Em 1795, nos primórdios do capitalismo, surge na Inglaterra a “lei dos pobres”, uma ajuda às famílias mais necessitadas, proporcional ao número de filhos. O dinheiro vinha de uma taxa paga pelos contribuintes cujas posses ultrapassassem um valor determinaO programa Fome Zero do governo federal, que concede auxílio financeiro a famílias de baixa renda, foi um dos principais temas de discussão do segundo turno da campanha eleitoral entre Lula e Geraldo Alckmin. Lula, apostando no medo de perda do auxílio, afirmava que o PSDB acabaria com o programa caso Alckmin fosse eleito, enquanto este jurava que seu partido teria sido o criador do benefício a partir do Projeto de Renda Mínima em 1992, do então prefeito de Campinas, Magalhães Teixeira. Verdade seja dita, durante a gestão de Teixeira o PT o acusava de ter plagiado a proposta de renda mínima do senador petista Eduardo Suplicy.

Por fora dessa guerra por direitos autorais, é um consenso que os cerca de 75% dos votos válidos recebidos por Lula no Nordeste tiveram por base a concessão de minguados R$ 50 a cerca de 4 milhões de famílias em 2004[1], que ajudaram a movimentar a paupérrima economia local com a injeção de R$ 200 milhões. Ainda que, só no Nordeste, três milhões e novecentas mil famílias com insuficiência alimentar não tenham recebido qualquer assistência em 2004, muitos brasileiros acreditam que o Fome Zero, classificado pelo governo como um programa social de transferência de renda, seja um paliativo à miséria reinante, uma filantropia que impede a morte pela fome de milhões de brasileiros.

Mas, para se entender com mais precisão o papel dos programas compensatórios do Banco Mundial, seu criador moderno, é necessário voltar no tempo. Não é possível comparar estes programas com as políticas de emprego massivo que ocorreram na Europa e nos EUA a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, quando foi necessário fazer enormes concessões aos trabalhadores para deter a onda de revoluções operárias. No chamado Estado de bem-estar-social, este tipo de política compensatória era inimaginável. Também não é possível encontrar política semelhante na época entre as duas guerras mundiais, de crise permanente do capital, quando ocorreu a primeira revolução socialista da história na Rússia, em 1917, sucedida por uma repressão sem limites ao movimento de massas pelo imperialismo, com o nazismo, e pelo stalinismo, no interior da URSS, a partir de 1923.

Um retorno ao passado
A matriz econômica do Fome Zero pode ser encontrada no período liberal da economia capitalista, não por acaso padrinho de batismo do neoliberalismo, o chamado capitalismo selvagem do século XVIII. Desde Adam Smith o salário do operário era determinado como o mínimo necessário para sua subsistência e de sua família. Em 1844, Karl Marx, ainda no início de seus estudos de economia, já enxergava isso: “A taxa mais baixa e unicamente necessária para o salário é a subsistência do trabalhador durante o trabalho, e ainda o bastante para que possa sustentar uma família e para que a raça dos trabalhadores não se extinga”[2]. Para o capital, o salário deve ser suficiente para garantir apenas a existência do homem como animal, que reproduz a si próprio enquanto força de trabalho e à sua prole.

Por outro lado, como qualquer outra mercadoria, o preço da força de trabalho (o salário) é regulado pela concorrência. Quando a mão-de-obra operária não era abundante e a vagabundagem era uma reação contra a escravidão do trabalho assalariado, os camponeses eram arrancados à força do campo para trabalhar nas indústrias da cidade. Os governantes do país capitalista mais avançado na época, a Inglaterra, aprovavam leis para açoitar e marcar a ferro os homens que resistiam ao trabalho e para limitar o valor dos salários industriais, impedindo que a concorrência entre os capitalistas pela mão-de-obra elevasse o salário acima do mínimo necessário para a subsistência.

Assim Marx [3] descreve este período: “Outrora – diz ingenuamente um tory – ‘os pobres pediam um salário tão elevado, que era uma ameaça para a indústria e para a riqueza’ .. Foi proibido, sob pena de prisão, pagar um salário mais elevado que o estabelecido legalmente. Porém, incorre em pena mais severa, o que recebe o salário superior ao fixado, do que aquele que o paga”.

A lei dos pobres, ou melhor, a lei dos ricos
No entanto, com a evolução do capitalismo e o aumento da oferta de mãos para trabalhar, as coisas mudaram, obrigando nosso ingênuo tory a exclamar: “Hoje seu salário é tão baixo que ameaça igualmente a indústria e a riqueza, e talvez mais perigosamente ainda que no passado”.

Foi assim que, em 1795, uma legislação de proteção ao trabalhador agrícola é estabelecida no Sul da Inglaterra. O “Speenhamland System” foi introduzido primeiramente na vila de Speen por juízes locais, ao perceberem que “o estado atual dos pobres necessita de mais assistência do que a lei geralmente tem dado a eles”. Tal estado se devia a uma série de más colheitas que reduziram a oferta de trigo, com o conseqüente aumento do preço do pão, o aumento da população e as guerras napoleônicas, que impediam a importação de trigo da Europa.

A “lei dos pobres”, como era conhecida, suplementava os salários de fome então pagos, proporcionalmente ao preço do trigo e ao número de filhos da família. O dinheiro necessário não vinha diretamente do Estado, mas da “taxa dos pobres”, paga pelos contribuintes cujas posses ultrapassassem um valor determinado.

