Pouquíssimos jornais e analistas do mundo, que neste voltam-se para o Equador, concluem suas análises com uma definição fundamental: a de que o país passa por uma revolução.

Por mais que vários intelectuais da pequena burguesia e analistas das emissoras de TV queiram classificar o levante como uma manifestação “de cidadania”, os fatos ocorridos entre os dias 13 e 20 de abril demonstram que as massas equatorianas e principalmente as da capital, Quito, passaram por cima de todas as instituições do Estado burguês – a Justiça, o Congresso, a Presidência e as Forças Armadas – para exigir !Lucio Fuera! !Que se vayan todos!’.

Os antecedentes
A “panela de pressão” fervia há anos. O mesmo povo que havia tomado o Palácio do Governo, em janeiro de 2000, cansou de esperar pelas mudanças políticas e sociais prometidas pelo governo que se formou como produto da insurreição indígena-popular há cinco anos.

Lucio Gutierrez, em 2003, tomou posse e formou um governo de Frente Popular com o apoio da Confederação Nacional Indígena do Equador (Conaie) e seu partido Pachakutik, do Partido Comunista Marxista Leninista (PCMLE), do Partido Socialista (OS), da Coordenação de Movimentos Sociais (CMS) e da maioria esmagadora dos grupos de esquerda, sindicatos e organizações camponesas e de juventude, inclusive de grupos que se reivindicam revolucionários e que até hoje militam dentro do Pachakutik, como a seção trotsquista do Secretariado Unificado (SU) e também a da União Internacional dos Trabalhadores (UIT).

Como historicamente é característica de um governo de Frente Popular, entre a pressão do capital, o domínio imperialista e as necessidades populares, o governo Lucio optou pelos dois primeiros, dando continuidade a mesma linha do governo que os protestos de janeiro de 2000 haviam deposto. Manteve-se a dolarização, o pagamento da dívida externa, a corrupção, a farra dos cargos no Congresso, nas estatais e nas cortes de Justiça, avançou as negociações do Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos, cortou verbas dos Orçamentos da saúde e da educação, enfim, tudo aquilo o que a inssurreição queria pôr fim, Lucio continuou. Assim, a crise social do país avançou cada vez mais, a migração multiplicou, o desemprego cresceu e a economia estancou.

Setores da esquerda romperam com o governo, mas até hoje não fizeram um balanço profundo desse grave erro, que gerou divisão das organizações sindicais e camponesas, cooptação dos dirigentes e desmoralização da Conaie, dos partidos Comunista e Socialista, do Pachakutik e dos grupos menores que se reivindicam revolucionários. E, até o último momento, o Partido Comunista estava apoiando o governo, só chegando a romper as votações do bloco governista nesta última semana.

As ruas da bela cidade de Quito são cada vez mais marcadas pela migração diária de indígenas que deixam suas cidades, a horas de distância, com suas crianças para se tornarem vendedores ambulantes. Em Guayaquil, a maior cidade do país, o drama social é ainda mais grave com a multiplicação das favelas na periferia e o crescimento da violência.

Além do êxodo para os grandes centros, outro grave problema social do Equador é a migração em massa para o exterior. Hoje, cerca de três milhões de equatorianos, o equivalente a 30% da população está fora do país, e milhares de famílias dependem das remessas do imigrantes para não passar fome, já que há poucas alternativas de trabalho no país. A remessa dos imigrantes equatorianos já representam o segundo item da renda nacional, só perdendo para as receitas da exportação petroleira.

O desemprego é outro grande flagelo e mesmo com o disfarce da migração, ultrapassa os 10% da população ativa.

Outro grande problema nacional é a ausência de uma política para os indígenas que compõem cerca de 60% da população e cuja grande maioria vive no campo dependendo da pequena agricultura. Não há infra-estrutura para estes pequenos camponeses, não há uma política de reforma agrária e nem tampouco crédito agrícola para os pequenos proprietários de terra.

A crise política atual
Depois de dois anos de políticas neoliberais baseadas numa estabilidade macro-econômica sustentada pela dolarização e pela alta do preço do petróleo, desenvolve-se uma forte crise política na superestrutura burguesa, a partir de dezembro de 2004.

A insatisfação popular já pôde ser percebida nas eleições municipais de outubro de 2004 nas quais os grandes perdedores foram o partido do governo, o PSP, e o partido do ex-presidente Bucarán, o PRE, que teve seu mandato cassado por pressão popular e saiu do país levando sacos de dinheiro. Os grandes vencedores foram a Esquerda Democrática, partido burguês de centro, que vence novamente em Quito e ganha na cidade de Cuenca, e o PSC, de direita, que vence novamente em Guayaquil.

