Rosenverck Estrela Santos, do PSTU Maranhão, Quilombo Raça e Classe e vocalista do grupo de Rap Gíria Vermelha

Bolsonaro se elegeu sob o discurso da nova política, segundo a qual não haveria mais acordos escusos, o combate à corrupção seria prioritário e a nação e povo brasileiro estariam em primeiro lugar.

Entretanto, em suas práticas e falas, a verdade é outra completamente diferente. Bolsonaro representa o que de mais arcaico temos na política do Brasil, representa o que de mais velho e submisso se tem em relação ao imperialismo americano e aos interesses dos grandes empresários e latifundiários. A própria história de sua família, vivendo há mais de duas décadas da burocracia e mamata política demonstra o quão falacioso é sua retórica.

De qualquer forma, por conta, dos vícios de nosso sistema eleitoral, Bolsonaro se elegeu presidente, e longe de exercer um mandato em favor da população pobre e trabalhadora do país, tem radicalizado, intensificado e ampliado um projeto de nação que é antigo, racista, autoritário e extremamente violento para com a classe trabalhadora. O projeto que o seu governo impõe foi construído e vêm sendo disseminado pela classe dominante, os ricos do Brasil, os empresários e latifundiários que, querendo um país com ordem e progresso, branco, judaico-cristão, assemelhado aos países europeus, empreendeu um projeto de muita violência simbólica e material que até hoje tem seus efeitos danosos na classe trabalhadora, em especial para com os negros, indígenas e a diversidade sexual.

O discurso de Bolsonaro do Dia da Independência, em 7 de setembro, foi um repertório de antiguidades, que deixa escancarado o projeto de seu governo, da classe dominante, da burguesia brasileira, que é um projeto que vem de longe; da tentativa de tornar o Brasil um país branco – por meio da eugenia; submeter as leis do Estado ao princípio da religião cristã e atacar a classe trabalhadora com todo o peso da crueldade de quem, desde a posse das capitanias hereditárias tem o controle do poder, das terras, e do direito de vida, morte e liberdade das pessoas.

Esse poder da classe dominante brasileira que a tornou uma das mais cruéis do mundo, levando o Brasil, com uma economia rica, a ter uma das maiores taxas de desigualdade social do mundo, e com a segunda maior concentração de renda do mundo. Para se ter ideia, os 1% mais ricos, concentram 28,3% da renda total do país.

Mas, em seu pronunciamento no dia da independência, disse Bolsonaro:

“A identidade nacional começou a ser desenhada com a miscigenação entre índios, brancos e negros. Posteriormente, ondas de imigrantes se sucederam, trazendo esperanças que em suas terras haviam perdido. Religiões, crenças, comportamentos e visões eram assimilados e respeitados. O Brasil desenvolveu o senso de tolerância, os diferentes tornavam-se iguais. O legado dessa mistura é um conjunto de preciosidades culturais, étnicas e religiosas, que foram integradas aos costumes nacionais e orgulhosamente assumidas como brasileiras”.

Parece bom, não é? Miscigenação, imigração de outros povos, respeito à religião, tolerância, igualdade, integração, orgulho, tudo que muita gente considera essencial para a convivência entre diversos povos! Porém, o que aparentemente parece ser um discurso de tolerância, de respeito à diversidade é, ao contrário, um projeto realizado para perseguir e eliminar os povos e cultura negra e indígena. Não é de agora que as classes dominantes utilizam a mestiçagem como critério para pensar a identidade nacional e o Brasil, e em essência torná-lo hegemonicamente branco e assemelhado aos países europeus. De um lado, tem-se um discurso de civilidade, harmonia, mas na prática são elaboradas e empreendidas uma série leis e iniciativas que exclui, explora e oprime a classe trabalhadora e os grupos étnico-raciais que não detém o poder.

Desde a independência, em 1822, por exemplo, que os ricos e poderosos, se põe a pensar que país é necessário para se alcançar a tão sonhada civilização nos trópicos. De pronto, aparece o problema das diversas etnias que vivem no território nacional. Como ser um país civilizado, com a maioria da população composta de negros e indígenas? Como ser um país civilizado se a maioria do povo brasileiro é mestiço biologicamente e com um fenótipo negro e indígena extremamente marcante e por isso, um povo degenerado como afirmavam intelectuais, políticos, médicos e juristas atrelados à burguesia brasileira? Eles sempre buscam responder a seguinte questão: Qual a saída para a degeneração do povo brasileiro, de maioria negra e indígena?

