Gustavo Machado do canal Orientação Marxista

Gustavo Machado, de Belo Horizonte (MG)

No dia 25 de janeiro, rompeu-se a barragem de rejeitos de minério de ferro pertencente à Vale S.A., no município de Brumadinho, em Minas Gerais. Até o momento em que essas linhas são escritas, já eram contabilizadas 325 pessoas entre mortos e desaparecidos. Já é, de longe, o maior número de mortes em acidentes do trabalho na história do país, além do dano ambiental incalculável. O fato, em si mesmo chocante, poderia passar por mero acidente, por mera fatalidade, não fosse o caso de, três anos antes, outra barragem de rejeitos de grande porte ter se rompido em Mariana. Já diz um ditado popular: um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. E realmente. Este dito “acidente” é apenas a ponta do Iceberg de um longo processo que iremos narrar.

Tudo acontece justamente quando as estatais, as poucas ainda não privatizadas, são o alvo principal do discurso de Jair Bolsonaro (PSL) e de seu “posto Ipiranga” para temas econômicos, Paulo Guedes. As estatais seriam o grande vilão da economia nacional. Ineficientes, aparelhadas por partidos políticos, sua venda seria a solução para o atual déficit no orçamento federal. É inegável que tais críticas tem sua razão de ser. As pessoas estão cansadas de serviços púbicos precários, dos sucessivos escândalos de corrupção no seio das instituições estatais. Mas a segunda tragédia consecutiva em uma empresa privada que, por mais de uma década, foi considerada o modelo perfeito de privatização, não deixa de colocar a pergunta oposta. Em que sentido as empresas privadas são eficientes? Eficientes para quem? E o que é pior. Sendo o Estado responsável pela fiscalização, pela criação de barreiras ambientais e tudo o mais, perguntamos: qual seria a relação entre Estado e iniciativa privada? Quais interesses representam? O caso da Vale S.A. é ilustrativo para discutirmos essa questão.

A ineficiência, no caso da tragédia de Brumadinho, salta aos olhos. As técnicas para monitoramento de barragens já estão consolidadas há décadas. Ainda assim, falharam copiosamente. Não fosse o bastante, já existe tecnologia economicamente viável que permite o tratamento de rejeitos a seco, sem criação de barragens; método que a Vale apenas utiliza, no melhor dos casos, em novas minas, mantendo o arcaísmo das antigas. Além disso, construiu sua sede administrativa e o refeitório dos trabalhadores que atuam na mina logo abaixo da barragem. A situação beira o ridículo no caso dos alarmes, que não foram ativados porque, segundo o presidente da Vale, em todas hipóteses de colapso testadas, a empresa não levou em conta o pior cenário possível: o rompimento abrupto da barragem. Ora, o ABC de qualquer estratégia de segurança é que sempre se começa pelo pior cenário possível. Mas a Vale, com toda sua eficiência, não levou isto em conta.

Toda essa situação aberrante nos faz questionar sobre a conivência do Estado no processo e, de fato, é o que acontece. A Agência Nacional de Mineração (ANM) informou que possui apenas 35 fiscais capacitados para atuar nas 790 barragens de rejeitos de minérios em todo território nacional. Em média, é quase um fiscal por estado. Como isto é possível? Muito simples. O governo federal não fiscaliza diretamente as barragens, mas apenas os laudos produzidos pelas empresas contratadas pelas próprias mineradoras. A falha no mecanismo salta aos olhos. É a Vale quem contrata as empresas que irão fiscalizar a própria Vale. O contrato pode ser rompido se o serviço de fiscalização “não for satisfatório”. É como se a análise do seu imposto de renda fosse atestada, legalmente, por um contador que você mesmo contratou. Até mesmo licenciamento ambiental é realizado a partir de laudos feitos por uma empresa contratada pela parte interessada.

Toda essa terra de ninguém não é por acaso. São as próprias mineradoras quem financiam os governos e parlamentares responsáveis por definir as regras ambientais da mineração. Um caso exemplar foi a aprovação, em 2013, do Novo Código da  Mineração  (PL  0037/2011).  Os relatores do projeto, os deputados Leonardo Quintão  (PMDB-MG) e Gabriel  Guimarães  (PT-MG), receberam, nas eleições de 2014, cerca de 5 milhões e 2,5 milhões de reais respectivamente de doações de campanha. O primeiro teve 42% de seus recursos arrecadados com empresas ligadas à mineração e o segundo 20%. E a lista é muito ampla. Dos 27 deputados que integraram Comissão Especial do Novo Código de Mineração, 20 receberam doações de empresas ligadas à mineração em suas campanhas eleitorais de 2014. Esses deputados integram partidos como o PTB, PT, PSDB, DEM, PP, PSC, PCdoB entre outros. Por vezes, a doação foi maquiada, ou seja, indireta. Feita ao partido e apenas depois repassada ao candidato. Montantes expressivos de doação de mineradoras também podem ser verificadas nas campanhas de Dilma Rousseff (PT) e também de Aécio Neves (PSDB), os dois principais nomes da disputa presidencial aquele ano.

