A luta do povo argentino, encabeçada pelas organizações de direitos humanos, fez avançar o esclarecimento sobre os crimes do regime militar. Essa luta de décadas, combinada com a profunda ascensão popular em meio à qual assumiu Kirchner, levou o governo a revogar as leis de Ponto Final e Obediência Devida. Esse elemento, somado ao vento favorável que lhe deu a situação econômica mundial, permitiu-lhe ganhar um importante apoio social.

Como não poderia ser de outra maneira, Kirchner tentou utilizar essas medidas – impostas pela luta operária popular – para avançar na limpeza da “cara“ das forças armadas, muito manchada pelo genocídio. Ou seja, tentou levar adiante a mesma política impulsionada pelo imperialismo europeu, através do famoso juiz Garzón.

Aí se encontam os limites de sua política de direitos humanos. Nem Kirchner nem nenhum governo burguês pode ir até o final na luta contra os genocidas. Para fazê-lo teriam que avançar até o desmantelamento de todo o aparelho repressivo, e isso não o podem fazer. O que precisam é recompô-lo (o aparelho repressivo), para que sirva à defesa de seus interesses e de seus senhores imperialistas.

Etchecolatz é condenado e os genocidas reagem
A revogação das leis, os discursos fervorosos de Kirchner contra os 3 mil que em 24 de maio saíram às ruas para reivindicar a ditadura militar e as sanções a alguns dos militares mais exaltados, deram fôlego às reivindicações da luta democrática e assim se conquistou um importante triunfo: Etchecolatz foi condenado à cadeia perpétua, tem que cumprir a sentença em prisão comum e, pela primeira vez, aparece a figura jurídica do genocídio, o que abre a possibilidade de que todos os genocidas (inclusive aqueles que lhes conceram indulto) sejam julgados.

Imediatamente, desaparece Júlio Lopez, uma das principais testemunhas do julgamento. A relação entre a sentença e este fato é tão evidente que até o próprio governador Solá declarou que se tratava do “primeiro desaparecido da democracia“ e apontou o governo da província bonaerense (Buenos Aires) como o mais provável culpado.

Um tremendo problema para o governo e o regime
O desaparecimento provoca uma grande crise no regime político que laboriosamente vinha se recompondo do descalabro de 2001. E não se trata de qualquer crise, já que envolve uma instituição imprescindível em qualquer estado capitalista: as forças de repressão.

Outra vez, volta a aparecer com força o problema da pena aos genocidas e se demonstra que, como sempre disse nossa corrente, não há solução dentro do sistema capitalista. Com este caso, vêm à luz que as forças armadas estão infectadas de genocidas.

Em relação à polícia bonaerense, soube-se que – somente em La Plata – mantinham em atividade 60 efetivos que haviam participado da repressão durante a ditadura. Quantos haverá na polícia federal, na marinha, exército, aeronáutica? Quantos deles estão nos serviços de segurança privada contratados pelos mais altos setores da patronal?

A crise que se instalou também na instituição que parecia a mais estável: o governo, cujos funcionários aparecem publicamente com diferentes posições. O governador de Buenos Aires, Solá, fala de “seqüestro“, Aníbal Fernandez diz que não se pode descartar que “esteja na casa de uma tia“ e Kirchner, depois de vários dias de silêncio, viu-se obrigado a reconhecer que “o passado não está derrotado nem vencido“.

Essa crise de regime e de governo preocupa a burguesia, como bem reflete Morales Solá, principal editorialista do jornal La Nación: “O desaparecimento de Jorge Júlio Lopez nos fez chegar até agora a uma só constatação: os funcionários estão desesperados. (…) Somente o desespero do ministro do Interior, Aníbal Fernandez – e seus modos grosseiros – podem tê-lo levado a dizer às organizações de direitos humanos que continuava acreditando em um `sumiço voluntário` de Lopez. (…) Somente o desespero pôde levar o governador Felipe Solá a confundir o primeiro desaparecido da ditadura com o primeiro desaparecido da democracia. Não é a mesma coisa. A mensagem que levaria a um eventual seqüestro de Lopez seria infinitamente mais grave que qualquer outro fato que tenha acontecido durante os 22 anos de democracia. (…) A política de direitos humanos de Kirchner pode ser motivo de discussões e debates. E, de fato, o é. No entanto, não poderia restar dúvida se a Argentina vive ou não sob o império da lei.

