíduos partem é parte do equívoco da pergunta colocada. No fundo a pergunta que se quer responder é: por que a maioria da população rompeu com o PT? E não será a natureza humana a chave para responder a essa pergunta, mas a natureza do PT.


Referências

MARX, Karl; ENGELS, FriedrichA Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

Publicado originalmente no blog Teoria e Revolução