Ana Godoi

Recentemente, vemos no Brasil um conjunto de debates que tem apaixonado as pessoas e aumentado o grau de polarização que vivemos. A educação está entre os temas que tem gerado mais polêmica e causado mais rebuliço nas mídias e redes sociais. Em meio aos debates, todos se tornaram grandes especialistas em educação, o que tem ajudado a mascarar o real problema do setor: o completo desmonte da educação pública e sua entrega às grandes corporações de ensino, como a Kroton e a Fundação Lemann.

Assim, a cada semana, a educação no Brasil sofre um ataque, seja ao nível municipal, estadual ou federal e acompanhado a ele, temos uma declaração polêmica. Um dos alvos preferenciais de Bolsonaro e todo o seu séquito, em sua marcha contra a educação, é Paulo Freire, educador e pensador brasileiro, que dedicou sua a vida à educação e aos problemas da desigualdade no Brasil. Para o presidente, as elaborações de Paulo Freire são as principais responsáveis pela doutrinação comunista das crianças nas escolas. Ou seja, a obra de Paulo Freire está a serviço do comunismo e do marxismo, além de ser ela a responsável pela péssima qualidade do ensino em nosso país e, por isso, seria preciso combatê-la.

Muitos saem em defesa do autor pernambucano, reivindicado sua importância para a pedagogia e mostrando sua atualidade no Brasil e no mundo. Mas, a grande pergunta é: será mesmo Paulo Freire um marxista e sua obra estará a serviço da construção de um novo mundo, sem desigualdades e mais justo?

Educação como ferramenta para a transformação social: os limites dessa concepção

Uma das principais contribuições de Paulo Freire é seu método de alfabetização de adultos. Nos anos 60, em um momento em que o Brasil possuía uma massa de analfabetos, o método freiriano se mostrou eficaz ao tomar os conhecimentos prévios de adultos como ponto de partida para sua alfabetização. Ao alfabetizar 300 trabalhadores canavieiros no Rio Grande do Norte, o autor brasileiro mostrou na prática que seu método poderia ser utilizado e que era relevante em um país em que homens e mulheres não conheciam as letras, mas já construíam famílias e trabalhavam para sobreviver. Essa proposta revolucionou a compreensão de ensino e, hoje, se tornou referência mundial nos debates sobre pedagogia.

No entanto, o método elaborado por Paulo Freire está acompanhado por uma visão de mundo na qual a educação é uma parte central. E é aí que está o maior erro! E precisamos entender o porquê.

Ao longo de sua obra, vemos aparecer sentimentos como amor, esperança e coragem como adjetivos para o processo educacional. Isso porque, para Paulo Freire, a educação é um processo de transformação potente que, ao envolver tanto o indivíduo, o educando, quanto a comunidade na qual este se insere, pode criar um movimento de transformação social. Em uma sociedade marcada pela desigualdade, pobreza e violência, para ele a educação é um dos principais motores propulsores do processo de transformação, uma vez que ela é capaz de imbuir o homem de autonomia e capacidade crítica, ferramentas indispensáveis para a transformação do mundo. E esse processo se combinaria com a transformação da própria sociedade. Isso porque “não é a educação que forma a sociedade de uma determinada maneira, senão que esta, tendo-se formado a si mesma de uma certa  forma, estabelece a educação que está de acordo com os valores que guiam essa sociedade.” Assim, existiria um processo combinado entre transformação do homem através da educação com a transformação da própria sociedade. Inclusive, a própria luta pela transformação social carregaria um caráter pedagógico, que imbuiria o homem, inclusive de amor ao próximo. “Você, eu, um sem-número de educadores sabemos todos que a educação não é a chave das transformações do mundo,  mas sabemos também que as mudanças do mundo são um quefazer educativo em si mesmas. Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a serviço de nossos sonhos.” Ou seja, ainda que essa sociedade, marcada pela desigualdade social, produza as condições específicas para a reprodução de um certo tipo de ensino, educadores e educandos podem enfrentar esse processo e colocar o ensino a serviço do homem e não do capital.

De fato, olhando assim de forma superficial e sem conhecer o que significa a elaboração feita por Karl Marx, o autor pernambucano parece flertar ou até mesmo defender o marxismo. Porém, a verdade não é bem essa. Ainda que para muitos professores a elaboração freiriana represente um suspiro em meio ao caos e a possibilidade de ver suas aspirações de emancipação humana através da educação se realizarem, a verdade é que a teoria de Paulo Freire romantiza a manutenção do sistema e não tem nada de revolucionária nesse sentido. Mas vejamos porquê.

A análise marxista da realidade toma como pressuposto a própria sociedade, como ela é, com todos os nexos que lhe são próprios e não a partir daquilo que gostaríamos que fosse ou desejaríamos que se transformasse. Assim, para Marx, a sociedade não consiste na mera soma de indivíduos que vivem juntos em um determinado território, “mas expressa a soma de vínculos, relações em que se encontram esses indivíduos uns com os outros.” Daí resulta que as categorias sociais devem expressar “uma relação particular, pertencente a uma forma histórica de sociedade.” Ou seja, a forma social que o capitalismo possui combina necessariamente com seu conteúdo, ambos não se separam, pois um é constituído pelo outro. Como o ser humano se desenvolve a partir da imersão nessa forma de organização social, seu entendimento sobre o mundo será formado, moldado, condicionado por esta forma de sociedade. Vejam, não dizemos aqui determinado ou coisa do tipo. Não acreditamos, como o marxismo vulgar nos legou, em um determinismo da forma econômica sob o indivíduo. Ou seja, que basta entender as bases fundamentais da sociedade que já estará respondido como o indivíduo se desenvolve, como ele é. Em Marx, se processa o contrário. É preciso entender como o ser humano se desenvolve nessa sociedade, estudar, investigar a fundo como a consciência humana se conforma a cada momento, afinal ele é parte constitutiva da realidade.