Não é de se espantar, portanto, a existência de situações tão absurdas como aquela de Brumadinho, validadas pelo Novo  Código da  Mineração de Dilma Rousseff. Mas existem outras peças importantes no tabuleiro. Apenas 20 dias após a ruptura da barragem em Mariana, o governo de Minas, Fernando Pimentel do PT, flexibilizou ainda mais as regras de licenciamento ambiental no Estado. Não sem razão, entre fevereiro de 2017 e janeiro de 2019, apenas um projeto minerário foi barrado na câmara técnica do Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam) em 40 avaliações realizadas. Esse licenciamento foi utilizado pela Vale para ampliar a produção em Brumadinho, incluindo a reutilização dos rejeitos da barragem que se rompeu. O argumento de Pimentel foi o de desburocratizar e simplificar os trâmites na mineração. Familiar, não?

Pois bem, este discurso – desburocratizar, facilitar os licenciamentos etc… – foi mil vezes repetido por Jair Bolsonaro em toda sua campanha eleitoral. Segundo ele, em seu discurso no Fórum Econômico Mundial em Davos, “somos o país que mais preserva o meio ambiente”. Ao mesmo tempo, o secretário-geral de privatizações de Bolsonaro, Salim Mattar, afirmou que a “Vale não fez mal a ninguém”. O que vemos é o exato oposto. A quase inexistência de fiscais do governo, segurança controlada pela própria empresa, licenciamentos fáceis, ágeis e sem qualquer critério. Os danos desse processo saltam aos olhos.

As tragédias de Mariana e Brumadinho mostram a olhos vistos quem sofre os danos dessa aliança espúria entre iniciativa privada e seus agentes estatais. A defesa do meio ambiente não tem nada que ver com tomada de posição a favor de animaizinhos e plantinhas, de uma natureza externa e intocável; como que nos fazer acreditar certos ambientalistas. Meio ambiente é onde vivemos, no interior da qual extraímos nossa sobrevivência por meio da atividade de milhões de trabalhadores. Os rejeitos de minério lançados em bacias fundamentais como a do rio Doce e do rio São Francisco atingiram com um só golpe dezenas de milhares de agricultores, pescadores dentre muitas outras atividades delas dependentes. A questão, então, não é homem versus natureza, mas que homens se beneficiam desse processo e que outros homens são condenados ao verem atingidos os meios de seu sustento, seu trabalho, sua vida. A questão não é o fim da mineração, mas que tipo de mineração almejamos, para tender quais interesses.

No caso da Vale a resposta é muito direta. Como sabemos, ela foi privatizada faz 20 anos, por míseros 3 bilhões de dólares. Sim, míseros. Para se ter uma ideia, desde 2000, a Vale teve mais de 86 bilhões de dólares em lucro líquido. O lucro líquido é o que sobra após descontar todas as despesas, tanto produtivas, como financeiras. Desse montante, 41,6 bilhões foram entregues aos acionistas na forma de dividendos. Isto é 13 vezes mais que o valor pelo qual a Vale foi vendida. Mas isto não é tudo.

Justamente quando foi privatizada, em 1997, no governo de Fernando Henrique Cardozo do PSDB, entrou em vigor a Lei Kandir, isentando de imposto a exportação de produtos semielaborados (ou não industrializados). Associado a isso temos os mais baixos índices de royalties de minério do mundo: o CFEM. Os royalties não são impostos, trata-se de uma compensação que as mineradoras pagam pelo minério que elas extraem do subsolo. Para se ter uma ideia, o que o estado de Minas Gerais recebeu de royalties em todos os últimos 15 anos jamais atingiu 0,5% de sua arrecadação anual. Segundo, estudo do Fundo Monetário Internacional (2007), o Brasil foi o país que apresentou a menor parcela do Estado nos benefícios totais relativos a projeto de minério de ferro. Estudo esse que incluiu países como Austrália, Canadá e África do Sul. A exploração da mineração no Brasil é, portanto, para os acionistas e empresários, a verdadeira galinha dos ovos de ouro. Um negócio muito eficiente.

