No dia 27 de outubro, dois adolescentes franceses, descendentes de imigrantes do norte da África, morreram eletrecutados ao se esconderem numa subestação elétrica em Clichy-sous-Bois, na periferia de Paris. As reais circunstâncias das mortes são desconhecidas, mas se sabe que eles estavam fugindo da polícia que os havia parado para exigir documentos de identificação, uma prática que aterroriza cada vez mais aqueles que são marcados pela “ilegalidade” e pelo racismo.

As mortes detonaram uma onda de revoltas como não se via há muito tempo na Europa. Iniciada no distrito de Seine-Saint-Denis, que reúne vários municípios onde a maioria da população é de imigrantes – principalmente mulçumanos e negros originários do Magreb (Marrocos, Argélia, Tunísia, ex-colônias francesas) e de outras partes da África –, a revolta, cuja principal característica é o incêndio de carros e prédios públicos, rapidamente se alastrou por outras partes da França e ameaça estender-se pela Europa.

Tratada pelo governo francês e pela maioria da imprensa mundial como “vandalismo” promovido por gangues de “delinqüentes”, a rebelião, contudo, é de total responsabilidade do atual e dos sucessivos governos franceses – sejam eles “socialistas” ou “conservadores” – que, há décadas, confinam os imigrantes e seus descendentes em verdadeiros guetos.

Opressão e exploração
Em uma declaração dada à página da BBC Brasil, o sociólogo Michel Wieviorka, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, afirmou que “a violência que ocorre atualmente na periferia é a expressão de um certo desespero, de cólera, de raiva e de um sentimento de injustiça”, que faz com que, nesses bairros, a juventude viva “num estado de guerra, que os opõem a um sistema que eles julgam repressivo”. É um sentimento mais do que real e que brota da combinação da opressão (racial e machista) e da exploração capitalista. Longe do “glamour” da capital francesa, as periferias e cidades da Grande Paris são palco de lamentáveis espetáculos. Nelas, o índice de desemprego é de 21% – o dobro da média nacional – chegando a 40% entre os mais jovens.

Segundo um relatório do próprio governo, nesses bairros, “o fato de ser jovem, mulher ou imigrante aumenta o risco de ficar desempregado”. No caso das mulheres imigrantes, por exemplo, a taxa de desemprego sobe para 38%. Conseqüência direta dessa situação, as condições de vida fazem com que essas regiões se assemelhem a bolsões terceiro-mundistas encravados no Primeiro Mundo: os prédios lembram cortiços de concreto, um enorme déficit de serviços básicos, como escolas, hospitais e serviços de assistência social.

São dados oficiais que evidenciam que o racismo é um componente fundamental nessa história. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos, a taxa de desemprego de “franceses” que cursaram a universidade é de apenas 5%, mas, no caso de diplomados originários do Magreb, o índice salta para 26,5%.

Essa situação já explosiva só tem se agravado, ano após ano, com os ataques ao conjunto dos trabalhadores (com as reformas neoliberais que aumentaram o desemprego, a precarização e a privatização de serviços e os ataques generalizados às condições de vida) e, particularmente, às comunidades imigrantes, perseguidas em toda Europa por leis de imigração cada vez mais racistas e discriminatórias, como ficou evidente nos recentes incêndios criminosos que atingiram a moradia de imigrantes em Paris.

A “gentalha” diz não
Logo após as primeiras e justas manifestações contra as mortes, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, literalmente, jogou gasolina no fogo ao se referir aos jovens rebelados utilizando termos como “ralé”, “gentalha”, “gangrena” e “escória”.

A declaração só acirrou o ódio e a revolta da juventude, já que é exatamente por serem tratados como “lixo humano” que os jovens imigrantes e seus descendentes não se vêem como parte de uma sociedade que se apresenta sob o ilusório lema de “igualdade, liberdade e fraternidade”.