A resposta em primeiro lugar foi incentivar a imigração europeia e trazer europeus para embranquecer a nação. Havia um projeto de embranquecimento, pautado na valorização das pessoas e do mundo europeu em contraponto à desvalorização e criminalização da cultura e dos valores africanos, indígenas e asiáticos.

Esse projeto presumia que, ao trazer europeus para mestiçar o povo brasileiro, em algum tempo, essa nação já seria branca de pele e de cultura. Para tanto, por meio de leis e decretos, por trás do discurso bonito de civilização, progresso e modernidade, foi proibida a imigração africana e asiática para o Brasil; filhos de escravizados eram proibidos de frequentar a escola; capoeiristas, sambistas e adeptos das religiões de matriz africana poderiam ser presos caso fossem encontrados praticando tais manifestações, além de uma série de outras medidas institucionais para empobrecer, encarcerar e matar a população negra, como a lei de terras, lei da vadiagem, entre outras.

Em síntese, a busca da mestiçagem durante o século XIX e começo do século XX era, em primeiro lugar: uma forma de ver o povo brasileiro como inferior, feio, degenerado; em segundo lugar: uma forma não disfarçada de tornar a identidade nacional parecida o máximo possível com a Europa, seus valores, sua estética e sua cultura, distorcendo, ocultando e perseguindo as manifestações culturais negras e indígenas. É isso que basicamente chamamos de eugenia: um projeto de nação cujo objetivo é purificar a raça, atacando os trabalhadores, a população negra, indígenas e todos aqueles que a classe dominante considera degenerados, impuros, preguiçosos, vadios e criminosos em potencial. O discurso de Bolsonaro e seu governo apresenta todas essas características, sob o manto falso da tolerância e do respeito. Vejam que nesse primeiro trecho do discurso existem todos os elementos do projeto de embranquecimento: mestiçagem, imigração europeia, identidade nacional, integração (leia-se homogeneização).

Intelectuais, médicos, juristas, políticos, enfim, a classe dominante econômica, política e intelectual construiu um arsenal discursivo para aviltar o povo brasileiro e pensar numa saída de higienização material e simbólica para uma população que eles consideravam inferior: Silvio Romero, Batista de Lacerda, Nina Rodrigues, Renato Kehl, Monteiro Lobato são alguns exemplos dos que construíram essa ideia que ainda hoje é predominante no imaginário do brasileiro.

No começo do século XX, João Baptista de Lacerda um dos principais nomes da “tese do branqueamento racial”, participou, em 1911, do Congresso Universal das Raças, em Londres, representando o Estado brasileiro e se pronunciou dizendo que no século XXI não teríamos mais negros em nosso país: era o sonho da civilidade da elite brasileira. Já na década de 1930, o médico Renato Kehl, por exemplo, num dos seus livros criticava severamente a imigração africana e asiática e, de pronto, dizia: “E há quem defenda a imigração para nos trazer tais elementos. Se fossem suecos, noruegueses, ingleses, alemães, ainda se conceberia”. Em outro livro, dizia ele: “o mestiço é um produto não consolidado, fraco, um elemento perturbador da evolução natural”.

Monteiro Lobato, por sua vez, em cartas ao próprio Renato Kehl, afirmava que era necessário um terremoto de 15 dias para consertar o país e mais 15 dias de adubo humano. Ou seja, ele propunha a eliminação de parte do povo brasileiro e a entrada de outros povos para “adubar” o nosso território. Em outra afirmação, disse ele: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Ku Klux Klan, é país perdido”, isto é, Monteiro Lobato, o criador do racista Sítio do Pica-pau Amarelo, desejava que no Brasil tivéssemos uma das organizações mais racistas, violentas e assassinas do mundo para poder purificar e solucionar o problema da mestiçagem leia-se, a população negra e indígena.

Quando a partir dos anos 1930 Gilberto Freyre e o governo de Getúlio Vargas buscam pensar um projeto patriótico de integração nacional, o mestiço foi escolhido como elemento central de nossa nacionalidade. Então, de um ser degenerado, passa a ser tratado com um elemento central no Brasil moderno. Mas, como demonstram inúmeros estudos, longe de solucionar os problemas das desigualdades raciais, o discurso da miscigenação era um sistema ideológico bem elaborado para induzir ao embranquecimento do Brasil, por meio de políticas concretas de perseguição, opressão e exploração da classe trabalhadora negra no Brasil, inclusive impedindo a organização e existência do movimento negro e, também, a imigração de africanos para o país. Existiu e existe uma política racial no sentido de criar um Brasil da “democracia racial”, mas que no dia-a-dia das favelas, periferias e bairros pobres, a classe trabalhadora negra vai viver todo tipo de violência e racismo.