Mas, não nos enganemos com tanta filantropia. O objetivo do Estado era evitar as revoltas da população faminta, e em 1795 o fantasma da Revolução Francesa (1789) rondava toda Europa. Para os proprietários de terras, por sua vez, o sistema era muito vantajoso, pois transferia a todos os contribuintes os gastos com os trabalhadores na entressafra, quando o salário era cortado e os trabalhadores eram mantidos com a suplementação garantida pela lei dos pobres.

Esta dupla vantagem fez com que o sistema se ampliasse a todo o Sul da Inglaterra, pouco industrializado. Assim, o auxílio aos pobres representava muito mais um subsídio da sociedade aos grandes proprietários, que reduziam seus gastos com salários, do que uma transferência de renda do estado aos trabalhadores do campo.

As workhouses – o inferno na Terra
Em 1834, os custos crescentes do “Speenhamland System” levaram uma Comissão Real a proibir qualquer suplementação salarial aos pobres. A prática foi condenada como “o principal mal do atual sistema”, cujos efeitos maléficos eram tão convincentemente expostos pelos comissários de 1834 que “nenhuma doutrina econômica ganhou tanta vigência quanto que a assistência pública era um presente de auxílio aos salários e tendia a reduzi-los”[4]. O que, convenientemente, não deixava de ser verdade.

No lugar do antigo sistema, a Poor Law Amendment Act passou a vigorar, e previa a construção de workhouses – casas de trabalho – para onde os desempregados eram levados e obrigados a trabalhar por 14 horas. A nova lei levou a uma rápida redução dos custos assistenciais na maioria das áreas porque as condições para ajuda tornaram-se deliberadamente mais duras.

As casas de trabalho eram odiadas pelos trabalhadores e a luta contra sua implantação levou a várias revoltas no norte da Inglaterra, sendo uma das causas do surgimento do movimento cartista, e mereceram o seguinte comentário: “É notório que na Inglaterra, onde o domínio da burguesia é o mais extenso, até a beneficência pública assumiu as formas mais nobres e ternas: as workhouses britânicas – hospícios nos quais o excedente da população trabalhadora vegeta às custas da sociedade civil – unem do modo mais refinado a filantropia com a vingança que a burguesia exerce sobre os desgraçados que se vêem na necessidade de recorrer a seu magnânimo bolso. Não só se nutre os pobres diabos com os alimentos mais miseráveis, escassos e insuficientes até para a reprodução física, mas também que sua atividade fica limitada a uma aparência de trabalho, um trabalho improdutivo que obstrui a mente e encolhe o corpo”[5].

O papel que a lei dos pobres cumpria para os fazendeiros no sul, as workhouses deveriam cumprir para a burguesia industrial no norte: criar um exército de reserva que fosse sustentado pelo estado nas épocas de crise e desemprego em alta e que estivesse apto ao trabalho quando a atividade econômica sofresse um crescimento.

De volta ao futuro?
Não surpreende, pois, que muitos aspectos do Fome Zero relembrem a “lei dos pobres” de 1795. É uma justa homenagem do neo-liberalismo ao liberalismo do século XVIII.

A semelhança já está presente em sua definição, onde garante ao ser humano sua existência puramente animal – não morrer de fome – através de uma suplementação salarial: “O Fome Zero é uma estratégia impulsionada pelo governo federal para assegurar o direito humano à alimentação…”[6]

Também está presente no “apoio da sociedade”: “Por meio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, … o governo federal articula políticas sociais com estados e municípios e, com a participação da sociedade…” Assim, os contribuintes, através de impostos, subsidiam a manutenção física dos trabalhadores para que estes estejam sempre em condições de trabalhar por um salário de subsistência quando o crescimento da economia exigir.

E praticamente copia as regras para a concessão de benefícios de acordo com a renda e o número de filhos:

“Os benefícios financeiros estão classificados em dois tipos, de acordo com a composição familiar:
– básico: no valor de R$ 50,00, concedido às famílias com renda mensal de até R$ 60,00 por pessoa, independentemente da composição familiar;
– variável: no valor de R$ 15,00, para cada criança ou adolescente de até 15 anos, no limite financeiro de até R$ 45,00, equivalente a três filhos por família”.

Longe, portanto, de significar uma filantropia ou paliativo à fome por parte do governo Lula, mais longe ainda de ser uma política reformista de distribuição de renda, o Fome Zero inscreve-se nas práticas mais daninhas da burguesia selvagem. O estado suplementa o salário de parcela da classe trabalhadora com dinheiro público, mantendo-os sempre baixos e subsidiando assim a burguesia, em particular os coronéis do Nordeste. Dessa forma os trabalhadores são mantidos minimamente aptos ao trabalho, isto é, não morrem de fome, para serem utilizados na época das vacas gordas da economia, que será sempre a de barrigas magras dos trabalhadores enquanto o sistema capitalista persistir.


NOTAS
[1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Segurança Alimentar 2004, www.ibge.gov.br
[2] Marx, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, Boitempo editorial, p. 24
[3] Marx, Karl, A origem do capital – a acumulação primitiva, Global Editora, p. 66
[4] Michael E. Rose, The allowance system under the new poor law, Economic History Review, Vol. 19, No. 3 (1966)
[5] Marx e Engels, Periodismo Revolucionário, Ediciones Roca, p. 110
[6] www.fomezero.gov.br