Isso, também, explica o fato de eles estarem se voltando contra tudo que representa a terrível situação de opressão e exploração em que vivem: os carros e depósitos que simbolizam o poder de consumo que eles não têm; os edíficios públicos que representam o poder que os massacra; os ginásios e clubes decadentes que lhes recordam a falta de opções de lazer; os “fardados” que os espancam e perseguem cotidianamente e, até mesmo, as escolas, às quais poucos deles tiveram acesso, ou que, no mínimo, não lhes garantem o mínimo de inserção social.

Os carros tornaram-se os alvos preferenciais na rebelião. E o ritmo dos ataques não pára de crescer. Nos últimos dias, as manifestações extrapolaram as fronteiras da periferia de Paris e já atingiram praticamente todas regiões da França. Há registros de ações em importantes cidades como Toulouse, Lyon, Nice, Marselha, Rennes, Nantes, Lille e Rouen, como também na própria capital francesa, onde, na madrugada de domingo, pelo menos três carros foram incendiados.

Os Conflitos devem aumentar
A tendência é de aumento dos confrontos nos próximos dias, principalmente porque o governo, em vez de sinalizar para medidas sociais, está disposto a investir na repressão.

Metidos em uma disputa interna em função das eleições presidenciais de 2007 e pressionados pelo fato de terem transformado o tema da segurança no principal eixo da campanha que os levou ao poder em 2002, diferentes setores do governo Jacques Chirac (que, diga-se de passagem, manteve um absoluto silêncio durante dez dias de manifestações) têm acordo apenas em uma coisa: “A prioridade absoluta é restabelecer a segurança e a ordem pública”.

O primeiro-ministro Dominique Villepin (que pretende disputar as eleições contra Sarkozy) tem sido o principal porta-voz de uma nova máxima, que deverá orientar a atuação do governo francês nos próximos dias: “a segurança é a primeira das liberdades”.

A possibilidade de aumento dos conflitos, até, pode transpor as fronteiras francesas e atingir outros países europeus, como já está ocorrendo na Bélgica e na Alemanha. Em declaração ao jornal Il Sole-24 Ore, o ex-presidente da Comissão Européia, Romano Prodi, afirmou que uma explosão de violência urbana na Itália pode acontecer a qualquer momento, já que os subúrbios do país não só tem uma porcentagem ainda maior de imigrantes ilegais do que a França, como também “estão entre os piores de Europa”.

Declarações semelhantes também pipocaram na imprensa portuguesa, alemã e espanhola, onde o jornal catalão La Vanguardia alertou: “Que ninguém tenha dúvida, as tempestades do outono francês podem ser o prelúdio de um inverno europeu”.

Unificar a luta contra os verdadeiros delinqüentes
Diante da insistência com que a imprensa tem denunciado a “violência” dos atos, há setores, inclusive da esquerda, que estão condicionando seu apoio à luta dos jovens franceses ou até condenando a ação das “gangues”.

Neste sentido, a primeira coisa a se dizer é que, mesmo a existência de possíveis (e prováveis) jovens envolvidos com a marginalidade na atual insurreição, é de completa responsabilidade da elite governante e da patronal. São eles os verdadeiros “bandidos”. São eles que, há décadas, roubam a esperança dos imigrantes e saqueiam suas condições de vida. Como lembrou a moradora de Grigny, são eles em última instância que estão ateando fogo às escolas.

Para que a luta dos jovens possa apontar uma real vitória, é fundamental lembrar que isso só poderá ocorrer se eles buscarem a unidade com outros setores oprimidos e explorados do país. Os imigrantes são parte da mesma classe trabalhadora da França, por isso é necessário apontar para a unidade da classe trabalhadora da França. Como diz o lema dos trabalhadores estrangeiros da Espanha: “Nativa ou estrangeira, a mesma classe trabalhadora”. Fora Sarkozy e Chirac. Fim da marginalização nos guetos. Pelo fim das privatizações e os planos e regulamentos neoliberais da União Européia. Por um plano de obras públicas para dar emprego aos jovens trabalhadores.

É preciso construir um movimento que se volte contra o Estado capitalista-imperialista francês e europeu e todas suas mazelas: seja a opressão e a repressão praticada contra os imigrantes, seja a exploração capitalista que vitima o conjunto da classe trabalhadora.
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