Cartola
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Não há quem desconheça o refrão de Exaltação à Mangueira (“Mangueira teu cenário é uma beleza / Que a natureza criou…”), música criada por Enéas Brites da Silva e Aloísio Augusto da Costa, e imortalizada por Jamelão, em homenagem a uma das mais tradicionais escolas de samba do país. Pois bem, é esta mesma e querida escola de samba que, este ano, está dando um dos piores exemplos dos descaminhos que a cultura popular pode tomar em tempos de capitalismo selvagem.

Muito já foi dito sobre a mercantilização dos festejos carnavalescos e o quanto isto é contraditório com o sentido original da festa. E bem que gostaríamos de não tocar mais neste assunto. Mas o episódio envolvendo a Mangueira, que preferiu trocar a homenagem aos 100 anos de nascimento de seu genial fundador Cartola por um enredo “patrocinável”, é tão escandaloso que não pode passar em brancas nuvens.

Antes de tudo, é bom lembrar que o carnaval, desde suas origens na Grécia Antiga, passando pela Idade Média na Europa até chegar ao Brasil, no século 17 – mesclando-se com as tradições, a musicalidade e a ginga africana – sempre esteve identificado com a celebração da vida, a inversão dos valores sociais e a sátira das posturas dominantes.

Também não é novidade que o sistema capitalista nunca mediu esforços para cooptar, domesticar e utilizar a seu favor tudo que brote espontaneamente da sociedade. Uma realidade, contudo, que, ao invés de ser tomada como “destino inevitável”, deveria servir como motor para a resistência e para a construção de práticas e discursos alternativos ao dominante.

Algo que tem tudo a ver com a história do carnaval e, particularmente, com a das escolas de samba, que nasceram e foram criadas “abrindo caminho” nas ruas com a força dos “capoeiras”, descaracterizando os traços europeus da festa para criar uma expressão tipicamente popular. Uma “tradição” que as megaescolas, infelizmente, têm jogado para debaixo do asfalto da Sapucaí nas últimas décadas.

Com a palavra, os patrocinadores…
O caso da Mangueira – que está longe de estar sozinha nesta história – é exemplar. Ao submeter-se à lógica do Capital e optar por um enredo “patrocinável”, no caso os 100 anos do frevo – desfile para o qual a prefeitura do Recife destinou R$ 3 milhões – a verde-e-rosa não só está cometendo um crime contra a memória de sua velha guarda, como também em relação a sua própria história. Afinal, além do centenário de Cartola, neste ano também se comemoram os 80 anos da escola.

Neste sentido, e antes de provocarmos a ira de nossos amigos pernambucanos, é preciso dizer que o problema não é a homenagem ao frevo, uma manifestação legitimamente popular de um carnaval que, diga-se de passagem, ainda é um dos mais democráticos do país.

A questão é outra. Quem a Mangueira decidiu menosprezar não é nada menos do que o homem que fundou, deu nome e definiu as cores da Escola, além de ser autor de seus mais consagrados sambas. Isso pra não falar de sua inigualável contribuição para a música nacional.

Uma história que, no que se refere à escola, começou em 28 de abril de 1928, quando, juntamente com sambistas como Saturnino Gonçalves, Abelardo da Bolinha e Zé Espinguela, Cartola unificou os blocos que existiam no Morro e fundou a “Estação Primeira”.

Levando uma vida marcada por muitas dificuldades, Cartola sempre teve uma relação “difícil” com o “mercado”, que só lhe deu algum reconhecimento pouco antes de sua morte – no dia 30 de novembro de 1980 –, período em que ele gravou seus únicos quatro discos, apesar de, no decorrer da vida ter composto mais de quinhentas músicas, dentre elas “As Rosas Não Falam”, “Alvorada”, “Nós dois”, “O Mundo é um Moinho” e “O Sol Nascerá”.

Cartola nunca acumulou riquezas. Viveu na simplicidade e em completa dedicação à sua música e sua gente e, acima de tudo, sua Escola.

Espetáculos para as massas
É exatamente esta trajetória que os atuais mandatários da Mangueira decidiram “deixar de lado”.

Como muitas outras escolas, hoje, a Mangueira se move não pelos interesses e preferências de sua comunidade. Se não bastassem as muitas evidências da lavagem de dinheiro do narcotráfico e dos bicheiros que circulam entre as principais escolas do Rio, há uma “nova” figura tão ou mais nefasta do que aqueles que se encontram na bandidagem: o patrocinador.

Depois que, país afora, “sambódromos” foram construídos sob medida para as câmeras de televisão, os carnavalescos e “donos” das escolas tem privilegiado o “espetáculo” em detrimento da festa; o luxo, no lugar da alegria e da rebeldia que marcaram os carnavais do passado.

Essa situação, bem como o grau de controle que os presidentes e diretores têm sobre as escolas, já criaram todo tipo de absurdos. Na Mangueira, no ano passado, houve a vergonhosa cena da cantora mangueirense Beth Carvalho impedida de sair num carro alegórico.

O fato é que na busca do lucro imediato, obtido com a publicidade, o mercado acaba, inevitavelmente, contaminando todo o Carnaval, inclusive os enredos das escolas.

Exemplos disto são os casos da Mocidade Independente e da São Clemente, que levarão às ruas enredos em comemoração à chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808. Para tal, elas receberam R$ 2 milhões do governo do Estado que impôs apenas uma “pequena condição”, nas palavras do vice-presidente da escola, Roberto Gomes: “a única exigência feita foi não falar mal nem entrar com deboche e chacota à família real. De resto, não houve interferência no enredo”. Sem comentários…

No caso da Mangueira, em particular, deixemos que o próprio Cartola mande seu recado, através da maravilhosa letra de “O sol nascerá”: “A sorrir / Eu pretendo levar / A vida / Pois chorando / Eu vi a mocidade / Perdida”.

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