O caso Lopez colocou para o país o dever de responder a essa pergunta essencial: é somente a lei que rege e organiza a vida dos argentinos? Ou, diferentemente, existem atos e mensagens de setores marginais da sociedade mais poderosos que a própria lei? (…) O caso Lopez tirou brutalmente (Solá) das tertúlias políticas e das divagações eleitorais para colocá-lo em cheio em um conflito ao qual não falta enorme dose de drama. Quão dramático será? Somente é necessário uma comparação. Nem as testemunhas dos julgamentos das juntas militares da ditadura durante o governo de Raúl Alfonsín, quando a democracia era muito mais frágil que agora, foram seqüestrados ou desaparecidos.“

A comparação com o Alfonsín não é casual. Se havia dúvidas de que estamos frente uma forte pressão dos velhos genocidas sobre o governo, nos últimos dias multiplicaram-se as ameaças a juízes e fiscais. A mensagem é evidente: “Estamos vivos. Parem com isso. Acabem com os julgamentos, caso contrário voltaremos a atuar“. Não têm força para organizar em um levante, como na época de Alfonsín, mas sim podem organizar um seqüestro.

Como responde Kirchner? Até agora chama a confiar na investigação da polícia bonaerense. não chama a mobilização apesar de saber que, se o fizer, terá uma resposta massiva.

O problema é que Kirchner tem mais medo das massas mobilizadas do que dos genocidas que o pressionam. E não podemos esquecer que essa crise acontece quando começam os problemas para os “governos progressistas“ da América Latina. Lula não pôde ganhar no primeiro turno as eleições e todos os analistas prenunciam um segundo governo com bastante conflitos. E, na Bolívia, Evo Morales tem que equilibrar-se entre as reivindicações das massas mobilizadas, as exigências das petroleiras e as pressões da direita de Santa Cruz.

A reação das massas
É evidente que há comoção em diferentes setores e que se realizaram marchas importantes em La Plata, Buenos Aires e diferentes cidades do país. Mas o movimento de massas ainda não saiu às ruas. Muito provavelmente isso não tem nada a ver com a expectativa de amplos setores em Kirchner, especialmente em sua política de direitos humanos. Ele os chama a confiar na investigação que se está realizando e muitos ainda confiam.

Também contribui com a desmobilização a política canalha de Hebe de Bonafini de criar dúvidas sobre a vítima e no mesmo sentido agem os dirigentes sindicais que guardam silêncio, apesar do desaparecido ser um velho trabalhador da construção civil.

O problema é que não há possibilidade de derrotar os genocidas senão com a mobilização de massas. Se isso não acontece, o mais provável é que tudo acabe, como na Semana Santa de Alfonsín, com um acordo entre governo e genocidas. Por isso é necessário enfrentar a Kirchner exigindo que chame a mobilização popular pela aparição com vida de Júlio Lopez.

Como derrotar os genocidas?
O presidente Kirchner declarou que o seqüestro de Júlio Lopez e as ameaças a juízes, funcionários e testemunhas demonstram que “O passado não está derrotado nem vencido“. Isso é verdade. Mas então: como devemos fazer para derrotar definitivamente os genocidas? O primeiro passo para isso é saber onde estão, quem os defende e por que seguem impunes.

Um estado a serviço do saque do país pelas multinacionais e grandes patronais argentinas
O golpe de 1976 se deu para impor no país o saque das multinacionais norte-americanas, européias e japonesas e alguns poucos patrões argentinos, como os Pérez Companc, o holding Clarín, Techint, as empresas de Martínez de Hoz, os Roggio, os Macri.

O genocídio de 30.000 companheiros, junto a expulsão das fábricas, das universidades, dos colégios de centenas de milhares de trabalhadores e jovens, muitos dos quais viram-se obrigados a sair do país, buscava derrotar a resistência a esse saque do país.

A queda da ditadura, em 1982, produziu uma profunda mudança no regime político. Acabou-se o terrorismo de estado. Os trabalhadores e o povo conquistamos a liberdade de nos organizarmos e protestar sem que nos seqüestrem ou torturem. Já não governam os militares, mas sim presidentes eleitos.

Mas a economia do país seguiu e segue em mãos das multinacionais e patrões argentinos a serviço dos quais se cometeu o genocídio. Nas fábricas e empresas do país, segue a ditadura das multinacionais e grandes patrões argentinos.

E os sucessivos governos “Democráticos“ -Alfonsín, Ménem, De la Rúa, Duhalde, Kirchner- que assumiram prometendo defender os interesses do povo, não acabaram com a ditadura das multinacionais e os grandes patrões sobre a economia. Ao contrário, comentaram a entrega e o saque.
Hoje, sob o governo de Kirchner, todos os recursos naturais como o petróleo e a terra, as grandes empresas, os bancos, o comércio exterior, seguem em mãos das multinacionais e grandes patrões argentinos.

Isso não surpreende, se pensarmos que todos os partidos patronais que governaram o país e as províncias – e tiveram deputados e senadores de todos esses anos -, prestaram a milhares de seus homens para quem serviram às multinacionais desde os ministérios, governos e prefeituras sob a ditadura. Juan José Alvarez, atual operador político de Lavagna, ex-secretário de segurança de Duhalde e responsável pelo assassinato de Kosteki y Santillán, também foi empregado da SIDE sob a ditadura.