A partir do momento que as relações sociais são apagadas no interior do capitalismo, as qualidades humanas, das quais essa depende, também o são. Ou seja, as qualidades úteis dos indivíduos, suas características, suas capacidades são apagadas no capitalismo porque, no fim e ao cabo, não depende delas a produção e reprodução deste tipo particular de sociedade. Pouco importa se o indivíduo é um excelente pintor ou uma exímia bailarina ou sabe muitas línguas. O que importa é a valorização do valor, é a troca da mercadoria que realiza esse valor que garante a existência do capital. Assim, o indivíduo apenas importa na medida em que ele é um elo na cadeia da mercadoria. Ele passa a ser visto apenas como coisa, como esse elo, essa ponte que garante a existência do ciclo da vida da mercadoria. As engrenagens da sociedade se põem a trabalhar, não para garantir que os indivíduos se expressem a partir daquilo que eles são em si mesmos, sejam suas máximas potencialidades, mas para garantir que a vida e a potencialidade da mercadoria se realizem.

E é exatamente por tudo isso, que a teoria de Paulo Freire falha, não por seu aspecto metodológico, mas por seu entendimento do mundo e de sua proposta de transformação social. E, justamente por isso, não pode ser considerada marxista e nem comunista. Simplesmente assumir que existe desigualdade no mundo causada pelo capitalismo, não o torna marxista. Ainda que diga que é preciso transformar a sociedade, a forma com que Paulo Freire elabora essa transformação o afasta do marxismo. Ele parte de um homem genérico, que não está condicionado pela forma de sociedade, ou seja, ele entende que o homem está submetido a condições ruins de existência, mas, ao mesmo tempo, entende que ele pode romper com isso, pois possui características próprias, internas a condição de ser homem, que o possibilita romper com essa condição.

Em resumo, se o indivíduo entende que sua condição é ruim e entende que isso foi construído pela sociedade, ele pode colocar em marcha um processo de ruptura com as condições sociais. O que temos é a transformação do mundo pela ideia e pela vontade. Consequentemente, ele parte de uma educação também genérica, também ideal, que não carrega em seu DNA a própria forma de sociedade que a produziu. Cada professor pode entender sua sala como um espaço de transformação do homem e da sociedade e justificar isso com o olhar inquieto de entusiasmo do aluno que aprende o que ele diz. Porém, ele ainda está imerso em um mundo dominado pela mercadoria, que precisa continuamente se reproduzir para manter essa forma de sociedade.

O que queremos dizer é o seguinte: Paulo Freire centra sua concepção de mundo e, consequentemente, sua compreensão de libertação no indivíduo. Ainda que compreenda a existência de classes na sociedade, não toma essa como uma determinação fundamental da sociedade e, por isso, central no processo de desenvolvimento dos indivíduos e de sua possibilidade de libertação. Por isso diz: “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.” Não há saídas individuais que, somadas, mudem o capitalismo. Só é possível uma mudança radical da sociedade centrada na luta pela destruição das classes que a constitui.

Ainda que possamos encontrar exemplos individuais que demonstrariam a possibilidade de uma transformação paulatina, a partir do entendimento das pessoas acerca do mundo em que vivem, essa nunca será uma forma de enfrentamento de toda uma forma de sociedade. Essas experiências, ainda que existentes em um microuniverso, não se chocam com as formas de relações sociais que dão a anatomia do capitalismo. Até por isso ela não se generalizam.  A força de certos grupos de indivíduos, mesmo que decididos e capazes, jamais pode se elevar acima das forças impessoais e universais do capital que tudo perpassam e, dia após dia, são reafirmadas pela sua reprodução. Sem se chocar com as formas fundamentais da sociedade capitalista, sua divisão em classes, seu centro na produção e circulação de mercadorias, na transformação do conjunto dos indivíduos em meros apêndices do processo produtivo, não haverá profundas transformações sociais. E esse entendimento, é o coração da teoria marxista. Por isso, para o marxismo, somente é possível se contrapor à universalidade do capital fazendo desenvolver, em seu interior, uma outra universalidade capaz de destruí-la por dentro e reconfigurá-la. Essa universalidade não pode brotar de iniciativas puramente subjetivas ou morais, mas de dentro da própria forma social capitalista.

Só é possível mudar a sociedade rompendo com as formas sociais que lhe dão sustentação. Só é possível transformar a sociedade jogando-a no chão e construindo outra. Não porque fazer revolução é bonito, poético e carrega o amor em si. Mas porque não existe outra forma se queremos ser consequentes como a própria realidade.

Não à toa, Paulo Freire foi secretário de Educação no governo de Luíza Erundina em São Paulo. A sua compreensão de transformação social tendo a educação como motor propulsor parte da ideia de que é possível mudar as coisas criando um outro homem a parte do desenvolvimento interno do próprio sistema. Mudemos o homem que mudaremos o mundo! Isso não tem nada de comunista (marxista). E apesar de ele dizer que não é idealista, só podemos admitir que sua teoria é sim idealista, afinal para ele é preciso reformar o homem para reformar a sociedade.