Redação

No último dia 13, a polícia civil e penitenciária de Minas Gerais realizou uma “operação padrão” em protesto contra a reforma da Previdência do governo Romeu Zema (NOVO). Assim como o restante do funcionalismo público, os agentes de segurança têm vários direitos ameaçados pelo governo mineiro. A Polícia Militar, embora tenha ficado de fora num primeiro momento da reforma, deve também ser atingida num futuro próximo.

O Portal do PSTU conversou com o Policial Militar “X,” que falou sobre essa mobilização, além das dificuldades enfrentadas pelos agentes de segurança pública no país, e a luta pela desmilitarização das PM’s.

Portal do PSTU: Explique o que desatou esse processo de mobilização em MG

X : Essa luta é decorrente da reforma da Previdência que, depois de aprovada no Congresso Nacional para os servidores federais, chega agora aos estados. O projeto apresentado por Zema inclui a Polícia Civil, penitenciária e os agentes sócio-educativos. Ele retira vários direitos, como o quinquênio, triênio, trintenário, altera a idade para aposentadoria além da alíquota previdenciária. Num primeiro momento, essa reforma não alcança a Polícia Militar, que teve a sua reforma aprovada no Congresso em 2019. Mas num segundo momento, os policiais militares também serão atingidos. Um dos direitos que estão na mira é a paridade entre ativos e inativo. Também está em perigo a promoção que o policial tem ao se aposentar, hoje quando ele sobe uma graduação quando se aposenta. Isso vai ser extinto. Então, esse é o impasse neste momento.

O governo quer impedir uma unidade de todo o funcionalismo público, trabalha mesmo para dividir, e dentro disso entra a questão de postergar as mudanças na PM, que vão vir. Faz isso até porque precisa manter o apoio da PM para reprimir as mobilizações. Por isso, ataca primeiro os professores, os policiais civis e penitenciários, e deixa a PM, que inclusive tem o maior contingente, por último.

Como foi essa operação padrão dos agentes de segurança em Minas Gerais?

É importante entender o que é operação padrão. A operação padrão que a polícia civil e penal fizeram é a forma que os agentes públicos de segurança têm de protestar, e é simplesmente fazer aquilo o que determina a legislação. O problema é que, pela falta de efetivo, somos obrigados a fazer muito além do determina o ordenamento jurídico, se não a máquina não funciona. Por exemplo, se eu vou sair com uma viatura, ela vai ter que ter a documentação em dia, pneus em condições, ou então eu não saio. Então, é uma tática que esses profissionais lançam mão para demonstrar seu descontentamento. Nesse dia 13 houve uma participação significativa dessas categorias, mas isso infelizmente não é divulgado.

Como você vê o sentimento da tropa em relação ao governo?

Vemos uma revolta muito grande, e que aumenta a cada dia. Isso aparece muito nos grupos que a gente faz parte. O pessoal se revolta quando Paulo Guedes, por exemplo, chama servidor de parasita. Ou quando Zema demoniza o funcionalismo. E agora com esses ataques e a reforma da Previdência que ele tenta impor.

Como a pandemia vem afetando a categoria?

Somos um dos setores mais expostos à pandemia, estamos diariamente nas ruas, em contato com a população. Então, na minha companhia especializada, por exemplo, tínhamos 50 operacionais e, no final de julho, já havia 12 contaminados pelo coronavírus. E nada é feito além de afastar esse policial. Tem colega que morreu, outra está em coma. Por isso, uma das reivindicações que o pessoal levanta é por um adicional de insalubridade.

Falando sobre Polícia Militar, explique a diferença de vocês com o restante dos agentes de segurança e do funcionalismo

Por ser uma instituição militar, os que mais padecem são os chamados “praças”, as categorias de base: os soldados, cabos, sargentos, subtenentes. É, por exemplo, expressamente proibido contestar ou criticar atos dos superiores. Se algum praça criticar alguma ação do Estado, está cometendo uma infração e pode ser punido. Os debates, então, ocorrem de forma marginal, até porque existem órgãos de inteligência que nos monitoram. Se eu tiver alguma opinião contrária ao governo ou aos meus superiores, passo a ser monitorado e a sofrer perseguição. O comando vai tentar minar minha influência na tropa, seja através de transferências, ou criando obstáculos, como mudando a jornada de trabalho.

Não podemos ter sindicatos também. O que existem são associações, geralmente de caráter assistencialista. Aliás, aqui em Minas, após a greve de 1997, muita coisa já mudou. Aqui fomos a vanguarda na extinção do regulamento disciplinar do Exército ao qual éramos submetidos. No lugar disso, foi criado o Código de Ética Disciplinar, que garante vários direitos que antes não havia, como o direito ao contraditório, à defesa, etc. Para se ter uma ideia, foi só em 2019 que foi aprovado o Código de Ética Disciplinar às PM’s dos demais estados. O regulamento do Exército ao qual éramos submetidos previa que, se um superior hierárquico tivesse algum tipo de descontentamento com algum subordinado, esse superior poderia simplesmente mandar prender. É outra aberração dentro da PM.

Agora, veja que paradoxo, a PM que tem o dever de fazer cumprir a Constituição não goza dos direitos previstos pela própria Constituição. Esse indivíduo é um sujeito que sequer é um cidadão. Então, o movimento de 1997 foi justamente para acabar com esse RDM. Houve muita resistência da cúpula militar para que esse tipo de mecanismo não fosse alterado, porque acreditavam que essas mudanças fariam com que perdessem o controle das tropas.