é uma pequena amostra. Hoje há milhares de funcionários em cargos políticos sob o governo de Kirchner que serviram à ditadura. E seguem servindo a ditadura econômica das multinacionais e grandes patronais argentinas. Ou seja, com ditaduras militares ou governos democráticos, o estado defende o saque do país pelas multinacionais e grandes patronais argentinas.

A “democracia“ servil das multinacionais necessita das forças armadas e repressivas da ditadura
A política econômica dos sucessivos governos da “democracia“ a serviço das multinacionais nos afundou cada vez mais em crise e miséria. Que provocou grandes lutas dos trabalhadores e do povo: desde 1983 houve dezenas de paralisações nacionais, estopins nas províncias como o “santiaguenhaço“ (em Santiago), rebeliões populares como a de dezembro de 2001 que derrubou o governo de De la Rúa contra a política de saque e miséria.

Os sucessivos governos “democráticos“ defensores da “ditadura econômica“ das grandes patronais necessitavam contar com forças armadas, tropas de choque e forças policiais para frear e derrotar nossas lutas. E essas forças armadas, tropas de choque e forças policiais não podiam ser outras que as mesmas que sobreviviam e sobrevivem (ainda que em crise) desde a ditadura.

O governo de Kirchner defende essas mesmas forças armadas e não vacila em utilizar a mesma tropa de choque da ditadura para reprimir os petroleiros de Santa Cruz, que lutam contra o saque de nossos recursos por Repsol, Shell, Panamerican e demais multinacionais. Sob este governo segue atuando a mesma polícia bonaerense “gatilho fácil“, genocida e corrupta da época de Etchecolatz, por mais que se demitam 1.500 agentes e coloque-se na cadeia algum oficial.

Milhares de genocidas trabalham para as grandes empresas de segurança privada que cuidam das fábricas e empresas das patronais. Por exemplo, sob este governo de Kirchner, o empresário ianque Tompkins se dá o luxo de usar a polícia local junto a capangas contratados por ele, para despejar a diversos moradores da província (estado) de Corrientes de terras onde há ricas reservas de água.

Por tudo aquilo que foi dito está claro que para derrotar aos genocidas é preciso desmantelar as forças armadas repressivas e todos os serviços de segurança privados. E tirar do governo todos os partidos e políticos cúmplices da ditadura genocida

E isso caminha lado a lado com a luta para acabar com a ditadura das multinacionais e das grandes patronais argentinas sobre a economia, nacionalizando sob controle dos trabalhadores todos os recursos naturais, as grandes empresas, as finanças e o comércio exterior.

Uma luta que tem que possuir como norte a imposição de um governo dos trabalhadores e do povo a serviço dos interesses do país, da classe trabalhadora e do povo pobre contra as multinacionais. Com novas forças armadas que defendam esses mesmos interesses.

A luta dos trabalhadores e do povo e seus triunfos mostram o caminho
A justa luta dos trabalhadores e do povo pela condenação dos responsáveis pelo genocídio e a ditadura militar, encabeçada pelos organismos de direitos humanos, enfrentou durante mais de vinte anos um obstáculo fundamental. Os sucessivos governos de Alfonsín, Ménem, De la Rúa e Duhalde impuseram e sustentaram as leis de Obediência Devida e Ponto Final e os que salvo-condutos.

A partir do estopim popular que acabou com o governo de De la Rúa em dezembro de 2001 e a mobilização de junho de 2002 contra os assassinatos de Kosteki e Santillán conquistamos um avanço fundamental. Impusemos a revogação das leis de impunidade e os salvo-condutos.

Kirchner tenta mostrar que isso é o resultado da política de seu governo. Mas teve que tomar essas medidas porque lhes foram impostas pela luta dos trabalhadores do povo. E quer evitar que isso vá além da prisão genocidas mais famosos como Etchecolatz. De nenhuma maneira quer que a luta conquiste o desmantelamento das forças armadas e da repressão. Por isso, deixa que a polícia bonaerense que, segundo Solá, é a responsável pela desaparição de Julio López, seja encarregada de investigar o caso de seqüestro.

Se, com nossas lutas, os trabalhadores e o povo arrancamos do governo a revogação das leis de impunidade e o salvo-condutos, hoje as mobilizações que acontece por todos os lados do país pela aparição com vida de Julio López mostra o caminho para seguir avançando até o desmantelamento total das forças armadas e do aparelho repressivo que servem a ditadura econômica das patronais.

Esse caminho passa hoje por conseguir que toda a classe operária e o povo reivindiquem e tomem em suas mãos a luta pela aparição com vida de Julio López e a investigação até o final para condenar os culpados. Por esse caminho pode avançar a mobilização até a imposição do desmantelamento do aparelho repressivo e a derrota definitiva dos genocidas.

  • Artigo publicado originalmente no portal da Liga Internacional dos Trabalhadores (www.litci.org)