Nesse dia 19 de março completam-se sete anos que o Estatuto do Nascituro tramita no Congresso Nacional. Proposto pelos deputados Luis Carlos Bussuma do PV da Bahia (e do PT à época da elaboração do projeto) e Miguel Martini, do PHS de Minas Gerais, o projeto causa polêmica ao instituir direitos civis e penais a embriões, dentro ou fora da barriga da mãe. Sim, é isso mesmo que você leu: dentro ou fora da barriga da mãe! Uma vez que considera como ser humano células fecundadas por processo natural, ou in vitro, mesmo antes da transferência para o útero da mulher.

O projeto de lei em si é uma aberração. Lotado de contradições – a começar pelo fato de outorgar a um ser que nem mesmo pode ser considerada pessoa (pelo simples fato de não ter nascido) a liberdade de reclamar direitos jurídicos e proteção do Estado – a última versão, aprovada em junho do ano passado pela Comissão de Tributação e Finanças da Câmara de Deputados, tenta conciliar o inconciliável, isto é, resguardar o direito das mulheres a recorrer ao aborto nos casos previstos pelo Artigo 128 do Código Penal Brasileiro, a saber, risco de vida para a gestante e gravidez decorrente de violência sexual e “o direito à vida, à saúde, ao desenvolvimento e à integridade física e os demais direitos da personalidade” ao embrião.

Inconciliável porque assegurar ao nascituro a absoluta prioridade no direito à vida significa retirar da gestante o direito de abrir mão da gravidez mesmo quando esta lhe submeta a risco de vida, afinal a prioridade à vida seria do feto e não da mãe. Resguardar o direito da mãe seria abrir mão de dar prioridade ao feto. Contradição maior impossível. Por outro lado, se é vedado ao Estado e aos particulares discriminar o nascituro em razão de sua origem, o aborto de um feto resultante de gravidez por estupro poderia se transformar em delito de discriminação e, portanto não poderia ser praticado sob risco de incorrer ao crime. Mais cristalino que isso só água.

O Estatuto do Nascituro e o aborto
O Estatuto do Nascituro vai na contramão de toda a discussão que tem sido feita hoje em nosso país da necessidade de se ampliar o direito ao aborto. O aborto no Brasil é uma questão de saúde pública. Estima-se em mais de um milhão o número de abortos clandestinos realizados todos os anos, dos quais 200 mil resultam em internação hospitalar. É a quarta principal causa de mortalidade materna em nosso país, sendo que as mulheres pobres são as principais vítimas.

Não se pode simplesmente fechar os olhos para esses números e fingir que não acontece. Essa inversão completa de valores onde a vida do feto vale mais que a vida da mulher, só serve para agravar o problema. O aborto já é crime no Brasil e nem por isso as mulheres deixam de fazê-lo. E não é porque não tenham medo das consequências (que consequências, aliás, poderiam ser mais aterradoras à mulher do que a própria morte), mas pelo simples fato de o Estado não dar condições mínimas para que a maternidade não se transforme numa carga impossível para a mulher carregar.

Bolsa-estupro
Na verdade, o que se pretende com o Estatuto do Nascituro, para além das emendas que sofreu ou ainda possa sofrer, é restringir ainda mais o já limitado direito ao aborto. Toda sua orientação vai nesse sentido: impedir que as mulheres optem pelo aborto, em qualquer situação, mesmo quando vítimas de violência sexual.

Um exemplo disso é o bolsa-estupro, benefício que seria conferido à mulher que, tendo sido vítima de estupro e engravidado, decidir ter o filho. Evidentemente, o auxílio estaria vinculado à comprovação pela mãe de não possuir recursos econômicos suficientes para cuidar da criança e até que o pai seja identificado e se torne responsável pela pensão alimentícia.

Uma vez que a obrigação de manter a criança é do pai estuprador, o auxílio só poderia ser requerido quando a paternidade não puder ser comprovada ou até que se comprove a mesma. Por outro lado, sendo o pai identificado, o vínculo com este tornar-se-ia obrigatório, independentemente da vontade da mãe. Imagine as consequências psicológicas para a mulher e a criança nesse caso. Além disso, ao não determinar exatamente os critérios que dariam direito à mãe requerer o auxílio do Estado, o próprio direito ao benefício se torna duvidoso.

