Lima Barreto em 1909

Lançado em 1911, “O triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, é obra fundamental para compreender o Brasil, no início do século 20 e ainda hojeMuito provavelmente, nosso “homenageado” não gostaria do título acima. Nem mesmo seu autor. Afinal, Policarpo Quaresma tem como marca registrada seu desenfreado fanatismo patriótico e tudo nele é um reflexo da vida e das idéias de seu autor, o escritor e jornalista negro Lima Barreto (1881 – 1922).

Contudo, a comparação do Major Quaresma com o “cavaleiro da triste figura”, criado, no início dos anos 1600, pelo espanhol Miguel de Cervantes, é praticamente inevitável.

Assim como Quixote e seus “delírios” (como lutar contra gigantes que, na verdade, são moinhos de vento ou apaixonar-se por uma camponesa que ele vê como uma “nobre dama”) são símbolos e sintomas da inadequação do personagem ao mundo burguês que estava brotando das ruínas da sociedade medieval; Policarpo foi moldado pelas profundas mudanças que estavam em curso, no Brasil, nos primeiros anos do século 20, quando as estruturas arcaicas e conservadoras do país entraram em rota de colisão com os primeiros sinais da “modernidade”.

Crônicas da colisão de dois mundos
Escrita em 1911, mas situada no final dos 1800, a tragicômica saga de Quaresma tem como pano de fundo um Brasil onde as oligarquias da república do “café com leite” são obrigadas a conviver com revoltas populares (como a da Vacina, em 1904, ou da Chibata, em 1910) e com a crescente presença, nas cidades, de um operariado industrial. Um país no qual a explosão populacional e a urbanização provocadas pela imigração esbarram, a todo momento, nas multidões de ex-escravos que vagam, sem emprego ou moradia pelas ruas das cidades.

É por este cenário que circulam, por um lado, os defensores dos valores aristocráticos e do projeto civilizatório europeu (a “gente fina”, como Barreto ironicamente os trata) que se chocam com os costumes e tradições do povo pobre, dos negros e mestiços e demais camadas da “plebe”.

No livro, este choque é apresentado, geralmente, com uma forte carga de humor e ironia, frutos do olhar afiado e crítico do autor. Assim, militares autoritários, funcionários puxa-saco, valores culturais e trejeitos sociais afrancesados são permanentemente “desmascarados” ou satirizados pela “voz” das ruas, da onde modinhas de violão, conversas entre cafezinhos e cachaça e a alegre e descontraída socialização dos pobres fazem desmoronar a empáfia e hipocrisia da classe dominante e seus seguidores.

É neste cenário que Policarpo, um metódico funcionário público, fanaticamente nacionalista, formula três projetos “radicais” que visam arrancar o país de seu atraso e lançá-lo na sonhada modernidade: a adoção do Tupi como língua oficial, uma reforma agrária que comece pelo combate às formigas saúvas e a defesa, com armas, da ordem republicana que o personagem vê ameaçada pelas forças conservadoras.

Estando ele próprio “preso” entre estes dois mundos, Quaresma faz um percurso que é, todo ele, metafórico em relação à tomada de consciência: primeiro, procura identificar suas idéias com o discurso dominante; depois, se aproxima das camadas mais populares e se dá conta de que não há nenhuma intenção, por parte da elite, em promover qualquer tipo de mudança e, finalmente, decidi ele próprio tomar as atitudes necessárias para eliminar as desigualdades e falta de liberdade que contaminam sua amada terra.

Um anti-herói da Marginália
Além dos temas e da narrativa apaixonantes, a grande força e atualidade de “O triste fim de Policarpo Quaresma” deriva das inovações promovidas por Barreto em relação à linguagem, e que fazem com que ele seja identificado como um dos principais nomes do que se convencionou chamar de Pré-Modernismo, movimento que começou no início do século e se estendeu até 1922, ano que marca tanto a realização da Semana de Arte Moderna quanto a morte de Lima Barreto.

Afastando-se do estilo pomposo daqueles que o autor chamava de “mandarins da literatura”, o livro está recheado pela fala popular, pelos costumes e personagens das ruas, razões suficientes para que a elite da época o tenha desprezado por completo.

Um desprezo cujas origens o autor soube localizar com exatidão, como fica evidente em um trecho de “Marginalia”, um dos seus textos mais conhecidos: “Se não disponho do ‘Correio da Manhã’ ou de ‘O Jornal’ para me estamparem o nome e o retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem o meu nome ou o desmerecerem é uma injustiça contra a qual eu me levanto com todas as armas ao meu alcance”.

E uma de suas principais armas foi o olhar sempre atento às mazelas de sua época o que lhe permitiu, simultaneamente, incorporar a realidade brasileira em suas obras e, ao mesmo tempo, utilizá-las como forma de denúncia social e, particularmente, dos preconceitos que sempre afetaram os setores mais marginalizados da sociedade.
Neste sentido, são imperdíveis os seus muitos contos, crônicas e artigos reunidos em livros como “Os bruzundangas”, “Nova Califórnia” e “Histórias e sonhos”. E, particularmente para aqueles interessados na questão racial, “Clara dos Anjos” e “Recordações do escrivão Isaías Caminha” são leituras obrigatórias.

Uma mente livre em um corpo aprisionado
Em todos estes textos é impossível não verificar traços da vida e da personalidade do próprio Lima Barreto o que, inclusive, os torna ainda mais apaixonantes.

Assim como Policarpo, o autor tentou a vida militar, mas teve que abandonar a escola para puder cuidar da família; assim como Clara e Caminha, também foi vítima constante do preconceito racial. E, em função de tudo isto, e como muitos de seus personagens, foi marginalizado de tal forma que acabou seus dias solitário, tido como louco, mergulhado na depressão e no alcoolismo.

Um final “trágico” como o de seu personagem, mas que não diminui em nada a grandeza de sua vida e obra. Pelo contrário, a reveste, ainda mais, de beleza e importância, ambas arrancadas daquilo que Beatriz Resende, no ensaio “Lima Barreto: a opção pela marginalia”, identifica como uma de suas principais características: Lima Barreto se fez “como um intelectual independente num momento em que a cooptação dos intelectuais pelo poder é freqüente” e não manteve “por toda vida, qualquer compromisso mais profundo ou durável que ligue sua produção cultural ao Estado ou representantes das classes dominantes”.
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