É por isso que o discurso de Bolsonaro não tem lastro na realidade, e é contraditório por sua política de perseguição aos indígenas, aos quilombolas, aos sem terras, aos homossexuais, lésbicas, trans, em seu ataque aos direitos trabalhistas, na sua defesa da violência policial e todas as reformas trabalhistas, da Previdência e administrativa que visa tirar direitos sociais, entregar a riqueza do país ao imperialismo internacional e a burguesia brasileira. É por essa razão, que ele empreendeu sua política de morte durante a pandemia do novo coronavírus, pois se antes da eleição, ele queria matar 60 mil opositores, conseguir exterminar mais de 100 mil, sendo a maioria negros e moradores de bairros pobres como demonstram as pesquisas.

Sua retórica sempre foi de levar o povo para o abatedouro, porque o que importava era a economia e morrer era o destino final. Não à toa, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres, durante a pandemia como aponta o estudo da ONG Oxfam, segundo a qual, o patrimônio dos 42 bilionários do Brasil passou de US$ 123,1 bilhões para US$ 157,1 bilhões. Durante a pandemia, também, cresceu assustadoramente a violência policial. Estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará bateram recordes de assassinatos a negros e negros, cometidos por policiais, tudo amparado pelo discurso de ódio e armas de Bolsonaro.  Percebe? Apesar do discurso bonito, a prática é de morte e violência.

Mas tudo isso era dito e ainda é proferido como se fosse um processo harmonioso, pacífico, ordeiro, de integração das raças à identidade nacional e que, no fim das contas, deu num país onde se “desenvolveu o senso de tolerância, os diferentes tornavam-se iguais”. Quando que a tolerância foi predominante no Brasil, marcado por manifestações explícitas de racismo, machismo, LGBTfobia e muitas outras formas de discriminação e preconceito? Quando que os diferentes tornaram-se iguais num dos países mais desiguais do mundo? Percebam que o discurso é uma fala mistificadora e mentirosa que tem por objetivo encobrir toda a violência da escravidão, do genocídio indígena, do racismo, do machismo, da LGBTfobia, das desigualdades de classe, da concentração fundiária e da profunda violência que os ricos deste país exercem sobre a classe trabalhadora, e que este governo tem levado até as últimas conseqüências.

É por isso que no discurso diz ele: “O sangue dos brasileiros sempre foi derramado por liberdade. Vencemos ontem, estamos vencendo hoje e venceremos sempre”. Esse presidente miliciano só fez questão de ocultar que o sangue que continua jorrando não é o da elite, em suas mansões e fazendas, mas de pobres, negros, indígenas, mulheres, etc., como demonstram todos os dados do genocídio e encarceramento da juventude negra, os ataques aos povos indígenas, a violência imensa sobre os LGBTs e o feminicídio absurdo da sociedade brasileira.

Em não satisfeito, continuou Bolsonaro: “No momento em que celebramos essa data tão especial, reitero, como presidente da República, meu amor à Pátria e meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade, valores dos quais nosso país jamais abrirá mão”. Falou mais: “Nos anos 60, quando a sombra do comunismo nos ameaçou, milhões de brasileiros, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, foram às ruas contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada”.

Sem se importar com as contradições e falsificações, defende a democracia, soberania, a Constituição e a liberdade, ao mesmo tempo em que ataca as liberdades de pensamento e posição política e as greves – um direito constitucional de luta da classe trabalhadora. Aliás, esse é traço marcante da classe dominante brasileira e sua natureza autoritária. Toda vez que ela organiza e se prepara para implementar medidas de repressão e golpes institucionais, ela constrói a ameaça do comunismo e da desordem social. Foi assim na Ditadura Vargas, foi assim na Ditadura Militar a partir de 1964 e é assim no discurso de Bolsonaro, sempre preparando o bote para seus projetos ditatoriais, tudo em nome da Constituição, da democracia e da liberdade. Só não explicitam que é a democracia para os ricos, a liberdade para os ricos e a Constituição para os seus. Para a classe trabalhadora é menos Constituição, menos direitos, como mostra escancaradamente a reforma administrativa que penaliza os mais pobres, os funcionários públicos que menos recebem e deixam de fora deputados, senadores, juízes, desembargadores e altas patentes das Forças Armadas. Do ponto de vista da soberania, a entrega de nossas riquezas, a submissão ao imperialismo norte-americano, bem caracterizado pela entrega da base de Alcântara aos americanos e a tentativa de entregar todos dos dias a Floresta Amazônica.

