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Os primeiros passos da formação da concepção de mundo original atribuída aos alemães Marx e Engels foram dados com a crítica de autores como os irmãos Bauer e Feuerbach. Tais autores, conhecidos na época como jovens hegelianos ou hegelianos de esquerda expressavam, num nível acadêmico, a crítica do sistema de Hegel, animados pela atmosfera das revoluções democrático-burguesas de sua época. Feuerbach era, então, o crítico mais ousado. E seu ateísmo e seu materialismo humanista seriam essenciais na formação do pensamento dos fundadores do socialismo científico.

Os jovens hegelianos encantavam-se com as possibilidades abertas com a subversão atéia do sistema de Hegel. Como não podiam desferir ataques diretos contra a monarquia absolutista da Prússia e o atraso da Alemanha, faziam-no indiretamente, criticando o Estado por meio de sua religião oficial. Foi então que surgiu sua profissão de fé: atacar as idéias religiosas das pessoas, libertá-las da servidão das crenças para que, em seguida, fosse possível transformar o mundo.

Dando um passo à frente, Marx e Engels inverteram a ordem do programa: deve-se antes transformar o mundo para que, posteriormente, as idéias possam ser modificadas. Esse passo teórico decisivo foi dado na obra A Ideologia Alemã, em que a pretensão dos jovens hegelianos é ridicularizada.

De qualquer forma, o ateísmo é um componente central do marxismo. É falsa a afirmação segundo a qual o marxismo pouco se importa com as religiões ou com a crença em Deus. Não há marxismo conciliável com a crença em entidades sobrenaturais. É claro que questões de tática e política não devem ser misturadas aleatoriamente com questões filosóficas: seria inútil pregar o ateísmo diante de uma assembléia de fanáticos de uma congregação evangélica, católica ou muçulmana.

Tal atitude, provavelmente, acabaria mal para o lado menos numeroso. Entretanto, convém aos marxistas manter os olhos abertos para o desenvolvimento da ciência, pois esta é a fonte de sua filosofia. Com a ciência em mente e sem querer ressuscitar o programa dos jovens hegelianos, consideremos agora a obra mais popular do novo expoente do ateísmo científico radical: o biólogo britânico Richard Dawkins.

Deus, um delírio
Richard Dawkins pertence a um seleto grupo de cientistas cuja honestidade intelectual está muito acima do nível sórdido em que são feitas concessões à opinião pública em troca de dinheiro e popularidade fácil. Nas páginas de Deus, um delírio o leitor encontrará uma crítica severa e surpreendente contra aqueles que, por conveniência ou covardia, cederam à pressão do público leigo e das editoras e deram às religiões um espaço nobre entre as realizações intelectuais humanas. Os dois principais alvos desse ataque “principista” são Stephen Hawking, que de maneira cínica inseriu “a mente de Deus” em sua Breve História do Tempo e o também biólogo (aclamado entre o público marxista) Stephen Jay Gould, que em sua obra Pilares do Tempo fez concessões à religião.

Deus, um delírio é a prova viva de que um best-seller não requer capitulações. Seguindo a tradição de grandes pensadores e divulgadores da ciência como Carl Sagan, autor, dentre outros, do sensacional O Mundo assombrado pelos Demônios, Dawkins mostrará ao leitor a última palavra da ciência em oposição ao obscurantismo criacionista, ao fanatismo judaico-cristão, ao fundamentalismo islâmico e a todas as formas de pensamento místico.

Uma das novidades dessa obra em relação ao livro citado de Carl Sagan é a crítica sagaz e bem-humorada do design inteligente – o “criacionismo num smoking vagabundo”. Richard Dawkins domina a lógica da argumentação. O leitor dará boas risadas ao perceber as falácias triviais contidas nos argumentos supostamente sofisticados como o da “complexidade irredutível”. Há vários outros temas interessantes na obra, como a possível explicação biológica (evolucionista) para a vulnerabilidade humana às religiões, o caráter relativo e certamente não religioso da moral, dentre outros.

Mas Dawkins não é um político revolucionário. Por essa razão, apesar do caráter extraordinariamente salutar de sua obra, percebe-se facilmente a existência de algumas lacunas. Exemplo: exceto pela descrição de um experimento destinado a demonstrar o chauvinismo das crianças israelenses, não há uma única menção ao sionismo no texto, apesar de haver extensas passagens dedicadas aos crimes cometidos em nome das religiões. Terá sido uma omissão tática? Por outro lado, certos conflitos militares e políticos têm suas causas reais obscurecidas diante da “causa” aparente das religiões. O leitor não terá, contudo, dificuldades para distinguir a essência da aparência.

Lacunas à parte, a obra é referência obrigatória para militantes e ativistas dos movimentos sociais. Numa época em que o assalto imperialista ao mundo semicolonial volta a ser feito em nome de uma luta do “bem contra o mal”, é sempre bom possuir argumentos científicos contra os ladrões que fingem falar em nome de um suposto deus.

Para concluir, gostaríamos de fazer uma única objeção ao texto, que se refere à origem da vida. Parece-nos haver um pouco de exagero na insistência do autor em qualificá-la como evento “altamente improvável”, como explicaremos abaixo.

A origem da vida: algumas palavras sobre probabilidades
Há poucas semanas, o prêmio da Mega-Sena estava acumulado em 52 milhões de reais. Acertar na Mega-Sena, como todos sabem, é um evento altamente improvável. Na verdade, é surpreendente constatar que um jogo dessa natureza reúna tantos adeptos, pois nenhum outro gera todas as semanas uma quantidade tão espetacular de perdedores – como diz a velha anedota. De qualquer maneira, sabemos (não por experiência própria) que, quase sempre, uma ou mais pessoas acertam a combinação. Como se explica fato tão extraordinário?

Qualquer pessoa que tenha o mínimo de instrução escolar sabe que o número de combinações possíveis de seis números escolhidos entre 1 e 60 é extraordinariamente alto. Quem aposta uma única combinação tem apenas uma chance entre mais de cinqüenta milhões de possibilidades! A probabilidade de êxito para uma única aposta é, portanto, virtualmente igual a zero (aproximadamente 0,00000002).

É por essa razão que seu vizinho que joga todas as semanas sempre perde e continuará perdendo! Caso você o avise sobre tais números, ele certamente dirá que, apesar das probabilidades, alguém sempre ganha! Logo, “com a graça de Deus”, talvez o próximo vencedor seja ele próprio, afinal, sempre se comportou bem e está convencido de que faria bom uso do dinheiro.

É verdade que quase sempre alguém ganha, sozinho ou juntamente com outros apostadores. Esse fato sugere-nos a hipótese de que a ocorrência do evento favorável (acertar a combinação) não é tão improvável assim se fizermos um número suficiente de tentativas. E, de fato, são feitas milhões de tentativas. Há milhões de apostadores. Alguns fazem dezenas de apostas, outros, apenas uma.

Se houver apenas 25 milhões de apostas distintas, a chance de que uma delas seja sorteada é aproximadamente igual a 50%, e o evento favorável deixa de ser improvável, tornando-se até corriqueiro. A verdade, portanto, é que o evento favorável torna-se bastante provável quando se dispõe de um número suficiente de tentativas, apesar de sua aparência improvável (quase impossível) na escala individual, isto é, tendo-se em vista a perspectiva de um único apostador.

Pois bem. A origem da vida assemelha-se a uma edição do “concurso” da Mega-Sena, com a diferença de que o evento favorável aqui é a aparição casual de uma molécula orgânica capaz de fazer cópias de si mesma. Neste caso, o evento favorável, considerando a perspectiva de um único apostador, é muitas vezes mais improvável do que acertar uma combinação de 6 números escolhidos entre 60.

Em compensação, o número de apostadores (moléculas orgânicas submetidas a condições adequadas) é extraordinariamente maior. E, além disso, cada apostador pode fazer a tentativa centenas ou mesmo milhares de vezes, e o tempo disponível para o experimento é de aproximadamente 1 bilhão de anos, sendo que as tentativas ocorrem ininterruptamente! Ora, nessas condições, seu vizinho certamente diria: assim, até eu ganharia!