Por João Paulo da Silva, de Natal (RN)

 

Na fictícia cidade brasileira de Santa Cruz, Miguel (Kiko Pissolato) é um agente especial altamente treinado que se esforça para colocar corruptos na cadeia. Entretanto, sua dedicação esbarra na falência e na cumplicidade das instituições, que também são partes integrantes do sistema de corrupção. Após sofrer um grave trauma familiar e motivado pela dor e pela vingança, ele decide fazer justiça com as próprias mãos, tendo como alvos o governador Sandro Correa (Eduardo Moscovis), a ministra Marta Regina (Marília Gabriela) e outros políticos e empresários. Assim nasce O Doutrinador, uma espécie de anti-herói que persegue e mata corruptos identificados pelo justiceiro como os responsáveis por todos os problemas do Brasil.

O longa, que chegou aos cinemas no início de novembro, é dirigido por Gustavo Bonafé e se baseia nas HQs do personagem criado em 2008 pelo quadrinista carioca Luciano Cunha, que também é um dos roteiristas. De certa forma, o filme e o protagonista refletem a insatisfação das pessoas com a corrupção no país e usam o entretenimento para propor um debate político sobre o tema, embora o diretor negue que a história tenha essa pretensão.

Mesmo tendo buscado não partidarizar o filme, a direção apresenta situações que sugerem episódios e falas identificáveis na política brasileira. Nenhum político do país é citado, mas é possível reconhecer algumas figuras nas conversas sobre caixa 2, engavetamento de processos no STF, compra de apoio da bancada evangélica, discursos hipócritas numa votação ou mesmo um candidato corrupto repetindo que “o cidadão de bem não aguenta mais corrupção”.

O Doutrinador mistura muitas referências da cultura pop, como Batman, o Justiceiro Frank Castle dos quadrinhos norte-americanos e V de Vingança, por exemplo. Mas também há influências do cinema nacional, como Tropa de Elite. A narrativa tem méritos e apresenta uma cidade dividida entre o luxo de poucos e a pobreza de muitos, dando alguns vislumbres de desigualdade social. Vista do alto, Santa Cruz parece futurista, com arranha-céus iluminados e telões. No chão, a cidade é feia e suja, habitada por gente que morre em hospitais por falta de atendimento.

A maior parte das cenas de ação convence, com lutas bem coreografadas e uma violência bastante brutal e realista. O visual do personagem talvez seja uma das melhores coisas do longa. A máscara de gás e o capuz remetem a um certo tipo de manifestante que foi às ruas em junho de 2013. É quase impossível não vibrar ao vermos o anti-herói tupiniquim romper um cordão de isolamento da Tropa de Choque, enfrentar policiais que reprimiam um protesto e invadir o palácio do governo atrás do governador corrupto. Para quem está revoltado com tudo e com todos, O Doutrinador até empolga em alguns momentos.

Entretanto, o filme tropeça no roteiro, pinta a corrupção como uma caricatura e flerta perigosamente com um tema que pode sugerir, aos desavisados, uma política de execuções sumárias.

A narrativa é apressada e tudo acontece de forma muito conveniente, a exemplo do surgimento do anti-herói, seu encontro com a hacker Nina (Tainá Medina) – que o ajuda na missão – e a facilidade com que ele entra e sai de lugares bem vigiados. Algumas interpretações são bem forçadas e até beiram a canastrice, principalmente quando utilizam diálogos bobos e clichês.

A história também é muito simples e mesmo superficial, sem nenhuma trama complexa sobre a corrupção engendrada pelo sistema econômico e o regime político. O Doutrinador é um revoltado que mata corruptos. Não está preocupado em atacar as raízes do problema. E os políticos e empresários ladrões são retratados de forma caricatural, sempre rindo de maneira maligna ao planejar ou concluir um esquema.

Outro grande problema do longa é transformar a corrupção na geradora de todos os males do país. Em O Doutrinador, a pobreza, a falta de verbas na saúde pública e as desigualdades sociais, por exemplo, são resultado apenas da corrupção. O desvio de recursos públicos é sim algo gravíssimo, e deve ser punido com a prisão dos corruptos e o confisco de todos os seus bens. Mas o filme esquece que o principal roubo no Brasil acontece de forma legalizada, pelo pagamento da dívida pública aos bancos, num mega esquema de agiotagem que leva todos os anos quase metade do orçamento do país só em juros. Isso sem falar, é claro, na exploração capitalista sobre os trabalhadores, o que leva à impossibilidade de se resolver o problema que não seja com uma revolução que derrube o sistema como um todo.

Como se não bastasse, a corrupção ainda é tratada como algo inscrito no DNA do brasileiro. Um DNA atrasado, mas que pode evoluir a ponto de tornar desnecessária uma revolução. Talvez seja um pouco demais exigir outra visão da realidade de uma obra desta natureza, porém não custa nada lembrar que a vida é sempre mais complexa do que esses fatalismos e romantismos que colocam todos nós no mesmo saco.

Em 2019, O Doutrinador estará de volta e terá uma segunda chance. Desta vez, numa série para TV.

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