Para finalizar, uma pérola: “Somos uma Nação temente a Deus, que respeita a família e que ama a sua Pátria. Orgulho de ser brasileiro”. Mais uma vez, parece bonito não é? Mas que família ele está falando? Que Deus? Que povo brasileiro é esse? Como prova a sua biografia e suas decisões, essa frase diz muito sobre a proteção à corrupção e crimes dos seus filhos, esposa e sua própria. Ao enriquecimento astronômico de quem a vida toda se beneficiou da carreira política criminosa, pulando de partido corrupto para partido corrupto, sempre buscando favorecimento. O Deus que ele fala, é o Deus único, que não aceita a diversidade religiosa, persegue as religiões de matriz africana e outras denominações e usa a religião como fisiologismo político. Que se alia com bispos e pastores corruptos propagadores de ódio, que todos os dias aparecem nos noticiários sendo presos e/ou investigados por crimes financeiros.

Por fim que povo brasileiro é esse? É o povo composto por trabalhadores negros, brancos e pelos indígenas? Quem não se lembra da frase do seu ministro da Educação que dizia que odiava a ideia de povo indígena e por aí vai. Essa ideia de povo, para seu governo, para Bolsonaro, não tem a ver – apesar do discurso – com o povo negro, com o povo indígena, com o povo branco pobre, enfim, com a classe trabalhadora. Esse povo brasileiro tem a ver, com os seus, com a sua família, com a classe dominante que, diga-se de passagem, nunca quis ser povo e odeia a ideia de povo. Como vimos, desde sempre essa elite quis ser e parecer com o europeu.

A cidade de São Luís é um dos exemplos clássicos, pois chamada de “Atenas” e “única capital brasileira fundada pelos franceses”, quando o povo passou a chamá-la de “Jamaica brasileira”, os intelectuais da Academia Maranhense de Letras e seus políticos vociferaram contra o que eles qualificaram de absurdo! Como que a cidade “Atenas brasileira” passaria a ser reconhecida por um país do caribe de maioria negra como a Jamaica e o seu reggae. Basta ver, também, a “cultura da carteirada” e os inúmeros flagrantes da elite xingando e destratando das formas mais desprezíveis os trabalhadores brasileiros pelos quatros cantos do Brasil, durante essa pandemia.

Portanto, o povo de Bolsonaro é povo do seu Deus hegemônico, único, da sua religião, da sua democracia, da sua liberdade, da sua soberania, enfim, das ideias, práticas e concepções políticas e culturais da classe dominante burguesa e latifundiária do Brasil. Como diz um músico talentoso aqui no Maranhão – Beto Ehongue – “O Brasil é uma criança no elevador procurando a mãe”.

Crianças negras, mães negras, classe trabalhadora pobre, povo negro, povo indígena, esse é povo brasileiro! É junto e enquanto povo que lutamos como partido, para construir, o que desde o fim do século XIX até o século XXI, a burguesia do mundo todo tem medo e se apavora, inclusive, Bolsonaro: o medo do comunismo!

Porque o comunismo é antítese do projeto capitalista de destruição da natureza e da humanidade; é a antítese do projeto de nação brasileira baseada no racismo, no machismo, na LGBTfobia, na exploração e na violência. É a verdadeira democracia e independência do povo brasileiro, do povo negro, do povo indígena! É por isso que lutamos e por isso que Bolsonaro e a burguesia tremem de medo, e fazem de tudo para o povo brasileiro não conhecer a força que tem, por meio de discursos mentirosos e falseadores da história.

Mesmo que já tenham decretado milhões de vezes o fim do comunismo, o fim da história e o triunfo do capitalismo, eles continuam temendo o poder da classe trabalhadora e do projeto de sociedade humana igualitária e sem discriminações que só essa classe pode construir. Queiram ou não queiram: o espectro do comunismo continua assustando a burguesia brasileira.

Nossa independência não tarda a chegar, e quando ela chegar, faremos como Solano Trindade:

Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada.