Na comemoração dos 90 anos da revolução, não poderíamos prestar melhor homenagem do que resgatar o debate franco de idéias sobre o significado do fato histórico mais importante do século vinteEm outubro de 2007, a Revolução Russa fará 90 anos. Há quase um século, o proletariado de um país atrasado passou à frente de seus irmãos mais velhos da Europa Ocidental e, num gesto de ousadia, desafiou o poder do imperialismo, da propriedade privada, do lucro, da exploração e da opressão. Um novo tipo de Estado, em que o poder tinha origem nos conselhos de delegados eleitos nos locais de trabalho, abria caminho para um novo tipo de sociedade, o socialismo.

Mas seria possível pensar em democracia sem parlamento? Em fábricas produzindo sem patrão? Seria possível que a administração do Estado fosse realizada por anônimos operários e operárias que, até então, haviam sido educados para obedecer?

Em 1903, um dos principais construtores desta ousadia disse que era preciso acreditar em sonhos, desde que se observasse com atenção a vida real. Levando em consideração este conselho, surge uma pergunta: depois da restauração do capitalismo na ex-URSS, não teria a vida real dado a última palavra? Para os que acreditam na necessidade de superação do capitalismo, em que sentido a Revolução Russa representou um passo adiante? Qual é o seu balanço histórico?

Expropriar os expropriadores
Se ninguém pôde ficar indiferente a essa revolução durante o século vinte, isso segue impossível. Após a restauração do capitalismo, nem a Rússia ou qualquer país do mundo se tornaram um lugar melhor para viver.

A proclamação da vitória do capitalismo sobre o socialismo seria uma verdade se o primeiro pudesse oferecer às futuras gerações uma vida melhor. Mas o que vivemos é justamente o oposto: 20% da população mundial, concentrada em dez países, é responsável por 80% do que se produz no planeta. Enquanto os 80% restantes da população do globo, cerca de cinco bilhões de seres humanos, devem lutar todos os dias para repartir os 20% restantes.

Esta lógica de acumulação e destruição inaugurou o novo século com o genocídio que os EUA vêm praticando no Iraque para expropriar o petróleo.

Na América Latina, a espoliação imperialista nunca foi tão profunda em todo o continente. As contradições do capital chegam a tal ponto que, apesar de todo seu desenvolvimento tecnológico, para solucionar a crise de sua matriz energética baseada no petróleo, ele quer voltar às relações sociais do século 16, transformando a América Latina e o Caribe numa grande plantação de cana.

A roda do capitalismo segue girando sobre milhões de cadáveres e expropriando a personalidade humana, transformando-a em mercadoria. Por isso, podemos afirmar que o princípio sobre o qual se realizou a Revolução Russa – expropriar os expropriadores e acabar com a propriedade privada –, é mais atual do que nunca.
Entretanto, partidos como o PT afirmam que isso é pura utopia. Para eles, aceitar a realidade é governar junto com a burguesia. Por isso, PT e Lula pretendem fazer uma contra-reforma na Previdência e retardar a aposentadoria dos trabalhadores, transferindo o caixa para o pagamento de juros aos banqueiros.

Se o fim da propriedade privada é a única forma de conquistar uma vida digna, qual é a razão do retrocesso da Revolução Russa, até chegar à restauração do capitalismo?

Revolução e contra-revolução
Quando entramos numa luta, há duas questões fundamentais que não devem ser confundidas: quem é o inimigo e qual é a nossa estratégia. Em torno a elas estão as lições da revolução de outubro para todos os lutadores do mundo.

E também em torno a estes dois temas toda a esquerda que reivindica o socialismo se dividiu. O fim da URSS e a restauração do capitalismo trouxeram novamente o debate sobre qual foi o momento e por que a contra-revolução foi vitoriosa.

Algumas correntes que se dizem marxistas consideram o debate sobre o stalinismo ultrapassado pela história. A organização internacional que se auto-intitula Secretariado Unificado da IV Internacional (com a qual se relaciona a Democracia Socialista, do PT) partilha esta opinião.

Não temos esta visão. Nunca o balanço sobre o significado do stalinismo foi tão atual. O PCdoB, por exemplo, tenta se esquivar dele. Renato Rabelo, dirigente deste partido, afirma: “Não somos stalinistas. Tampouco, somos anti-stalinistas”. (Todas citações sobre o PCdoB se referem ao texto: Informe político ao 8º Congresso, 1992).
Mas, quando se refere a Stalin, diz: “Não foi ele quem deixou cair a bandeira revolucionária. Enquanto dirigiu o partido e o Estado, os ideais da Revolução de 1917 sempre estiveram em lugar de destaque”.

O PCdoB entende como “ideais da revolução” a coletivização forçada que levou à morte milhões de camponeses e os processos de Moscou, que assassinaram toda a velha guarda bolchevique e praticamente todos os membros do Comitê Central que dirigiu a revolução. Hoje a abertura dos arquivos da antiga KGB reconhece a condenação à morte de quase um milhão de comunistas.

Rabelo segue dizendo: “Stalin era um estadista de larga visão, neutralizou inimigos poderosos”. Sobre a “neutralização de inimigos”, podemos concluir que seja um eufemismo para se referir ao assassinato de Bukarin, Zinoviev, Kamenev e Trotsky, entre outros conhecidos e anônimos comunistas.

Assim, o PCdoB quer reduzir o stalinismo a um problema de um indivíduo, aos erros e acertos de um indivíduo. O partido ignora assim que, com Stalin, chega ao poder um setor social, uma burocracia. O stalinismo foi a expressão da vitória da contra-revolução, e não uma continuidade da revolução, como quer fazer acreditar Rabelo e todos aqueles que, mesmo negando o stalinismo, o vêem como uma continuidade “dos erros do bolchevismo”.

A incompatibilidade entre stalinismo e bolchevismo não é somente programática, é diretamente física. Aliás, o homem que escreveu esta frase, Trotsky, foi assassinado pela KGB.

Quando se deu o retrocesso da revolução? Para o PCdoB, ele tem início em 1956 com a ascensão de Kruschev. Para não ir fundo no balanço do stalinismo, o informe do partido reconhece: “Stalin cometeu erros”. Estes teriam facilitado a ação de Kruschev. Vejamos quais foram esses erros: “As debilidades ideológicas do partido no enfrentamento com os revisionistas, em 1956/57 – toda velha guarda bolchevique deixou se envolver nas maquinações de Kruschev -, demonstram que Stalin não deu atenção suficiente, em especial a partir da década de 1940, à formação leninista e à luta ideológica, problemas-chave da luta de classes”.

É certo que devemos valorizar a necessidade da formação marxista. Mas definir que a vitória da contra-revolução se deu pelo fato de que Stalin não “deu atenção…à formação” é um atentado à inteligência da militância do PCdoB. Quem era Kruschev, que setor social representava? Qual era a origem social de suas posições políticas?
Um dos preceitos básicos do marxismo é que todo fenômeno político tem em última instância uma explicação social. Kruschev era parte da mesma burocracia stalinista que tomou o poder político do proletariado.

Mas a palavra burocracia não faz parte do dicionário do PCdoB. Por isso, tal qual Kruschev, o partido não pôde investigar a fundo as causas sociais dos “erros” de Stalin. Isso naturalmente direcionaria a discussão à pergunta sobre o que leva um partido que diz lutar pelo socialismo a integrar um governo burguês como o de Lula, que defende os interesses do imperialismo, mantendo tropas no Haiti a serviço da recolonização da América Latina. Muita contradição para que a dialética possa explicar.

A revolução é mundial
Criticando a insuficiência teórica de Stalin, o informe reivindica as contribuições de Lênin: “com o materialismo e empiriocriticismo. (…) com o imperialismo, etapa superior do capitalismo. Na esfera do socialismo, com a teorização da revolução num único país”. Em outro parágrafo, afirma que Stalin “comandou com êxito a construção do socialismo na URSS”.

