Boa Vista AC 04 05 2018 Refugiados venezuelanos abrigados provisoriamente em Boa Vista.Marcelo Camargo/Agencia Brasil
PSTU-DF

Eduardo Zanata

A situação caótica da Venezuela, mergulhada numa brutal crise econômica e social, desatou uma crise migratória no continente sul-americano. Todos os dias milhares de venezuelanos deixam seu país fugindo da miséria, do desemprego e da fome. Colômbia, Equador e o Brasil são uns dos principais destinos dos imigrantes venezuelanos.

No Brasil, essa é a segunda onda migratória da última década. A primeira onda migratória se deu logo após o terremoto no Haiti em 2010. Esse pequeno país caribenho, que estava sob intervenção das tropas da ONU, lideradas pelo Brasil, viu sua crise social e econômica se agravar consideravelmente após essa tragédia. Milhares de haitianos começaram a buscar o Brasil, viajando de forma clandestina, através de rotas exploradas por “coiotes” e chegavam, na maioria das vezes, com a roupa do corpo. O estado do Acre, principal rota de entrada dos imigrantes haitianos no Brasil, na primeira metade dessa década, passou por situações parecidas com que tem passado o estado de Roraima nesse momento.

O governo Dilma tardou muito em organizar uma política migratória e de acolhida aos imigrantes haitianos, que em vários casos foram levados ao sul do país por empresas e latifundiários e colocados sob regime de trabalho análogo à escravidão. Até hoje milhares de haitianos ainda não tiveram seu pedido de refúgio concedido. Os dados do CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados) mostram que mais de 12 mil haitianos aguardam análise do pedido de refúgio, há processos de 5 anos atrás esperando análise pelo CONARE.

A onda migratória dos haitianos colocou a nu a política de intervenção brasileira no Haiti. O PT, a serviço dos interesses das multinacionais norte-americanas, liderou uma intervenção com objetivos “humanitários” para estabilizar o regime político haitiano e garantir a superexploração dos trabalhadores desse país nas maquiladoras. No momento em que o Haiti mergulhou numa profunda crise social, agravada pelo terremoto, o estado brasileiro, com seus “fins humanitários”, deixou os haitianos jogados a sua própria sorte, levando ao surgimento de uma enorme onda migratória.

A imigração venezuelana
Os dados do próprio governo federal revelam que a política de Temer é negligente com situação dos imigrantes venezuelanos e demonstram a ineficácia da operação acolhida e da política de interiorização. 71 mil venezuelanos aguardam a análise do pedido de refúgio. Somente em 2018 mais de 50 mil venezuelanos pediram refúgio. Em 2016 foram cerca de 3 mil pedidos e em 2017 cerca de 17 mil. Desses pedidos, cerca de 55 mil foram feitos no estado de Roraima e 12 mil no estado do Amazonas. Ao todo cerca de 176 mil venezuelanos entraram no Brasil nos últimos 3 anos, mas somente 85 mil permanecem no país. Um contingente bastante pequeno se considerarmos que a população brasileira supera os 200 milhões de habitantes. Hoje a migração venezuelana representa menos de 1% do contingente de imigrantes do Brasil, que supera a marca de 1,2 milhões de estrangeiros, cuja maioria reside no estado de São Paulo, cerca de 60%.

Por dia, em Roraima, são feitos cerca de 200 a 300 pedidos de refúgio e mais 200 a 300 pedidos de residência provisória somente de imigrantes venezuelanos. Há uma diferença importante sobre esses dois modos de pedido de permanência no Brasil. O pedido de residência provisória, no caso específico dos venezuelanos, foi facilitado pela portaria interministerial nº 9, de 14 de março de 2018, que na prática estendeu os critérios de residência firmados pelos países do MERCOSUL (que ainda não abarcam a Venezuela, apesar de ser um país membro) para os imigrantes venezuelanos. Essa portaria regulamenta um dos dispositivos da lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (lei de imigração) e permite a permanência por 2 anos do imigrante estrangeiro. No entanto, aqueles que entram com pedido de residência provisória estão mais sujeitos a serem “devolvidos” ao seu país de origem. Em teoria, a União não poderia cometer tal arbitrariedade, mas os direitos legais de permanência no Brasil daqueles que pedem residência provisória são mais frágeis do que o refúgio.

O instituto do refúgio por sua vez oferece mais garantias legais contra processos de extradição, mas sua atual regulamentação impõe alguns limites. Por exemplo, aquele que pediu ou teve deferido o seu pedido de refúgio no Brasil, não pode sair do país, pois corre o risco de perder imediatamente a condição de refugiado. Mas o maior empecilho nesse momento para concessão de refúgio é a política deliberada de Temer de dificultar o acesso dos imigrantes venezuelanos a esse procedimento. Atualmente, esperam análise mais de 130 mil pedidos de refúgio, no entanto o CONARE consegue analisar de forma individual entre 200 e 400 por mês. Com esse ritmo os processos tem tardado mais de 2 anos até serem analisados.

A lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997 (estatuto do refugiado) prevê o reconhecimento do refúgio em três ocasiões: I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. O CONARE até hoje não reconheceu o grave processo de violação de direitos humanos na Venezuela, apesar de ter entrado na pauta das reuniões desse comitê e de ser uma reivindicação de órgãos federais como a DPU (Defensoria Pública da União). O reconhecimento de quadro grave de violações de direitos humanos na Venezuela permitiria fazer a concessão de refúgio aos imigrantes venezuelanos prima face, sem a necessidade de entrevista e de forma coletivizada, facilitando o acesso dos imigrantes aos direitos sociais assegurados pela lei de imigração.

A política de Temer é empurrar os imigrantes venezuelanos para entrarem com pedido de residência provisória, que tem o seu processo de análise e concessão muito mais célere do que o refúgio. A insistente recusa em colocar em pauta no CONARE o reconhecimento de quadro grave de violações de direitos humanos na Venezuela e a edição da portaria nº 85 de 21 de junho de 2018 pelo Ministério do Trabalho são parte dessa política. A portaria nº85/2018 do Ministério do Trabalho é um enorme ataque aos direitos trabalhistas dos imigrantes venezuelanos. Essa portaria modifica o processo de emissão de carteira de trabalho, permitindo que somente os refugiados com visto de residência deferido possam obter o documento.

A Superintendência Regional do Trabalho de Roraima (SRT-RR) emitiu 14.311 carteiras de trabalho para os venezuelanos, no período de setembro de 2017 a julho de 2018. Apenas nos meses de janeiro a julho deste ano, a quantidade de emissões chegou a 11.547 carteiras de trabalho, número que supera o montante de documentos emitidos no ano passado para todos os estrangeiros no estado de Roraima. Esses dados revelam que boa parte dos imigrantes venezuelanos estão no país ainda sem carteira de trabalho. Como os pedidos de refúgio tem demorado cerca de 2 anos até serem deferidos, os imigrantes venezuelanos ficam todo esse tempo sem a possibilidade de emprego formal e são empurrados ao trabalho informal, sem direitos trabalhistas e muito mais expostos ao trabalho análogo à escravidão.

Temer empurra os imigrantes venezuelanos a pedirem a residência provisória, pois sob esse instituto fica mais fácil se “livrar dos imigrantes”, que só poderão requerer residência definitiva ao final dos 2 anos de residência provisória, com a condição de que provem que tenham capacidade financeira para se sustentar. Num quadro de desemprego massivo no Brasil e tendo em vista a xenofobia que infelizmente tem ganhado força em alguns setores da sociedade brasileira, provavelmente muitos imigrantes venezuelanos estarão na informalidade ou desempregados e não vão conseguir se adequar aos critérios para conseguir o visto de residência definitivo. Esse movimento do governo Temer de dificultar a concessão do refúgio também visa garantir a criação de um exército industrial de reserva, bastante precarizado, que possa ser usado para chantagear o conjunto da classe trabalhadora, principalmente dos estados de Roraima e Amazonas, a aceitar piores condições de trabalho e de salário.

Operação acolhida e o processo de interiorização
A Operação Acolhida, sob o comando do Exército, iniciada desde março de 2018 pelo governo Temer é extremamente limitada diante do fluxo migratório de venezuelanos. Essa iniciativa é resultado muito mais da necessidade do governo Temer de mostrar “algum serviço”, diante da pressão de órgãos como a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), o MPF (Ministério Público Federal) e a DPU (Defensoria Pública da União) e da própria sociedade, do que de fato de resolver o problema.

Hoje, 13 abrigos estão operando, sendo 2 em Pacaraima (RR) e o resto em Boa Vista (RR). Cada abrigo tem capacidade para 500 pessoas, 5700 estão acolhidos nesses abrigos atualmente. Cerca de 500 membros das Forças Armadas estão alocados para essa operação e, em convênio com a ACNUR e algumas ONG’s, gerenciam esses abrigos que envolvem também outros órgãos governamentais no processo de acolhida. O processo de orientação sobre os direitos e os procedimentos para entrar com pedido de residência ou refúgio no Brasil é praticamente todo feito por ONG’s e pela ACNUR.

Diante de um fluxo migratório diário de cerca de 500 imigrantes, a capacidade da Operação Acolhida é muito insuficiente. Além do mais, como foi registrada pela caravana da CSP-conlutas que visitou Roraima para prestar apoio aos imigrantes venezuelanos, não é incomum casos de humilhações sofridas pelos venezuelanos dentro dos abrigos da operação acolhida.

Outra iniciativa da operação acolhida é o processo de interiorização, que até dezembro de 2018 tinha alcançado somente 3271 imigrantes. Além de ser irrisória, para o tamanho do fluxo migratório, esse tipo de iniciativa serve muito mais para mostrar alguma “ação governamental” do que para resolver o problema.

