Bernardo Cerdeira, de São Paulo (SP)

No dia 7 de setembro, o ex-presidente Lula divulgou um vídeo de 24 minutos sobre a situação política do país. É importante analisar as posições políticas expostas em seu pronunciamento, já que ele ainda é o principal líder político de oposição ao governo Bolsonaro e da esquerda que defende a colaboração de classes.

Seu discurso se caracterizou por uma crítica dura a Bolsonaro. Começou dizendo que o Brasil vive uma “crise sanitária, econômica, social e ambiental nunca vista”. Assinalou que a pandemia da COVID-19 já matou 130 mil brasileiros, a maioria pobre e negra. Responsabilizou o governo por agravar essa crise com uma posição irresponsável e descaso pela vida de milhares de brasileiros.

Entre outras coisas, Lula criticou o sucateamento do SUS, apontando que os recursos para a saúde foram destinados a pagar juros da dívida pública. Atacou Bolsonaro de forma dura por se aproveitar da pandemia para entregar a soberania nacional do Brasil aos Estados Unidos de maneira humilhante, como no caso da entrega da Base de Alcântara e da presença de um general brasileiro para servir no Comando Militar Sul dos EUA sob as ordens de um oficial estadunidense.

Também criticou a política de privatizações de Bolsonaro por vender as reservas do pré-sal, as refinarias da Petrobras, a distribuidora BR, a Eletrobrás e por esquartejar os bancos públicos, como o Banco do Brasil, a Caixa e o BNDES, subordinando-os ao capital financeiro.

Quanto à caracterização da crise, da responsabilidade de Bolsonaro e de sua política neoliberal e entreguista, não há o que discordar. É verdade também que Bolsonaro é um governante autoritário, com um discurso reacionário, racista, homofóbico, machista e contra índios e quilombolas.

O que Lula não disse

A partir daí, surgem as contradições desse discurso. Por exemplo, será que as políticas econômicas e sociais de Lula e Dilma, quando governaram, foram opostas às de Bolsonaro? Analisando de maneira fria, veremos que os governos do PT aplicaram políticas neoliberais durante os 13 anos que estiveram no poder.

O desmonte do SUS e da saúde pública no Brasil, que vem de longa data, não foi interrompido nos governos do PT. Na verdade, a privatização da saúde, por meio de autarquias e atendimentos dos planos de saúde pelo SUS, continuou avançando e as verbas de saúde, diminuindo.

Os governos do PT pagaram religiosamente os juros da dívida pública, inclusive vangloriando-se porque tinham pagado a dívida do Brasil com o FMI. Lula chegou a dizer em vários discursos que “nunca os banqueiros ganharam tanto dinheiro como em seus governos”. É evidente que esses lucros fabulosos vinham dos juros da dívida pública pagos com o dinheiro dos impostos.

A política de privatizações começou no governo FHC, mas continuou nos governos de Lula e Dilma. É preciso lembrar que o leilão do maior campo petrolífero, o Campo de Libra se deu no governo Dilma?

Nem Lula nem Dilma moveram uma palha para reestatizar alguma das empresas privatizadas na era FHC. Por exemplo, se a Embraer tivesse sido reestatizada, hoje não teria existido a decisão de entregar essa indústria, patrimônio nacional, para a Boeing, felizmente abortada pela crise da empresa estadunidense.

Sem dúvida concordamos que um país livre não pode ser subordinado a outro país, mas, mais uma vez, não podemos deixar de assinalar que a subordinação do Brasil aos EUA (que vem de longa data) não foi revertida nos governos de Lula e Dilma. Ao contrário, as Forças Armadas Brasileiras se colocaram a serviço do governo dos EUA para fazer o trabalho sujo de policiamento e repressão no Haiti durante 12 anos sob a cobertura da missão da ONU, a Minustah.

As políticas repressivas de Bolsonaro também não começaram agora. Vêm da lei antidrogas votada no governo Lula; da constituição da Força Nacional utilizada por Dilma para reprimir as greves da construção pesada durante a construção das barragens de Santo Antônio e da Lei Antiterrorismo aprovada no governo Dilma.

A conclusão é que as políticas neoliberais de Bolsonaro não são uma ruptura com as políticas do PT, que também foram neoliberais, mas sim um aprofundamento extremo das mesmas. E sua escalada autoritária, que nisso se difere da situação durante os governos de Lula e Dilma, está baseada nas concessões que estes fizeram às pressões da burguesia brasileira.

MANTER O SISTEMA

Se o capitalismo tem seus dias contados, Lula propõe renová-lo

Em parte importante de seu discurso, Lula disse que o “capitalismo tal como o mundo conhece está com os dias contados” e que o “capitalismo é sustentado pelos trabalhadores, não pelo capital”.

Ao mesmo tempo, denunciou a profunda desigualdade social do Brasil, em que é inaceitável que “10% vivam à custa da miséria de 90% do povo e onde a riqueza produzida por todos vai parar nas contas bancárias de meia dúzia de privilegiados”.

Também assinalou que os pobres que vivem nas periferias são tratados como seres inferiores e que a violência contra a juventude negra beira o genocídio; que os quilombolas são submetidos a um verdadeiro escárnio público pelos governantes; que as nações indígenas têm suas terras invadidas e saqueadas; e que as mulheres continuam sofrendo uma violência impune.

Mais uma vez, concordamos com o diagnóstico da situação, mas discordamos profundamente da solução. Semelhantes palavras poderiam dar a entender que Lula finalmente está propondo uma transformação radical da sociedade capitalista e a adoção de um sistema social socialista, mas não. Quem pensou assim pode deixar de sonhar.