Assim, Lênin fez a teoria do socialismo em um só país e Stalin “comandou com êxito sua construção”. É interessante notar que o PCdoB cita as obras de Lênin para as contribuições anteriores, mas para a teorização da revolução num único país, não existe nenhuma referência. Mero esquecimento? Não. Porque esta obra simplesmente não existe.

Sobre a estratégia da revolução, vale citar o folheto Êxitos e dificuldades do poder soviético, publicado em 1919: “Não podemos vencer definitiva e completamente a escala mundial somente com a Rússia. Somente venceremos quando o proletariado triunfe em todos os países, ou pelo menos, nos países mais adiantados” (Obras Completas, Tomo 38, pág. 46).

Sobre se a URSS poderia atingir o socialismo, disse Lênin: “Em várias ocasiões disse reiteradas vezes: em comparação com os países adiantados, foi mais fácil aos russos começar a grande revolução proletária, mas será mais difícil a eles continuá-la e levá-la até o triunfo definitivo, no sentido da organização completa da sociedade socialista”. (A Terceira Internacional e seu lugar na história, Obras Completas, Tomo 38, pág. 326).

Essas frases de Lênin tão somente expressam um patrimônio teórico comum do bolchevismo, contido nos documentos anteriores sobre a tomada do poder, como as Teses de Abril. A teoria do socialismo em só país é posterior à morte de Lênin, e sobre isso há uma farta documentação. É uma teoria encomendada pela nascente burocracia após a derrota da revolução alemã de 1923 para justificar todas as suas atrocidades.

Para o bolchevismo, como nos explica Trotsky, o socialismo é a organização da produção social para a satisfação das necessidades humanas. A posse coletiva dos meios de produção não é ainda o socialismo, mas um primeiro passo, que deve se completar com o domínio da técnica mais avançada concentrada nos países imperialistas.

Por isso, uma das tarefas fundamentais da Revolução Russa foi a fundação da Terceira Internacional, dissolvida por Stalin em 1943. Os problemas do atraso da sociedade russa, com pouca base industrial, não podiam ter solução do ponto de vista do socialismo, no terreno nacional.

A Rússia era um país bastante atrasado, com 90% de analfabetos em 1917 e um PIB per capita que era 10% do norte-americano. Ainda assim, apesar da burocracia e antes da restauração da propriedade privada, depois de arrasado na Segunda Guerra Mundial, o país saiu como a segunda potência industrial do planeta, com um PIB per capita que alcançou 47% do norte-americano. Hoje, depois da restauração, não chega a 7%. Um retrocesso de cem anos!

Qual seria o balanço fundamental da revolução? Que contribuição fundamental ela teria dado para a compreensão do futuro? Acreditamos que a perspectiva dos bolcheviques sobre seu papel histórico nos oferece uma razão:

“Quando começamos naquela época nossa revolução internacional, fizemos isso não com a convicção de que poderíamos antecipar seu desenvolvimento, mas porque toda uma série de circunstâncias nos obrigou a iniciar esta revolução. Nossa idéia era: ou a revolução internacional virá em nossa ajuda, e neste caso nossas vitórias estão totalmente asseguradas, ou então faríamos nossa modesta tarefa revolucionária na consciência de que, em caso de derrota, não obstante, servimos à causa da revolução, e nosso experimento irá ajudar outras revoluções. Estava claro para nós que sem o apoio da revolução internacional uma vitória do levante proletário seria impossível. Mesmo antes da revolução, assim como depois dela, nossa idéia era: imediatamente, ou de qualquer modo muito rapidamente, uma revolução irá começar em outros países, nos países ‘capitalisticamente’ mais desenvolvidos – ou, no caso contrário, teremos que perecer. Apesar desta consciência, fizemos tudo para preservar o sistema soviético em todas as circunstâncias e a qualquer custo, já que sabíamos que estávamos trabalhando não apenas para nós mesmos, mas para a revolução internacional” (Lênin, 1919).

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