O discurso, portanto, de que a Vale passou a pagar mais recursos ao Estado depois que foi privatizada, esconde que não foi a eficiência do processo produtivo a chave desse processo, mas a verdadeira escalada na demanda internacional do produto na esteira do crescimento Chinês. Logo após ser privatizada, o preço da tonelada bruta de minério de ferro saltou de pouco mais de 30 dólares para quase 200. Esse processo desencadeou uma produção minerária em massa, com recordes de produção sendo quebrados a cada ano, de forma descontrolada. Alguma relação com a situação das barragens de rejeitos? Toda. Com a escalada nos preços todo tipo de fiscalização, licenciamento e demais medidas de segurança são quebradas uma após a outra. Ao mesmo tempo, quando o preço do minério declinou a partir de 2013, cerca de 10 mil trabalhadores foram colocados na rua nos dois anos seguintes, apesar disso, os recordes de produção continuaram a ser quebrados, anos após ano, desde então. Menos trabalhadores, mais produção.

Finalmente, toda essa enorme quantidade de riqueza e produção, extraída sob as custas do suor e da vida de milhares de trabalhadores, jogados na rua na primeira oportunidade, escoam, predominantemente, para fora do país. Com um agravante bastante recente, ocorrida ainda no governo de Michel Temer. Os acionistas estrangeiros passaram não apenas receber a maior parte dos lucros da Vale, o que acontece faz muitos anos, mas também a controlar as decisões da empresa. A situação é a seguinte. As ações da Vale se dividem em ordinárias e preferenciais. Ambas dão acesso por igual aos lucros da empresa, mas somente as ações ordinárias tem poder de voto na assembleia da Vale. As ações preferenciais pertencem, em sua maior parte, a acionistas estrangeiros. Com as ações ordinárias era diferente. O controle acionário da Vale ainda era, indiretamente, feito por instituições estatais. Isto era assim porque as ações ordinárias da Vale pertenciam em sua maior parte a uma empresa chamada VALEPAR, constituída, em sua maior parte, por fundos de pensão e empresas ligadas ao Estado.

Acontece que em 2017 as ações preferenciais da Vale, com anuência da VALEPAR, se transformaram em ordinárias. Com isso, o capital estrangeiro passou a representar 51% das ações ordinárias da empresa. Com essa nova situação, não apenas a riqueza produzida pela Vale escoa para o capital internacional, como são eles que definem o futuro e as medidas tomadas pela empresa. Não sem razão, o atual presidente da Vale, Fabio Schvartsman declarou: “A partir desta noite, a Vale será uma empresa sem controlador. Esse assunto de interferência do governo eu considero resolvido. Esse assunto é página virada. O governo agora, como acionista minoritário, é tão bom, tão correto e tem que ser tratado como qualquer outro acionista.”

Quem controla a Vale, portanto, como diz Fábio Schvartsman, é o mercado, sobretudo o mercado internacional. Nem é preciso perguntar o quão interessado este mercado está no desenvolvimento nacional, no atendimento das necessidades dos trabalhadores brasileiros e na manutenção do ambiente no interior do qual eles produzem e reproduzem as condições de sua sobrevivência. Este mercado está interessado, obviamente, unicamente no montante de dinheiro que irá escoar para suas contas bancárias ao fim de cada ano.

Por tudo isso, vemos que a tragédia foi sim um assassinato, com cumplicidade dos governos federais e estaduais envolvidos em todo o processo desde sua privatização em fins dos anos de 1990. Os diretores da Vale devem sim ser punidos de forma exemplar, mas não é suficiente. Deve-se exigir a suspensão imediata da remessa de lucro da Vale para o pagamento das vítimas e limpeza do meio ambiente, não importa quantos anos sejam necessários para realizar esse processo. Importante lembrar que as vítimas não são apenas aqueles que perderam sua vida em Brumadinho, envolve também todos atingidos pelos rejeitos de minério no curso do córrego do feijão e do rio Paraopeba. Este processo também acentua a necessidade de reestatização da empresa, mas sob novos critérios. A Vale deve ser controlada pelos seus trabalhadores, bem como pelos habitantes das cidades e regiões impactadas pela atividade da mineração.  É isto ou o Brasil continuará a ser usado para alimentar as contas bancárias de um pequeno montante de empresários estrangeiros e, também, usado como descarga dos empreendimentos destes no país.