Lucio sai desmoralizado do processo eleitoral e sofre acusações de uso da máquina do Estado para favorecer seu partido. A oposição burguesa baseada na vitória eleitoral tenta uma ofensiva para cassar o mandato do coronel tentando abrir um processo de impeachment.

Antes das eleições, há uma comoção nacional com a luta dos aposentados que fazem um mês de ocupações, greves de fome e marchas para aumentar as aposentadorias e impedir a privatização do Instituto Equatoriano de Seguro Social (IESS). Mais da metade dos aposentados equatorianos ganham menos de 50 dólares. A negativa de Lucio em atender as reivindicações resulta na morte de 18 aposentados em um mês de protestos. Depois das eleições também ocorre uma forte greve dos trabalhadores da saúde e dos servidores públicos que saem parcialmente vitoriosas.

Lucio consegue impedir o impeachment com um alto preço, comprando deputados da oposição e prometendo ao PRE que iria permitir a volta de Bucaran de seu exílio no Panamá. De posse de uma nova maioria no Congresso, o governo destituiu os magistrados das Corte Suprema, Constitucional e Eleitoral, antes controladas pelo PSC, do oligarca Febres Cordeiro. O governo também desencadeia uma cobrança intensa das dívidas da família Cordeiro que chegam a mais de 120 milhões de dólares.

A destituição das cortes gera uma grande insastisfação nacional e a nova corte não recebe o reconhecimento devido para funcionar. Há renúncias de magistrados, greves no Judiciário e protestos nas ruas de estudantes de Direito, setores religiosos e da oposição burguesa.

Ocorrem duas grandes marchas, uma dirigida pela Esquerda Democrática e pelo prefeito Paco Moncayo, em Quito, no mês de fevereiro, e outra em Cuenca, no mês de março, dirigida pela igreja progressista, com participação de sindicatos. Até então a direção burguesa somente queria pressionar o governo para uma saída negociada, que levasse a composição de uma nova corte, com a participação dos partidos que foram expulsos dos cargos jurídicos.

A entrada em cena das massas
No mês de abril a crise se agrava. Lucio consegue atrair de vez a ira da população, permitindo o retorno do odiado Bucarán. O prefeito de Quito, Paco Moncayo, e o governador da província de Pichincha, Ramiro Gonzalez, convocam as chamadas Assembléias Populares, órgãos de consulta popular da Capital e da Província. No entanto, as assembléias, convocadas com o objetivo de pressionar as negociações com Lucio e projetar a Esquerda Democrática para as eleições presidenciais, saem do controle de Paco e de Ramiro e aprovam o chamado ao Fora Lucio e Paralisação Geral.

Lucio Gutierrez também envia ao Congresso um projeto chamado Lei Topo, com o qual pretendia privatizar ainda mais o setor petroleiro e elétrico, criminalizar os movimentos sociais e fazer uma reforma das leis trabalhistas. O projeto é rejeitado pelo Congresso, mas vários sindicatos aprovam a paralisação convocada pela assembléia de Quito. Até este momento, se percebe uma presença marginal da Conaie e das centrais sindicais, apenas com declarações e poucas ações.

A paralisação geral do dia 13 de abril sai vitoriosa e consegue a adesão de algumas províncias com bloqueios de estradas e greves de categorias. Acontecem 46 focos de conflitos em todo o país. À noite, quando o governo e a imprensa atacavam a paralisação como fracassada, a rádio La Luna convoca um ‘cacerolaço’ (uma espécie de panelaço), na avenida Shiris, em direção a Corte Suprema. Em questão de horas, multidões da classe média atendem ao chamado do radialista Paco Velazco e por volta das 22h, já haviam cerca de 10 mil pessoas protestando em frente à Corte. E assim se seguiu todas as noites com mais e mais multidões.

No sábado, dia 16 de abril, ocorreu a maior de todas, agora com várias manifestações descentralizadas em toda a cidade. Neste dia já foram cerca de 50 mil protestando e começam a entrar em ação setores mais populares e proletários da periferia. A consigna central já era FORA LUCIO! FORA TODOS! EU TAMBÉM SOU FORAGIDO! (em referência a acusação que fez Lucio contra os manifestantes) AQUELE QUE NÃO PULA É LUCIO! QUITO NÃO AHUEVA (Quito não foge à luta!).

`FotA terça-feira, dia 19, foi o climax das manifestações, já que pela primeira vez a rádio anuncia uma única manifestação para uma única marcha. Todas as ruas da cidade são tomadas por várias marchas de vários setores sociais, que caminham para se unir em frente ao Palácio do Governo. Desta vez, o povo pobre e proletário da periferia comparece em peso e vários sindicatos levam suas bases organizadas. Estima-se que mais de 100 mil pessoas participaram somente em Quito, uma cidade que possui 1,5 milhão de habitantes. Foi a maior de todas as marchas contra Lucio e a noite, madrugada adentro, foi também de enfrentamentos com a polícia em vários pontos nos arredores do Palácio do Governo. Oito mil policiais nas ruas, bombas de gás, asfixiamentos e uma morte de um jornalista chileno.