Por exemplo, que critério vai definir que a mãe não tem recursos suficientes para sustentar a criança: a renda da mãe? A renda familiar? A possibilidade de assistência por parte de parentes mesmo quando não residirem no mesmo lar? E se uma mãe que se encontra desempregada, e, portanto, comprovar a falta de recursos, conseguir emprego, mesmo que precário, poderá manter ou terá cortado o benefício?

Em lugar algum do atual projeto de lei essas questões são definidas, o que nos leva a crer, portanto que essa suposta garantia econômica prevista no Estatuto, não tem por objetivo assegurar de fato às mulheres vítimas de violência sexual condições para criar seu filho se assim o desejarem, mas escamotear a cruel imposição que as mulheres sofrerão em prosseguir com uma gravidez resultante de estupro.

E tem mais, como o texto é contraditório, abre brechas para que a mulher seja criminalizada em qualquer circunstância na qual a gestação não se concretize. A simples suspeita de que houve algum tipo de negligência por parte da gestante que tenha contribuído para o feto não nascer, seja ela qual for, pode gerar uma investigação criminal e resultar na condenação desta mulher. Um absurdo completo!

Quando a igualdade jurídica se torna desigualdade de fato
A verdade é que, se aprovado o Estatuto do Nascituro, embriões passarão a ter mais direitos que as mulheres. A suposta igualdade jurídica que é concedida ao feto desconsidera completamente o significado da reprodução para a vida das mulheres, subvertendo a lógica na qual a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos destas, de sua saúde e dignidade, tem como consequência lógica a salvaguarda dos direitos daqueles.

A melhor maneira de proteger o nascituro e seu direito à vida é dar liberdade às mulheres para decidir sobre seu corpo e sexualidade, e garantir todas as condições para que possa exercer a maternidade quando assim o desejar. O que esse projeto de lei propõe é justamente o contrário, restringir ainda mais a autonomia das mulheres quando o assunto é sexualidade e limitar totalmente nosso direito ao aborto.

Além disso, numa incoerência que beira as raias da loucura, o Estatuto se propõe a proteger um ser que nem mesmo nasceu, tratando por criminosa àquela que opta por interromper uma gravidez indesejada decorrente de um dos maiores tipos de violência que uma mulher pode sofrer, o estupro. E silencia-se sobre o principal crime aqui, que é na verdade submeter essa mulher à necessidade de decidir sobre tal interrupção, quando não se encontra em condições psicológicas para prosseguir com a gravidez, muitas vezes indo contra suas próprias convicções morais ou religiosas, pela incompetência do estado em protegê-la e garantir-lhe respeito e uma vida livre da violência.  

É preciso barrar o Estatuto do Nascituro
Como podemos ver, é necessário barrar o Estatuto do Nascituro. Atualmente o projeto está parado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aguardando relator, mas a qualquer momento pode voltar a tramitar. Não podemos correr o risco de que seja aprovado por mais uma comissão, é preciso exigir já seu imediato arquivamento.

Por outro lado, a presidente Dilma Roussef deve se posicionar de forma contundente contra o Estatuto do Nascituro e na defesa do direito ao aborto. Seu silêncio sobre essa ameaça de retrocesso à legislação atual sobre o aborto serve de estímulo à bancada conservadora seguir pleiteando no Congresso reformas no ordenamento jurídico que vão no sentido de impedir o avanço na garantia dos direitos democráticos das mulheres e de outros setores oprimidos da sociedade (o fato de que ainda hoje a homofobia não seja considerada crime é um exemplo disso), e inclusive revendo e retirando direitos há muito conquistados.

Se a presidente de fato está empenhada no seu compromisso de combater a violência contra as mulheres, como assegurou em seu pronunciamento no dia 8 de março, deve fazer valer essas palavras, se mostrando contrária a que esse projeto siga tramitando na Câmara e revendo suas alianças com a bancada conservadora no Congresso Nacional.

Veta Dilma
Por fim, no caso de uma aprovação no Congresso, Dilma deve vetar essa lei infame, não permitindo que seja o seu governo, a impor uma derrota tão grande às mulheres, quando se comprometeu, ainda durante a campanha eleitoral que não alteraria de forma alguma a legislação sobre o aborto no país.

Contra ao Estatuto do Nascituro e o bolsa-estupro! Por seu imediato arquivamento do PL 478/07 pelo Congresso Nacional! Veto de Dilma caso o projeto seja aprovado! 

VEJA o especial de mulheres do Portal do PSTU