O choque entre o sonho transformador dos lutadores sociais e a realpolitik neoliberal do governo Lula é desconcertante

Os militantes da educação protagonizaram grande parte dos conflitos sociais contra o neoliberalismo em toda a América Latina. A pauta dessas lutas situou a educação como um bem público, um direito a ser materialmente universalizado e, nos enfrentamentos, novas alianças foram forjadas assumindo, não raro, caráter classista.

Não que faltassem motivos para lutas econômico-corporativistas: em toda a região, os direitos mais elementares foram violentamente atacados. Contudo, mesmo as lutas aparentemente mais pontuais foram decisivas para impedir uma tragédia ainda maior na educação latino-americana. Parte considerável do êxito no combate ao neoliberalismo deve-se à manutenção da chama dos valores e princípios sustentados nas lutas cotidianas: solidariedade, igualdade, universalidade da condição humana, transformação, história e os sonhos de uma nova primavera para os pobres e excluídos pelo capitalismo.

Por que as orientações da política educacional de Lula não rompem com os marcos neoliberais?

É uma tola ilusão acreditar que as medidas educacionais são desvinculadas das políticas econômicas empreendidas pelo núcleo sólido do governo de Estado. Se o superávit primário for mantido em 4,25% do PIB; se a Desvinculação das Receitas da União continuar a ser um pilar da ordem tributária do país; se a Lei de Responsabilidade Fiscal prosseguir tolhendo os estados e municípios; se a focalização das políticas sociais seguir negando as políticas universais; se o privado (ONGs, Terceiro Setor, Igrejas, expansão do setor privado) seguir eclipsando o público, como, a rigor, vem acontecendo (e não há nenhum sinal de que essa orientação será modificada) então, a máxima de Thatcher de que “não há alternativa” seguirá como a bíblia do governo Lula.

Nesse arcabouço, as medidas (e as perspectivas) do MEC não surpreendem. A principal marca da política educacional é a completa ausência de prioridade do público sobre o privado. Assim, a política de Ciência e Tecnologia permanece prisioneira da lógica da inovação tecnológica balizada pelas demandas do mercado; o fornecimento de educação de jovens e adultos e de alfabetização é operada a partir de organismos privados; o atendimento da demanda de ensino superior é “naturalmente” delegado aos empresários do setor, inclusive com subsídios estatais e, ápice do privatismo lulista, até mesmo o princípio constitucional da gratuidade está em questão.

A despeito das juras do ministro da Educação em defesa da gratuidade, ele próprio afirmou, na Unesco, que é favorável a um imposto de renda diferenciado para os egressos da universidade pública. Aos crédulos, cabe lembrar que tal proposta requer a mudança do Artigo 206 da Constituição, relativizando o princípio da gratuidade nos estabelecimentos oficiais. Como o principal documento de política econômica do governo é o Consenso de Washington II, não surpreende a desenvoltura do Banco Mundial que, em contrapartida ao empréstimo de US$ 8 bilhões, exige a cobrança de taxas e mensalidades nas universidades públicas.

A reforma neoliberal da Previdência atendeu aos reclamos do “mercado” ao criar os fundos de pensão, acelerando o desmonte do serviço público. No caso das universidades, além da corrida às aposentadorias, o regime de dedicação exclusiva, que permitiu a existência de professores pesquisadores, desaparecerá na prática. Na lógica do mercado, sobrevivem os mais empreendedores e os de maior espírito capitalista, “qualidades” incompatíveis com a livre produção do conhecimento e, sobretudo, com a produção de conhecimento novo.

Se, no geral, a política não mudou, também no particular nada de novo surgiu no panorama educacional

A política de remuneração por desempenho, a partir de um “provão do professor”, foi apresentada como a grande inovação educacional, contando com o silêncio cúmplice de importantes dirigentes sindicais da área. Os docentes das universidades públicas prosseguem sem bolsas de estudo para a pós-graduação e com o grosso de sua remuneração por gratificações de desempenho, o provão segue legitimando as fábricas de diploma e a conversão das universidades em “unidades de ensino” e a privatização interna das instituições por meio de fundações privadas continua a ser vista como exemplo de integração com a sociedade (leia-se com o mercado).

Uma nova onda de privatização e de “mercadorização” da educação acontecerá caso a Alca seja aprovada

Esta onda também virá com as negociações sobre serviços e investimentos no seio da OMC em Cancun. A possibilidade de que isso venha a ocorrer não é pequena. Os setores econômicos mais fortes que dão apoio ao governo – agrobusiness, commodities e financeiro – serão os grandes beneficiados por esses acordos e podem encorajar o governo brasileiro a abrir o setor de serviços e a liberalizar os investimentos, como querem os EUA, em troca de um maior acesso ao mercado agrícola e de commodities estadunidense.

Por tudo isso, os movimentos que resistiram à tempestade neoliberal precisam manter a luta contra as políticas do passado, intensificando a luta pela primavera dos povos, convertendo utopias e sonhos em conquistas concretas e objetivas, o que exige organização, referências teóricas, táticas e estratégias e radical prática democrática no desenrolar das lutas. E aqui o balanço da última década é amplamente promissor.Venceremos!

* Roberto é professor da UFRJ e Pesquisador da CLACSO/LPP-UERJ

Post author Roberto Leher*,
especial para o Opinião Socialista
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