Então, é todo um processo histórico que impede a tropa de se organizar, para que não se levantem contra o comando, e contra o comandante em chefe que no caso da PM é o governador. Uma das reivindicações mais importantes, ainda que não resolva o problema da segurança pública, mas que é um passo, é a desmilitarização da PM e a sua desvinculação do Exército. Para se ter uma ideia, a Constituição ainda prevê que as PM’s sejam forças reservas do Exército.

Explica a importância da desmilitarização da PM

Com a desmilitarização, o PM passaria a ter direito de se organizar e a fazer greve, por exemplo. Do meu ponto de vista, a partir do momento em que o policial passa a ter direitos, ele passa a se identificar como trabalhador. O policial se apropria dessa consciência. Hoje, quando ele sai para a rua, ele acredita que não faz parte daquilo.

Tem muitos movimentos populares na própria esquerda que não entendem essa estratégia, não entendem que a grande maioria dos policiais vem do seio da classe trabalhadora. Os praças são em sua grande maioria negros, pobres, que ao final do expediente voltam para suas casas na periferia. O que o impede de se reconhecer como parte dessa classe? A ideologia.

Muitos recorrem à PM em busca de um emprego público, com estabilidade, assim como nas demais carreiras do funcionalismo. Só depois que entra que ele vai absorver aquele conjunto de informações e ideologia. A tal ponto que, quando ele sai para uma greve de professores, às vezes é incapaz de reconhecer a própria mãe ali, a própria professora. Ele se insensibiliza, e sabe que se não acatar uma ordem superior, vai ser punido. É um verdadeiro adestramento que as academias militares fazem com agentes que têm origem na classe trabalhadora, mas que depois não se vêem mais como parte dela.

Poucos países do mundo têm uma polícia militarizada como no Brasil. Nos EUA, por exemplo, você tem a figura do xerife, que é eleito pela população. Os policiais são ajudantes do xerife. Aqui, a polícia é dissociada do conceito de democracia e de Estado democrático de direito.

O que em sua opinião deveria ser feito neste sentido?

A participação popular deveria ser mais efetiva. O povo tinha que saber o que se passa dentro dos quarteis. E o efetivo da Polícia Militar é muito grande, é de fato as forças armadas no país. É de pensarmos se não seria o caso de termos polícias municipais, comunitárias, controladas pela população e integradas em seus bairros, comunidades. Não a guarda municipal militarizada que temos hoje, que é outro equívoco.

Quer dizer, as instituições não podem ser militarizadas. A possibilidade de uma insurgência sempre leva à mais militarização, que foi por exemplo o que o governo Uribe fez na Colômbia na chamada “guerra às drogas” patrocinadas pelo governo norte-americano. Ao final, não se sabia mais o que era Exército ou polícia.

Veja você, uma viatura que vai atender um caso de conflito familiar, por exemplo, geralmente um soldado, cabo ou sargento; ele chega lá e tem autoridade para gerir aquela situação. Isso não tem nada a ver com a função de um soldado, cabo ou sargento das Forças Armadas. Lá eles não podem tomar decisão, eles só obedecem a ordens. Um policial tem que ser capaz de gerir e tomar decisões em situações de crise.

Aí, bem, esse soldado se vê num paradoxo: ele é autoridade na rua, e dentro do quartel não tem nada disso. Ele vive em 2 mundos. E isso vai sendo somatizado, você vê muitos colegas com depressão.

 Como você vê o aumento da violência policial nesse último período?

Temos que lembrar que estamos falando de um dos setores mais atrasados em termos de consciência. E assim como a maioria do povo apoiou Bolsonaro, esperando algum tipo de mudança, isso se reflete na polícia, pois ele é o que mais se coloca entre o poder e as mazelas que esse poder gera. Ele que está nas favelas, nas ruas todos dias. E essa categoria de trabalhador não tem consciência do todo, do porque existe essa violência. Muitos acham realmente que está fazendo o papel ‘do bem’ ao entrar numa favela atrás de um assaltante, um traficante. A maioria não sabe que a violência é gerada por esse sistema. Então, quando um sujeito como Bolsonaro vem com esse discurso de que manifestação tem que ser reprimida, ou de que bandido bom é bandido morto, os caras aceitam.

O fenômeno do bolsonarismo nas tropas é algo recente. Nesses 30 anos que foi político, ele não tinha esse apoio. Tinha lá sua base, mais especificamente nas milícias, nas bandas podres da PM, em setores localizados do Exército. Esse apoio veio na onda de apoio popular, junto a seu discurso ufanista, e tem ainda um fator que é o dos símbolos. O meio militar valoriza muito os signos, não é à toa que as fardas são repletas de insígnias. Então, quando ele faz gestos como, por exemplo, uma continência a uma guarnição, ele sabe que esses signos são importantes e que vai gerar uma identificação.

Muito dessa violência que vemos hoje se dá por conta do discurso populista de Bolsonaro e dos seus asseclas, seus partidários, por parte dos comandantes. Acham que um problema complexo como o da violência se resolve por meio da força. E vimos mesmo muitos companheiros exaltados no início desse governo. Mas a realidade vai se mostrando. E as consequências disso se realçam, e esse discurso vai se desconstruindo, até pelo fato de que a polícia que mais mata é também a que mais morre. E houve uma ilusão de que haveria impunidade para qualquer ato da PM, que o governo prometeu, e não foi isso o que aconteceu. Até porque hoje em dia, com celular e redes sociais fica muito mais difícil. Aqui em Minas Gerais, por exemplo, já vemos uma mudança significativa no comportamento da tropa.

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