Lula está falando da distribuição da riqueza sob o sistema capitalista, do mito de uma economia a serviço de todos. Segundo ele, é preciso construir no Brasil um Estado justo, igualitário e independente, respeitador dos direitos humanos, em que todos os brasileiros devem ter a possibilidade de crescer. De um estado de bem-estar social que garanta emprego e renda para todos.

Esse objetivo é muito bonito em palavras, mas como seria feita essa distribuição de renda? Os bilionários brasileiros vão abrir mão de 80% de seu patrimônio e dos seus lucros para que se garanta saúde, educação, transporte e moradia a todos os brasileiros? Ou o governo vai impor impostos que confisquem 80% dos lucros dos bancos, do agronegócio, do comércio, da indústria e dos dividendos privados? As empresas privatizadas por preços de banana serão devolvidas pelas multinacionais e pelos donos brasileiros que lucram bilhões com elas?

Lula sabe muito bem que isso não vai acontecer e nem sequer propõe nenhuma medida nesse sentido. Ele é consciente que no capitalismo, a tendência é haver uma concentração cada vez maior de capital, isto é, os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres, mais pobres. A desigualdade, no Brasil e no mundo, aumenta cada vez mais.

Isso ocorre por uma razão muito simples. O sistema capitalista é baseado na propriedade privada das fábricas, dos bancos e dos grandes comércios e do capital que produzem para o mercado. O objetivo do capitalista individual, do empresário, é sempre obter o maior lucro possível e fazer crescer esse lucro de forma permanente. Para isso, tem que explorar cada vez mais seus trabalhadores.

As empresas competem por fatias cada vez maiores de mercado para realizar esses lucros. As que dispõem de mais capital e tecnologia crescem, e as mais fracas tendem a ser absorvidas ou falir. Então a burguesia, essa classe detentora da propriedade privada dos meios de produção, não abre mão do seu capital e de obter o maior lucro possível porque senão pode ser varrida do mercado.

Portanto, a única maneira de realmente acabar com a desigualdade social é estabelecer um novo sistema social baseado na propriedade coletiva dos meios de produção e na planificação democrática da produção, isto é, um sistema socialista. Estabelecer esse novo sistema só é possível se os trabalhadores expropriarem os meios de produção dos capitalistas que os exploram e implantarem um governo democrático dos trabalhadores baseado em conselhos populares. Para isso, é preciso uma revolução socialista

Lula sabe disso e por essa razão não fala em socialismo. Diz que o capitalismo está com seus dias contados e depois faz gestos de um ilusionista. Propõe o mesmo capitalismo com uma nova cara: um novo contrato social.

CONCILIAÇÃO DE CLASSES

Pacto social de novo, não!

A verdadeira polêmica é sobre como enfrentar esta situação. Lula propõe um novo pacto social entre todos os brasileiros, que defenda a renda e os direitos do trabalhador. Ele propõe que os ricos paguem impostos proporcionais a seus rendimentos. Lula ressalta: “Não acredito e não aceito os pactos pelo alto feito com as elites. Não aceito qualquer solução sem os trabalhadores como protagonistas.”

Esse pacto social é mais uma enganação dirigida à classe trabalhadora. Os trabalhadores estão sofrendo um brutal ataque a seus empregos, salários e direitos trabalhistas por parte dos grandes empresários, nacionais e multinacionais e dos partidos de direita.

É evidente que parar esse ataque, que é consciente e planejado por parte da burguesia, só é possível com muita luta do lado dos trabalhadores, não esperando a boa vontade da classe dominante. Mas, Lula não faz nenhum chamado à luta dos trabalhadores por seus direitos. Dessa forma, um pacto social só tem como objetivo paralisar a luta dos trabalhadores.

Lula nem mesmo menciona uma possível recuperação dos direitos e da renda, por exemplo, por meio da anulação da reforma da Previdência, da reforma trabalhista e da lei de terceirizações.

Podemos deduzir então, que a mensagem de Lula se dirige à burguesia: “moderem seus ataques para não provocar explosões sociais”. Mas é possível acreditar que a burguesia e os partidos de direita que articularam esse ataque e apoiaram todas as ações de Bolsonaro e Guedes vão aceitar agora um pacto? Lula sabe que não.

Lula diz que não aceita “pactos pelo alto, com as elites”, mas durante todos os 13 anos dos governos do PT ele só fez pactos “pelo alto”: com o PMDB de Temer, Sérgio Cabral e Renan Calheiros, com o PTB e até com Maluf.

Lula não se propõe a fazer um chamado à luta e à resistência dos trabalhadores. Não pretende revogar nenhuma dessas reformas. Se ele não propõe que Bolsonaro deixe o governo, nem sequer mencionou o “Fora Bolsonaro”, o que ele quer?

Na verdade, Lula quer voltar a governar para aplicar a mesma velha política de colaboração e aliança com um setor da burguesia. Essa foi a estratégia central dos governos do PT durante 13 anos, que levou ao fracasso conhecido e abriu caminho para Bolsonaro.

Lula deixa isso explícito quando afirma que o alicerce desse Estado e o fiador desse pacto social é o voto. Para bom entendedor, significa o voto em Lula para que ele seja o fiador do novo contrato social. Isso fica evidente quando ele termina dizendo: “Nessa empreitada árdua, mas essencial, eu me coloco à disposição do povo brasileiro, especialmente dos trabalhadores e dos excluídos.” … “Estou aqui. Vamos juntos reconstruir o Brasil”. Só faltou dizer, “Lula presidente! Feliz 2022!”