É preciso encarar os fatos e ter a clareza que a situação da Venezuela não dá sinais de que se resolverá de forma rápida. Isso significa que o fluxo migratório venezuelano tende a aumentar nos próximos anos, podendo inclusive evoluir de forma muito rápida, diante da enorme instabilidade política venezuelana. Boa parte desses imigrantes vai criar laços sociais, com o tempo, e tendem a permanecer no país.

O estado de Roraima, principal porta de entrada para os imigrantes venezuelanos, tem uma população pequena e uma economia pequena e pouco diversificada. Sem um aporte decisivo do governo federal para ampliar a oferta de serviços públicos, desenvolver a economia e melhorar a infraestrutura das cidades de Roraima e do Amazonas para garantir os direitos sociais básicos aos imigrantes venezuelanos, a situação dessa população tende a se agravar.

Milhares de imigrantes venezuelanos vivem nas ruas, trabalham na informalidade muitas vezes por um prato de comida, não tem acesso frequente a banheiros e a insumos básicos para higiene pessoal e sofrem todo tipo de humilhação e de discriminação de cunho xenofóbico e racista, que vem sendo alimentada na população pelos políticos do estado. A exemplo do interventor nomeado por Temer e governador eleito do estado de Roraima Antonio Denarium (PSL), do mesmo partido do presidente eleito Jair Bolsonaro, que já disse publicamente que “os refugiados são a escória do mundo”.

O que esperar do governo Bolsonaro sobre a política migratória?
Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, representam um retrocesso para a tímida política migratória brasileira e tendem a atacar alguns avanços conquistados com a nova lei de imigração. Bolsonaro entre outras barbaridades já disse que pretendia fechar a fronteira do Brasil com a Venezuela, revelou sua intenção de criar um campo de refugiados para os venezuelanos e, assim, exclui-los do convívio e da inserção na sociedade brasileira. Recentemente Ernesto Araújo, o próximo ministro das Relações Exteriores, já adiantou que vai retirar o Brasil do pacto global de migração, que foi aprovado por 163 países membros da ONU na primeira quinzena de dezembro de 2018. E, Antônio Denarium (PSL), governador eleito de Roraima, que se elegeu com um discurso contrário aos imigrantes venezuelanos, já disse que quer impor limite de entrada na fronteira e estabelecer critérios para a entrada de imigrantes e refugiados.

Há essencialmente 3 grandes retrocessos que podem ser operados a depender das medidas que poderão ser adotadas pelo governo Bolsonaro. A primeira é de que a operação acolhida se converta num processo de criação de campo de refugiados. A segunda é que Bolsonaro aplique uma política de extradição e devolução dos imigrantes venezuelanos, que pode ser mais ou menos disfarçada. E a terceira e mais factível é que a frágil e limitada legislação, baseada em portarias ministeriais, que hoje regulam o processo migratório sejam revogadas ou alteradas dificultando as condições de residência e refúgio aos imigrantes venezuelanos e tentando forçá-los a sair do país.

A declaração de Ernesto Araújo de que vai retirar o Brasil do pacto migratório global, obedecendo aos ditames de Trump, que impulsiona o boicote a esse pacto, demostram que a perspectiva de Bolsonaro é de aplicar uma política parecida com a de Trump, que procura criminalizar os imigrantes e organizar uma política de extradição em massa. O pacto migratório global, apesar de ser muito limitado e não passar de uma mera carta de intenções, que nenhum país é obrigado a cumprir, propõe algumas garantias aos imigrantes e refugiados, como por exemplo a impossibilidade da extradição em massa.

Unir a classe trabalhadora brasileira e os imigrantes venezuelanos
Marx e Engels no famoso manifesto comunista respondiam da seguinte forma as acusações de que os comunistas queriam abolir a pátria: “Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem”. A verdade é que os trabalhadores e trabalhadoras venezuelanos que migram para o Brasil são nossos irmãos e irmãs. Sofrem do mesmo mal que os trabalhadores brasileiros sofrem: os baixos salários, a falta de serviços públicos, o racismo, a fome, a violência urbana, o desemprego, etc. E sobretudo tem os mesmos inimigos: os governos burgueses de plantão, as grandes multinacionais e o imperialismo.

Ninguém pode ser livre onde alguém é oprimido e, por esse motivo, a classe trabalhadora brasileira deve buscar a unidade com os imigrantes venezuelanos para enfrentar as tentativas de retirar os direitos dos trabalhadores e refugiados. Bolsonaro é um inimigo dos trabalhadores brasileiros e de todos os povos oprimidos e explorados do mundo, sua política de subserviência ao imperialismo norte-americano, fortalece a ofensiva política e social de Trump contra os trabalhadores de todo o continente americano. É preciso que a luta pelos direitos dos imigrantes seja assumida pelo conjunto do movimento popular e sindical brasileiro. Combater de forma veemente todo tipo de ideologia e prática xenofóbica e racista é uma premissa para conseguir a unidade da classe trabalhadora contra os patrões e os governos burgueses. Como disse Marx e Engels no manifesto: “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”