A quarta-feira da insurreição
Na quarta pela manhã as massas já não esperam pela convocatória da rádio e saem como podem para protestar. Agora já saem a bloquear as estradas, todas as principais universidades, escolas, Banco Central, Petroecuador, Empresa Elétrica e nos bairros. A reação foi mais forte quando se noticiou que estavam chegando a Quito bandos armados em ônibus para defender o governo. Em vários pontos da cidade houve enfrentamentos armados destes bandos contra a população que os enfrentava como podia, com paus e pedras. Os estudantes da Politécnica Nacional tomaram um ônibus dos bandos à força e os fizeram fugir.

O Ministério de Bem Estar Social, do ministro Vargas, ex-presidente da Conaie, transformou-se no quartel-general da reação do presidente Lucio Gutierrez. Vários tiros foram disparados das janelas do Ministério contra os manifestantes das ruas. Mais tarde, os ativistas conseguiram atear fogo no edifício e deter os responsáveis.

Em poucas horas de enfrentamentos diretos dos manifestantes contra os bandos armados e também contra setores do exército que reprimiam vários protestos, as massas auto-organizadas saíram vitoriosas. Vejamos os principais acontecimentos:

Às 9h45, os deputados abandonam o Congresso e se mudam para outro prédio, chamado Ciespal, longe do Centro de Quito. Às 11h, o Comandante da Polícia Nacional renuncia ao cargo. Às 12h40 forma-se uma nova maioria no Congresso, que destitui o Presidente do Congresso. Vinte minutos depois, os deputados destituem Lucio Gutierrez. 13h35. as Forças Armadas retiram o apoio ao Presidente. Às 13h40 o Exército deixa livre a Praça do Governo. 13h57, Lucio foge do Palácio em um helicóptero. Às 14h15, o Congresso dá posse ao vice, Alfredo Palácio. Às 14h43, manifestantes tomam o aeroporto e impedem a fuga de Lucio.
Às 16h48, manifestantes invadem a Ciespal, atacam os deputados e impedem Palacios de sair.
19h40 Palacios consegue sair da CIESPAL com ajuda da Radio Luna, que apoia sua posse. Noi fim do dia, às 20h, a Embaixada do Brasil confirmou que havia concedido asilo político a Lucio.

Conclusões
No Equador e mais precisamente em Quito acontece uma revolução, desta vez de caráter urbano e popular. Não há confiança em nenhuma instituição burguesa, somente nas ações diretas do povo. O movimento indígena estava praticamente ausente da luta devido a sua desmoralização por ter participado do governo Lucio, o mesmo passa com os tradicionais partidos de esquerda, PCMLE-MPD, Pachakutik e PS, sem falar dos demais partidos burgueses. Alguns sindicatos começaram a reagir a partir da terça-feira.

O povo identifica todos os políticos e partidos como “farinha do mesmo saco”. São todos iguais perante os olhos das massas revoltadas e por isso o Congresso não inspira nenhuma confiança. Alguns deputados renunciaram para não sofrer as represálias populares, daí a consigna do FORA TODOS que ainda está nas ruas.

O governo de Palácios não goza de nenhum apoio popular, somente tomou posse porque a Rádio La Luna chamou a ordem constitucional e a defesa da posse do vice. Já há setores populares tentando organizar Assembléias Populares, mas ainda são minoritários. Por outro lado, a grande maioria está esperando as primeiras medidas de Palácios, para saber como reagir.

Para que a revolução ultrapasse sua primeira etapa política, em direção a uma revolução social e econômica, é fundamental o desenvolvimento de órgãos de poder alternativos às instituições do Estado burguês. Com uma completa negação ao poder burguês, o que falta é o poder alternativo. Somente um poder popular pode fazer avançar a revolução, fazer o Equador sair das negociações do TLC e romper com o imperialismo, não pagar a dívida, expropriar as empresas estrangeiras e os grandes monopólios privados, fazer a reforma agrária e desenvolver um plano de obras públicas para as necessidades emergenciais da população trabalhadora, pobre e camponesa do país.

A proposta das ASSEMBLÉIAS POPULARES ainda é bastante embrionária, mas é o único caminho que pode se desenvolver em direção a um poder popular alternativo. Junto a isso, é necessário chamar NENHUMA CONFIANÇA EM PALACIOS! QUE PALACIOS DISSOLVA O CONGRESSO E ENTREGUE O PODER AO POVO !