Foto Tomaz Silva Agência Brasil

O incêndio do Museu Nacional representou uma perda irreparável para a ciência, para a cultura mundial, e para a historia brasileira. É difícil mensurar sua perda. A instituição de pesquisa é a mais antiga do país, fundada nos princípios aristocratas da monarquia portuguesa, foi responsável pelo nascimento da produção de conhecimento científico no país recém independente.

Contraditória à sua fundação, o Museu Nacional possuía um dos maiores acervos arqueológico e etnográfico da América Latina. Embora fundado por portugueses, era a casa de milhares de objetos que representavam a profunda história indígena, aquela que os colonizadores tentaram apagar, e que só não conseguiram devido à resistência dos próprios indígenas, e da vontade de poucos pesquisadores que, por centenas de anos, se dedicaram ao estudo e coleção da cultura material de povos esquecidos pela sociedade.

Foram 30 mil objetos etnográficos ligados à cultura indígena consumidos pelas chamas. Com eles, foi destruído também o maior acervo fonográfico indígena da América Latina, registros em som de milhares de línguas indígenas que, vitimadas pela colonização, não existem mais nem nos cassetes do Museu Nacional. A biblioteca, que continha o material original dos trabalhos de campos de 200 anos de estudos etnográficos também foi reduzida às cinzas.

O passado indígena no Museu Nacional era destaque, não só pela presença de Luzia, os vestígios ósseos da indígena mais antiga das América, mas pela coleção de milhares de objetos arqueológicos, provenientes de dois séculos de pesquisa, de diversas regiões do Brasil. Instrumentos, ferramentas, vestígios botânicos, esqueletos, 12.000 anos de história irrecuperáveis. Se o Brasil como um todo perdeu muito com o incêndio do Museu Nacional, sem dúvida os indígenas perderam muito mais, invisibilizados constantemente pela burguesia nacional, centenas de etnias perderam os últimos elos materiais com o seu passado.

Além das coleções ligadas à história do Brasil, era reconhecido internacionalmente pelo acervo de história natural: a maior coleção de fósseis da América Latina, dinossauros, cetáceos, as primeiras forma de vida na terra. No campo da biologia, perdeu-se também a maior coleção-tipo de insetos do mundo, um acervo que servia como base para a designação de novas espécies. Coleções de milhões de aranhas, carrapatos, escorpiões não foram salvas pelas chamas.

O Museu Nacional e a produção científica pública
Das imagens que correram a internet nessa semana, chamou a atenção a de pesquisadores, desesperados, buscando entre as chamas, peças, objetos e instrumentos de laboratório, na tentativa de salvar qualquer coisa que ainda não tivesse sido consumida pelo fogo.

A verdade é que, além dos objetos expostos nas vitrines, o Museu Nacional é um dos maiores centros de pesquisa científica do país. Já nasceu com essa vocação, de não ser apenas um repositório de objetos de história natural e humana, mas de ser um centro de produção de conhecimento.

Desde que foi fundido com a Universidade do Brasil (predecessora da UFRJ) em 1946, tornou-se um centro público de excelência em ensino e pesquisa. Possui cinco programas de pós-graduação, com destaque para o de Antropologia Social e Zoologia, os mais importantes do Brasil em suas áreas. Mais de 600 alunos de pós-graduação tiveram suas pesquisas interrompidas, e talvez destruídas, já que funcionava também, no prédio do museu, quase todos os laboratórios de pesquisa.

O incêndio de grande parte do acervo biológico e histórico interrompeu não só os estudos em andamento, mas acabou com qualquer possibilidade de novas pesquisas. O que se perdeu no Museu Nacional não foram só as coleções, o Brasil perdeu um centro de pesquisa, perdeu oportunidades de avanço da ciência nos mais variados campos.

O Museu Nacional ainda corre perigo
Diante do incêndio, os políticos de Brasília e do Rio de Janeiro logo correram para dar explicações sobre essa tragédia anunciada, e as mais variadas desculpas foram ouvidas. A verdade, é que o Museu Nacional, assim como a UFRJ e as demais instituições de pesquisa e ensino no país vivem uma situação de penúria. Com cortes recorrentes em seus orçamentos, o incêndio é resultado dessa política consciente de desvalorização da cultura e da ciência.

Os órgãos de fomento à ciência no Brasil tiveram cortes nos últimos anos de mais de 6 bilhões de reais, um orçamento que caiu 12%. E isso não é obra só do governo Temer, de 2014 para 2015, os valores repassados ao Museu Nacional diminuíram de 571 mil para 134 mil, e no ultimo ano, o montante R$33.000,00[1] destinado à manutenção do museu beira o ridículo, é menos do que o valor pago em auxílio a um deputado federal.

As últimas declarações [2] vindas do Planalto parecem indicar que a reconstrução do Museu Nacional, de seu acervo e de suas pesquisas, será feito com capital privado de grandes bancos e empresários, o desvinculando da UFRJ, e isso é um perigo enorme. Colocar diretamente nas mãos da burguesia, com todos seus interesses de classe dominante a história do nossa sociedade, é fazer com que a sua versão dos processos históricos sejam predominantes. Se hoje, os museus públicos que já estão sob controle do estado, refletem os aspectos de seu caráter burguês, essa característica tende a se acentuar.

Da mesma maneira, aceitar os fundos privados como financiamento para a pesquisa é colocar algumas das mentes mais capacitadas do país à serviço não do desenvolvimento científico, mas dos interesses próprios dos ricos e empresários.

Lembremos que Lenin, em abril de 1919[3], foi pessoalmente responsável pela publicação de um decreto que nacionalizou todos os museus da União Soviética, acabou com as coleções particulares da antiga burguesia, e criou fortes instituições de pesquisa e de resguardo de materiais históricos e arqueológicos. Colocou as pesquisas científicas a serviço dos trabalhadores soviéticos, popularizando e democratizando os museus.

Da mesma maneira, é preciso defender e avançar no projeto de museus públicos no Brasil. Fazê-los mais atrativos, mais interessantes, e mais conectados com a nossa sociedade Remodelá-los de uma maneira que eles contem as contradições de nossa história, a resistência da população mais pobre, é preciso fazer museus mais indígenas e mais negros, dar voz aos que nunca tiveram, e não entregar a possibilidade de contar nossa historia para aqueles que sempre a contaram.

Guilherme Mongeló é militante do PSTU, arqueólogo, e membro da diretoria da Sociedade de Arqueologia Brasileira – Seção Norte

[1] Fonte: Portal da Transparência do Governo Federal- valores corrigidos pela inflação medida pelo IPCA de Julho de 2018

[2] http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/id/1525598

[3] https://www.marxists.org/archive/childe/1942/soviet-archaeology.htm