O jornal Le Figaro, um dos mais importantes porta-vozes da burguesia francesa, resumia assim o significado do plebiscito: “Este domingo, 29 de maio, tem desde agora assegurado a entrada na consolidada cronologia dos grandes marcos históricos da França, em torno dos quais um país lança-se ao seu destino, ao seu papel no cenário internacional e no próprio equilíbrio de suas instituições políticas, econômicas e sociais. Esses marcos históricos permanecem também na memória coletiva como o dia em que as relações de força oscilam e o momento em que as trajetórias políticas se deslocam. Nesses marcos, uma parte do futuro de nossa nação é decidido. É preciso retroceder muito na história de nossa República para encontrar um dia com essa forte intensidade política. O ‘não’ ganhou, e tudo ficou de pernas para o ar”.

A França honrou as suas melhores tradições como vanguarda da Europa. Os resultados do plebiscito foram espetaculares: participação de 75% (que contrasta com a massiva abstenção espanhola), e um impressionante voto pelo “não” de 55%, que teve grande força entre a população trabalhadora e a juventude francesa. Destaca-se também a mobilização de milhares de ativistas, organizados em mais de mil coletivos, que foram a alma da campanha, e o papel desempenhado por setores sindicais, animados pela postura da CGT pelo “não” (em contraste com o indigno papel das Comissões Operárias e UGT, principais centrais sindicais da Espanha).

Contra todos
O enorme valor dos resultados fica realçado face à gigantesca campanha pelo “sim”. A intolerável pressão sobre os espanhóis durante o fraudulento plebiscito da Constituição oferece uma pálida idéia das pressões que o povo francês teve que suportar: todo o aparelho de poder e a institucionalidade política; a patronal; todos os meios de comunicação de massas; todo um rebanho dos intelectuais; as instituições européias; os governos da UE (União Européia); toda a social-democracia internacional, encabeçada pelo primeiro-ministro espanhol Zapatero (Partido Socialista Espanhol); … até mesmo a direção dos Verdes e o apóstolo da “novíssima esquerda”, Toni Negri (co-autor do livro Império e referência obrigatória dos movimentos antiglobalização). A campanha pelo “sim” esteve repleta de ameaças, atravessada pela chantagem do medo, pela falsificação da ordem estabelecida e pela tentativa sistemática de identificar o voto “não” à extrema-direita. Mas fracassaram tremendamente.

Uma vitória desse calibre só pode ser explicada em razão da intensa mobilização nos últimos tempos da classe trabalhadora, da juventude e de amplos setores populares franceses, pelo enorme desprezo que sentem em relação aos políticos e às classes dirigentes e pelo ódio acumulado diante de tantos anos de ofensiva neoliberal contra os direitos e conquistas.

Um cadáver político
Os senhores da Europa, que antes do plebiscito ameaçavam com a hecatombe caso ganhasse o “não”, agora não param de dizer que seu resultado foi um simples “tropeço”, e que se deve seguir adiante com as ratificações da Constituição Européia, como se nada tivesse acontecido. Mas, repetir que a Constituição “continua viva”, não irá alterar o que já é um fato: que a Constituição é um cadáver político.

A Europa imperialista, do Capital e da Guerra, recebeu um tremendo golpe político. A vitória do “não” acabou com o governo Raffarin e deixou Chirac ferido de morte. Os acertos entre os governos da UE, conseguidos depois de prolongadas e truncadas negociações, converteram-se em letra morta, e deverão ser renegociados no pior momento. Os planos de ampliação da UE ficaram bloqueados, e o possível ingresso da Turquia no bloco, seriamente questionado.

Sem dúvida, o governo francês, a UE e os demais governos europeus vão seguir em frente com seus planos neoliberais. Mas já não vai ser o mesmo: de agora em diante, vão se chocar com uma população alerta e preparada para reagir. Projetos como o do Programa Bolkestein (de privatização dos serviços públicos) estão já com seus dias contados. Também os planos militaristas da UE e seus governos vão ficar cada vez mais em evidência. O próximo Conselho Europeu – em junho na Bélgica – vai testemunhar fortes enfrentamentos entre os distintos capitalismos europeus, por conta da partilha dos fundos financeiros para os próximos seis anos. Uma partilha que, diga-se de passagem, só faz reproduzir e aprofundar as assimetrias estruturais e a lógica imperialista entre as desiguais nações da UE.

“Não nos representam!”
Os resultados do plebiscito francês foram uma vitória espetacular para toda a classe trabalhadora e os povos da Europa, do Oeste e do Leste. É a maior vitória política na Europa em muito tempo: uma vitória que se conecta com a resistência operária e popular nos distintos países e que constitui um estímulo extraordinário à mobilização em toda a Europa, o reforço da ala esquerda do movimento. O plebiscito francês é também uma referência de primeira ordem para a luta dos povos do mundo.

Os números do plebiscito contrastam brutalmente com um Parlamento no qual 90% da representação era partidária do “sim”. Significa que eles, como bem diziam os manifestantes franceses, “não nos representam!”. São a representação de uma “democracia” em que o poder é ostentado por uma ínfima minoria que se aninha na UE. Em sete dos nove países que até o domingo (dia 29) tinham ratificado a Constituição, os governos não se atreveram a “plebiscitá-la” e a aprovaram diretamente nos Parlamentos. Então ficaram claramente deslegitimados. Na Espanha (considerada o modelo a favor do “sim”), não se pode ocultar o fiasco de um plebiscito manipulado, no qual não alcançaram sequer o apoio de um terço dos eleitores.

A social-democracia européia, com todos seus chefes, pôs-se em evidência como um dos principais instrumentos do neoliberalismo europeu. Zapatero, sua nova estrela emergente, voltou a ficar sem fôlego, como quando foi “ajudar” Schröder, presidente alemão, em sua recente derrota na eleição regional na Renânia do Norte-Vestfália.
Agora se trata de continuar a batalha contra a Constituição Européia e os planos neoliberais. A luta contra as demissões e “deslocalizações” (transferências de fábricas para países pobres onde a mão-de-obra é mais barata), contra a precariedade, contra o desmantelamento do setor público, contra os Planos Universitários de Bolonha (nos mesmos moldes da reforma universitária de Lula e do FMI) e pelos direitos para os trabalhadores imigrantes, deve ser reforçada e dotada de plena dimensão continental, em toda a Europa.

A esquerda francesa conseqüente tem agora duas tarefas de primeira importância diante de si: escorraçar Chirac e seu “novo” governo do poder, sem esperar as eleições presidenciais de 2007, e encabeçar o chamado por uma Frente Européia contra a Europa do Capital e da Guerra.

Post author Juan Carrique, do PRT-ER, seção espanhola da LIT-QI
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